MORDAÇA
Sempre fora arisca ao tempo e optara por não ter certos marcadores porque assim teria a sensação de eternidade.
Mas certa vez a passeio não resistiu à peça artesanal toda talhada em madeira de lei.
Pensou, pensou, repensou... voltando ao ateliê do artista várias vezes, exatamente como se faz quando queremos algo mas relutamos em assumi-lo.
Aquilo lhe custaria um bom dinheiro e lhe significaria várias horas de trabalho, conjeturou.
Até se lembrou do dito popular que sua avó lhe ensinara: “Mais vale um gosto do que um dinheiro no bolso”, mas sempre que nele pensava também tratava de se punir, achando que tinha “gostos” demais, e alguns gostos poderiam ser desgostos...afinal “dinheiro nunca deu em árvore’, dizia a sua mãe.
Racionalizou.
Resolveu então que cederia à beleza da arte, já que a arte nunca tem preço!
Mandou embrulha-lo com todo cuidado, posto que a viagem de retorno seria longa, e jamais se perdoaria se aquela peça fosse injuriada.
Não o despachou com as malas. Achou mais conveniente carrega-lo na bagagem de mãos.
No retorno ao lar, passou o percurso todo pensando aonde o colocaria, provavelmente num local bem visível para que todos o apreciassem.
E foi com ele que ornamentou a parede da sala próxima ao quarto de dormir.
Sabia que inconvenientemente tal arte lhe sopraria as horas...só não contava com algo inusitado.
A peça era comandada ao seu pensamento e não ao tempo.
Toda vez que pensava, suas corentes giravam, a peça soava e não lhe deixava dormir.
Achou que houvesse algum problema mas estava sem a garantia do fabricante, um velho artesão conhecido do outro lado do mundo...
Procurou ajuda especializada por aqui.
-Moça, nada há de errado com o seu relógio.
Não era possível. A noite, se algo ocorrido lhe invadisse o pensamento...lá ia ele:
-CUCO, CUCO, CUCO!
Não conseguia pará-lo até que abortasse as lembranças...
Esforçava-se.
Meditava, rezava, contava carneirinhos...e nada!
-CUCO, CUCO, CUCO!
-Que desgraça, e agora? pensou aflita.
Certa noite, no auge dos seus pensamentos e da sua insônia, teve uma atitude drástica: ficou à espreita do cuco, e antes que ele cantasse, amordaçou o seu bico.
Dizem que o cuco amordaçado voou pela vizinhança e se perdeu pelo tempo.
Nunca mais se lembrou de nada, e foi só assim que voltou a dormir.