Peregrina, Viajante, Alquimista, uma velha amiga
Nas esteiras do deserto, sob a segunda lua o rei corvo sentiu uma presença no seu território, as areias eram pisadas por alguém que não pertencia a este lugar, marchando sob os passos dourados até o seu castelo. Pelo teto quebrado voou , avistando do céu estrelado uma silhueta.
Desembainhando sua espada, mirou ao estrangeiro, vindo-lhe furioso pela intrusão, alguém que tentava retirar sua nova paz e antes que pudesse alcançar-lhe o pescoço, hesitou acertar a presa, no momento que percebeu que era A Peregrina, uma silhueta conhecida, uma amiga de velhos tempos, cidadã de da perdida Balderium, uma verdadeira baldiana.
Suas asas bateram contra o vento, impedindo de predá-la, guardando sua arma, esperando a poeira baixar, a viu segurando os cabelos, com as mãos no rosto contra o pouso forçado. A ansiedade de um conhecido lhe doía ao peito, ainda mais àquela que lhe conheceu quanto criatura animalesca.
“Ainda perdida?” – Perguntou o rei corvo mostrando um sorriso que gostaria de esconder.
“Me achando, onde quer que eu vá” – Retrucou a viajante tirando a areia de suas vestes.
Em um abraço, conciliaram as batidas do coração, havia cansaço, havia sofrimento, havia esperança, havia incerteza, havia tempo. De certo um encontro sem datas, horas nem lugar, apenas um reencontro atemporal.
Sob as lacunas do antigo império, ambos estavam no último castelo do rei corvo, sua sala de trono possuía o trono vazio, salas escuras, um jardim iluminado pela luz do segundo luar, uma pira de fogo fátuo e agora, uma imagem de uma divindade cercada de flores azuis. Ambos se encontravam perto do trono, sentados sob as escadarias tendo suas aparências iluminadas pelo fogo atípico, que queimava trêmula com o frio do deserto.
“A que devo o motivo da visita?” – Disse o corvo azul da tarde.
“A viajante viajando, sem rumo, mas estou onde preciso estar, o destino certo pelo caminho incerto. Como sabia que era eu?” – Retrucou a peregrina, enquanto leva as mãos para perto do fogo
“Você tem os olhos sonhadores do dia que me deixou, eu vejo você minha viajante favorita” – Respondeu o monarca.
Ele andou pelo salão, olhando para suas penas e olhou para sua amiga, num surto de ideias, lhe disse: “Qual o seu animal astral?” – Ela levantou a sobrancelha esquerda, em um tom de incerteza, esperando qualquer pergunta que não seria essa. – “Somos reflexos da natureza, podemos ser representados por animais pela nossa jornada, pela nossa ancestralidade e pelos nossos comportamentos, ou será que já esqueceu que conversou com um corvo?”
Eles riram, não pelo papo animalesco do seu amigo, mas muito provavelmente por se lembrarem que ela conversou com um corvo em vidas passadas, uma amizade improvável baseada no impossível.
“Quem te viu, quem te vê, qual animal você poderia ser? És poeta, és liberta, qual será meu voto de Minerva?” – Relaxou suas asas – “Alquimista” – Olhou-a esperando uma reação ao novo apelido, que foi recebido com estranheza, mas ainda intrigada – “ Da cor do teu íris, te vejo como um Ibis”
“A ave do deserto? Achas que poderia eu ser a reencarnação de Thoth?” – Ela riu baixo, escondendo a boca e o nariz com a mão enquanto tremia em risadinhas.
“Ibis, ave representante do Deus Thoth, relacionada a magia e a sabedoria, divindade lunar que despedaça qualquer praga, dê-lhe a sentença através de papel e caneta” – Retirou uma pena de suas asas e começou a escrever ao vento, imitando um escriba atarefado, já ela, em um tom mais imprevisível ainda, tentava ficar em uma só perna, enquanto imitava ave sossegando.
“Talvez você tenha razão” – Disse ela, quase se espatifando no chão tentando encontrar equilíbrio – “Talvez você tenha que me dizer qual o seu animal interior, isso é mera especulação” – Respondeu enquanto colocava a pena detrás de sua orelha – “Isso é apenas uma lembrança, mas o verdadeiro presente vem agora” – Disse o corvo enquanto tirava um pedaço de fraca luz azul da sua túnica.
Instintivamente a Alquimista estendeu as mãos para receber o presente, enquanto o corvo colocava em suas palmas um fragmento azul cerúleo, pulsando uma cor fraca, como o nascer da noite. – “Lembra daquela lenda em que uma singela moça deu a um corvo um fragmento do seu coração, hoje faremos ao contrário”.
“Essa é a lenda do rei corvo que deu um pedaço do coração à alquimista, talvez por magia, por química ou por milagre, esse pedaço valha algo, até mesmo ela transforme em ouro” – Sorriu amargurado – “O corvo mesmo não sendo mágico, rude e altruísta, viu brilho em um pequeno fragmento de um coração imaculado, preservou o fragmento da menina como um farol”.
“Um farol?” – Disse ligeiramente irritada com o corvo, por sempre falar em parábolas e entrelinhas – “Uma luz que nos faz seguir em frente em busca de caminho” – Respondeu. – “Eu sei que isso é uma visita, uma promessa do futuro, você não veio para ficar”.
“Caso eu ficasse, perderia o título de peregrina” – Sorriu tímida – “Mas eu sei que isso é apenas um até logo e não um adeus, mesmo despedidas não sendo o meu forte” – O corvo falou de costas, não conseguia olhar nos olhos de sua amiga – “Nunca é adeus, caro corvo” – Ela apertava as mãos com o fragmento.
“Agora que estamos quites, é nunca um, sem o outro” – Apontou ambos os fragmentos juntos, um ao lado do outro, pulsando uniforme – “Nunca pensaria que um fragmento quebrado, teria tanto valor a uma ave que representa a morte e pelo que eu sinto, você tem procurado os seus pedaços perdidos, vejo que está aprendendo a se amar”.
“Me amando um dia de cada vez, pássaro da morte”.
O corvo bateu suas asas em direção ao jardim, balançando algumas flores, fazendo voar algumas pétalas – “Cultivei os casulos que me deixou quando era somente a menina e o corvo, dos teus casulos de confusão, são as borboletas mais belas do meu jardim”. – As borboletas reluziam com a luz da segunda lua, passeando entre as flores e cutucando-as por pólen.
“Eu não sei a última vez que saí desse deserto, deixando aqui o último castelo da fronteira entre a floresta de carvalho e as montanhas sacras, mas, esse deserto, de certo não são os mesmos grãos de areia quando construí o meu império”.
“O corvo que voou pelo teto do castelo para me atacar, não é o mesmo que andou pela porta para me recepcionar, não terminamos uma frase sendo a mesma pessoa, caro corvo”. – Disse ela após uma taça de água.
“O que restou do corvo que voou embora sem rumo, para o rei corvo que agora está presente?” – Disse o monarca em tom fúnebre.
“Você tem as mesmas asas do dia que voou para longe” – Disse ela.
Enquanto claustrofóbico em sua mente, preso em nostalgia que tomava conta de seus corações, ambos encostavam os ombros enquanto olhavam para a fogueira, até que o calor do braço da menina deixou sua armadura para chegar até os pertences da Peregrina.
A Alquimista juntou suas coisas, colocando sua mochila sobre as costas – “Então já é hora” – Disse o corvo abrindo a porta. – “Nunca é um adeus” – Ele recebeu essas palavras como uma promessa. – “Quando você voltará, menina?”
“Eu nunca te deixei corvo” – Um golpe certeiro em sua alma, questionando o que tem feito todos esses anos nesse reino, dedilhando o passado como uma harpa.
Lá ia ela, enquanto seus passos eram deixados pelo deserto, o corvo com seus olhos de destino, via que a Alquimista seguia os passos dourados outrora que tinha seguido para chegar ao seu reinado quebrado, os passos de vindas eram seguidos com os de idas, o reino do Rei Corvo não era seu destino final, mas estava de passagem, peregrina.
O engraçado do destino são os desencontros, em um mundo tão grande, as cordas do destino atam pessoas de forma divina, um tão quanto sádica pelo Altíssimo. Não importa quão longe vão, tão distante estejam, todos e ninguém estão lá, juntos e esperando um breve encontro. Antes era “A menina e o corvo”, agora “A Alquimista e o Corvo Cerúleo”.
Em um aperto de coração, o Corvo Cerúleo gritou à Alquimista: “Menina! Não esqueci da nossa promessa!” – Ao ouvir o chamado, ela diminuiu o passo, mas não olhou para trás – “Que promessa?” – Lançou ao frio do deserto.
“A promessa do corvo à menina, ao futuro indefinido, nossa dança”. – E ao proferir tais palavras, a Alquimista já não se encontrava no deserto, mas de certo, mesmo que seus ouvidos não tenham ouvido suas últimas palavras, esperasse que tenha esquentado o coração alheio.
Desta vez quem estava sentado era o corvo, enquanto ela se afastava, andando com sua singela silhueta, cruzando o deserto ansiando pelo dia que iram se reencontrar.
Até logo, menina amada.