LIVRE-ARBITRIO EXISTE?

- Ismael, “livre arbítrio” leva hífen? -pergunta Alice.

Alice e Ismael, grandes amigos desde a infância, agora estudantes, ele de Letras ela de Física, costumam encontrar-se na Praça da Palavra com boa frequência para trocar experiências de vida, discutir temas teóricos que estão sendo exigidos nos respectivos cursos, sobre livros, filmes, jogar conversa fora. São conversas enriquecedoras, antenados que são sobre os rumos da sociedade, da política, do ambiente social, dos interesses das famílias, das religiões. Mesmo em cursos de diferentes naturezas que, em geral, leva ao refrão de Miguel de Cervantes “lé com lé e cré com cré” conseguem se entender sobre tudo que conversam e discutem, mesmo quando não chegam a um consenso, às vezes com muito humor e sempre com paixão. Devido à pandemia do coronavírus ficaram isolados há bom tempo. Aproveitaram esta fase para mergulhar em leituras profundas de todo tipo: além dos contextos técnicos de seus cursos, literaturas antiga e atual, ciência, comportamento humano, evolução da humanidade e previsões vigentes. Nada muito animador neste último tema!

- Alice, nesta sua pergunta você pôs hífen ou não?

- Minha dúvida é resultado do Acordo Ortográfico que vigora desde janeiro de 2016. Creio que foi eliminado, não?

- Engano teu. Este sinal ortográfico se mantém nas palavras compostas por justaposição e que exprimem uma unidade sintagmática e semântica.

-Para, para, para, Ismael! Complicou! Aceito seu esclarecimento. Você entende que não estou a altura para aprofundar nas razões de manter o tracinho. Em outro dia poderemos nos aprofundar no assunto.

-Está bem-respondeu o moço, gargalhando. Mas, o que fez você colocar foco nesta palavra, livre-arbítrio?

- Há alguns meses estive em uma situação, banal, de ser obrigada a escolher entre duas disciplinas no meu curso de física, procurei os respectivos professores para esclarecimentos. Gostei dos argumentos dos dois, mas fui conscientizada que minha escolha levaria a rumos diferentes em minha carreira profissional.

-Não poderia cursar as duas disciplinas?

-Esta não era uma opção. E um dos professores mencionou que eu tinha total livre-arbítrio (com hífen, tá!) para escolher. Que nem ele nem o outro professor iriam me induzir na decisão. Daí, fiquei obcecada por entender a fundo o significado desta palavra composta por justaposição e por unidade “sintomática”.

- Sintagmática, Alice, não invente nem zombe da reforma ortográfica- repreendeu-a Ismael.

- Passei a pesquisar sobre esta palavra. Devo dizer que fiquei um tanto surpresa com a abrangência de como é aplicada. A possibilidade de decidir em função da vontade própria, sem qualquer condicionamento, causa determinante ou motivo, leva a entendimentos nos sentidos filosóficos, psicológicos, religiosos, morais e científicos. Sem contar, com o questionamento se o livre-arbítrio existe.

- Como assim, o livre-arbítrio não existe? Considero o meu de muito valor para minha vida – argumentou o rapaz surpreso. Para mim não há discussão. É simples. É a liberdade que sempre tenho de escolher, dentre alternativas, aquela que acho mais adequada em uma determinada situação.

- Fala isso para o seu professor que o seu livre-arbítrio diz para não fazer a prova de final de ano- replicou a moça. Ele vai te responder que o livre-arbítrio dele é maior que o teu e te reprovar.

- Isso é outra coisa! Sem esticar muito esta questão, em poucas palavras, a sociedade tem regras para a convivência, mas, mesmo assim, posso exercer meu livre-arbítrio e decidir “peitar” o professor, e aceitar as consequências decorrentes. Qualquer decisão cobra um preço. Acho que esta discussão se o livre-arbítrio existe ou não é mais um mimimi. Bastante na moda hoje em dia. Aliás, ultimamente o que mais se encontra na mídia são referências sobre respeito à liberdade de expressão, ao livre-arbítrio e por aí vai.

- O que se vê, principalmente na política – pondera Alice - é que, dependendo do interesse no momento, defende-se a liberdade de expressão e, no dia seguinte, a mesma entidade pratica ato que desrespeita o que defendeu no dia anterior. E para toda ação sempre têm como justificativa, que sinceramente não sei bem o que querem dizer, a tal expressão “tomei uma atitude republicana”.

- Bem, Ismael, vamos voltar para nosso tema. Este desvio nos levaria a assunto, embora apaixonante, muito desgastante, atualmente. Vamos lá! A tendencia que tenho para a ciência me levou a pesquisar muito e sou, hoje, uma expert no tema- disse gargalhando, não parecendo convincente a Ismael.

- Como assim, ciência? Para mim, já disse, não tem discussão se livre-arbítrio existe ou não. Afinal temos a mente, a consciência, que nos leva à liberdade de pensar, de decidir e de agir. Precisamos do livre-arbítrio. Sem isto tudo seríamos...seríamos ... uma máquina!

- Veja, Ismael, aprendi que desde Platão, nos anos 300-400 a.C., se estudava, filosoficamente, aspectos da consciência humana, em parte envolvendo aspectos que no século 13 passou a se chamar livre-arbítrio. E mais um exemplo para te conscientizar que esta discussão vem de longa data. Nikolai Gavrílovitch Tchernichévski, considerado um grande sábio e crítico russo, que escreveu sobre os mais diversos temas que você possa imaginar, em meados do século 19, menciona em seu livro “O princípio antropológico em filosofia” que o livre-arbítrio não existe, mesmo porque quaisquer ações que o homem atribua à sua própria iniciativa são, na verdade, resultado das “leis da natureza”.

- Que que é isso, minha amiga. Agora “embananou”. Eu posso concordar que a mamãe ursa cuida do seu ursinho, o alimenta e o defende contra predadores devido às leis da natureza. O mesmo com os pássaros. Mas, nós, os seres humanos temos uma alma, temos uma mente! Raciocinamos!

- Ih! Nem fale em alma! Este é outro tema que a ciência também discute se existe ou não. Mas, vamos deixar este assunto para outra tarde nossa aqui na Praça da Palavra. Para seu consolo, um dos maiores opositores ao Tchernichévski neste tema, foi o escritor Fiódor Dostoiévski, mais famoso, que acreditava no livre-arbítrio. Mas, você tocou num ponto que é atualíssimo. Por tudo o que estudei sobre este tema, me parece que a discussão, nestes nossos dias, interessa e caminha, majoritariamente, àqueles que trabalham com a máquina, a inteligência artificial. Hoje, a IA resume-se a algoritmos, já poderosos, mas essencialmente algoritmos. O desafio deles é dotar a IA com mente, consciência, para torná-la tão ou mais inteligente que o Homo Sapiens. Todavia, nenhum experimento, nenhuma busca científica, realizados desde primórdios, conseguiu descobrir como criar uma mente, uma consciência.

- E não vão descobrir nunca, Alice. Como você sabe, sou muito religioso. A fé cristã diz que cada um de nós tem uma natureza interna sagrada, uma alma eterna e livre, sem querer ser repetitivo, que rege nosso comportamento.

- Ismael, não quero de forma nenhuma contestar suas crenças. Pelo contrário, creio que a fé que temos, qualquer que ela seja movimenta nossa vida, nossos rumos, nosso destino, seja este traçado ou não. Quero, apenas, te apresentar o que dizem sobre as direções que a ciência está percorrendo neste intrincado problema. Cientistas que estudam como nosso organismo funciona afirmam que hormônios, genes e sinapses, e não o livre-arbítrio, determinam nosso comportamento - as mesmas forças que determinam o comportamento de chimpanzés, dos tigres, das cigarras. Confesso que, se isto for verdade, acho muito triste para nós humanos. Como te disse, esta discussão está se revestindo de importância na evolução da tecnologia da Inteligência Artificial. Buscam criar uma mente para ela. Muitos não acreditam que conseguirão. Se conseguirem, alguns acreditam que as dúvidas sobre o que é a consciência, se existe alma ou livre-arbítrio continuarão. Seriam as mesmas dúvidas que nós, humanos, temos.

- Alice, se nosso comportamento é definido por hormônios, genes e sinapses eu manifesto que meus comportamentos são definidos pelos “meus” hormônios, “meus” genes e “minhas” sinapses. Herdei-os? Mas, são “meus”. Não são os seus ou de outro ser humano qualquer. Se isto é livre-arbítrio ou não pouco me importa.

- Gostei, Ismael, desta sua ponderação. Me parece que as discussões se revestem de importância filosófica. Se, repito, “se” a ciência descobrir como criar uma mente ela implanta na IA podendo torná-la mais inteligente que os humanos, para o bem ou para o mal como ocorre com toda evolução tecnológica. Como já mencionei, tenho fé que “temos a capacidade de fazer escolhas livre de certos tipos de restrição” como consta da Wikipédia. E fé não se explica. Se respeita.

Edson Gomiero
Enviado por Edson Gomiero em 14/04/2024
Código do texto: T8041736
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