A Princesa Laeria

O jovem desmontou do cavalo logo após ter adentrado os portões da cidade deserta. Boatos diziam que a cidade havia sido amaldiçoada após a morte de toda a família real e que uma bela dama de longos cabelos estava aprisionada no castelo abandonado esperando que alguém a salvasse. Os boatos também diziam que essa dama talvez fosse a única princesa do pequeno reino extinto, que após liberta romperia a maldição da cidade.

Sirian era o último de uma linhagem não tão nobre, mas também não pobre. Membros da família Venov sempre foram conhecidos principalmente como conselheiros de grandes reis e nobres. Os membros da família sempre foram compostos por pessoas de grande requinte, educação e diplomacia; a inteligência era tanto uma virtude quanto um dom. O jovem Venov vestia trajes belos, apesar de sujos por conta de suas viagens e buscas. Um grande manto de seda vermelha que cobria quase todo seu corpo lhe inspirava certa nobreza e possuía estampado no ombro o selo da família Hadragan, uma família real para quem ele servia. Na cintura carregava uma pequena algibeira com algumas moedas de ouro e dois cantis, com água fresca e vinho, nas costas uma mochila com alguns equipamentos de emergência e, ocultas em suas botas, duas pequenas adagas incomodavam seus tornozelos. Seus cabelos curtos que quase lhe cobriam os olhos ficavam inquietos com o vento forte.

Resolveu deixar o cavalo nos portões da cidade e continuar sozinho, estava preocupado com a suposta maldição, mesmo suspeitando que ela nem existisse. Ambos eram antigos companheiros e sobreviveram a muitas desgraças juntos. Sirian passou a mão na cabeça do amigo lhe fazendo carinho e sussurrou:

- Se eu não voltar até o próximo alvorecer, terá de seguir seu rumo sozinho...

O quadrúpede fechou os olhos e baixou levemente a cabeça cedendo-a para algumas carícias de seu dono, depois a erguendo com a mesma leveza, como se tivesse entendido a mensagem. Enquanto o jovem adentrava pela cidade abandonada, notava que ela não recebia visitas há realmente muito tempo. Trepadeiras envolviam as casas enquanto outras vegetações diversas transformavam a cidade em um imenso jardim belo e exótico. O cavalo via seu melhor dono sumindo em meio ao horizonte e quando este sumiu por completo ele relinchou se deitando em seguida na grama verdejante.

A cidade era extensa e quanto mais se aproximava do enorme castelo estranhamente esverdeado que havia ao centro da cidadela, mais a diversidade de plantas aumentava. Depois de alguns minutos ele chegou aos portões da nobre morada em tudo em volta havia se tornado um extenso matagal, as casas pareciam completamente feitas de folhas, arbustos e flores. Agora ele compreendia por que o castelo, quando visto de longe, parecia ser quase completamente verde. Sirian observou as plantas que impediam sua passagem bloqueando os portões, retirou uma das adagas e começou um cansativo processo de poda.

Minutos depois de remover quase todos os arbustos, bebeu um pouco de seu cantil e forçou entrada. Os portões se abriram lentamente com rangidos enervantes e para sua surpresa, tochas simetricamente postas nas paredes iluminavam um longo corredor. Parecia que alguém já o esperava. Por dentro o castelo era mais como um templo de tão simples e sem adornos, não havia nenhuma entrada para outras alas ou qualquer aposento, as que deveriam existir estavam bloqueadas por fileiras de trepadeiras intransponíveis.

Enquanto seguia adiante se deparou com um enorme abismo escuro, a iluminação precária do local não ajudava, fazendo com que o fundo fosse indeterminado. O abismo era realmente estranho, parecia que a estrutura do corredor havia sido construída para deixar aquele buraco, não havia extremidade alguma nas paredes para se apoiar e o enorme buraco parecia ter sido construído meticulosamente, não apenas um simples fosso feito no chão. Por instinto pegou uma das moedas que tinha em sua algibeira e a lançou no abismo, a moeda girou no ar caindo, caindo, caindo, caindo, caindo... Mais de um minuto se passou e nenhum tilintar metálico de colisão pôde ser ouvido. Talvez ele não tivesse prestado atenção no som, talvez a moeda ainda estivesse caindo, talvez tivesse caído em algo macio e omitido qualquer som. Por via das dúvidas, pegou uma das tochas da parede e a arremessou como fez com a moeda, ele pode ver um foco luminoso que se distanciava e diminuía cada vez mais até sumir por completo, mais uma vez sem fazer barulho algum. A chama apenas foi tragada pelo nada.

Antes que pudesse procurar outra solução para aquele obstáculo, ouviu o barulho de galhos se retorcendo na parede à sua direita, voltou-se para o som e viu que as plantas estavam se movendo, tomando uma forma que aos poucos se tornava cada vez mais familiar. Eram palavras. Curioso e sem espanto algum se aproximou para ler. Estavam escritas em alguma antiga linguagem druídica, agradeceu por ter estudado línguas antigas e traduziu rapidamente em sussurros; tinha a mania de acompanhar seus pensamentos com palavras:

- “Quando a luz não puder eliminar trevas, outras trevas devem ser invocadas...” – coçou levemente sua rala barba enquanto raciocinava - ...talvez não seja tão óbvio quanto penso, mesmo assim devo tentar.

Aproximando-se da borda e se segurando em algumas das plantas das paredes, fechou os olhos e, vacilante, deu um passo frente ao abismo. Quando terminou o passo sentiu a sola da bota tocar o chão, pensou ter errado o abismo e abriu novamente os olhos para no instante seguinte presenciar seu pé ser alvo da força da gravidade.

Segurando-se firme nas plantas que resistiram bem ao seu peso, Sirian se recuperou do susto da quase queda, colocou o pé no chão firme e tomou fôlego. Tinha certeza que havia sentido que estava pisando em solo firme, só deixou de sentir o suposto solo depois de ter encarado a realidade. Fechou mais uma vez os olhos e tornou a andar sobre o nada, mesmo não sabendo quando poderia abri-los novamente.

Após dar mais de trinta passos cegos seu pé direito bateu no que parecia ser um degrau, procurou com leves chutes pelo chão e confirmou sua suspeita. Havia apenas três degraus, depois o chão tornava-se plano novamente, deu mais alguns passos para frente e ousou abrir os olhos mesmo sabendo que não havia nenhuma vinha onde se segurar nas paredes que rodeavam o fosso, apenas não lembrava de degraus depois do mesmo.

Perguntava-se se suas explorações e buscas acabariam por ali, se teria findado sua missão eterna e seu sonho tão precioso de encontrar Laeria. Conforme seus olhos se abriam aos poucos se acostumava com a iluminação precária e a princípio viu apenas o mármore branco do chão - que o aliviou logo - depois avistou uma passagem ao fim do longo corredor, algo como uma saída. Demorou ainda a acreditar que pisava em solo firme, demorou também para se libertar de seus pensamentos.

Olhou para trás procurando pelo abismo, mas viu apenas uma moeda de ouro e uma tocha apagada no chão nu, como se nunca antes tivesse havido um fosso ali. Balançou levemente a cabeça e sorriu sem se espantar muito, havia passado por muitos lugares nunca antes explorados e aquilo já era quase comum. Continuou a seguir o corredor em direção à suposta saída.

Logo que se aproximou da passagem, notou que o fim do corredor era fechado por uma velha, porém impecável e conservada porta de vidro. A porta possuía um par de raras e complexas dobradiças de metal, tendo também seu suporte forjado metalicamente, mas seu corpo era preenchido por um vidro grosso, que apesar da grossura, não era embaçado. O que mais chamava atenção na porta eram os detalhes metálicos, eles não estavam enferrujados, na verdade a porta parecia ter sido posta ali há poucos dias.

Em baixo relevo algumas inscrições poderiam ser lidas com alguma dificuldade, mais uma vez era a mesma linguagem druídica, só que dessa vez as letras estavam cravadas como arranhões que manchavam a beleza da porta:

- “Quando as sombras caírem sobre o corpo rochoso, carne verterá da pedra pura... - recitou para si mesmo em sussurros.

Estranhamente o texto parecia não estar completo, faltava alguma parte omitida. Resolveu pensar no texto mais tarde, memorizou o trecho e entrou na sala da porta de vidro. O local era na verdade um pequeno jardim interno com belas flores, algumas raras, outras bem comuns, a sala era arredondada e as flores davam ao local um ar de privacidade pública. No teto uma enorme janela circular e horizontal de vidro fazia com que a luz do sol tocasse o centro da sala, estranhamente já passava do meio-dia e a posição do facho de luz não correspondia. Lembrou de jogos de espelhos usados por civilizações antigas para iluminação, mas deixou os pensamentos de lado. No outro extremo da sala havia uma passagem, mas em cima dessa passagem uma estátua estragava toda a beleza do jardim. Parecia uma espécie de demônio, possuía um par de chifres e asas, além de um rabo, sua expressão era medonha com dentes salientes e predatórios.

- Essa estátua é um tanto bizarra para ser posta em tão belo jardim. Os olhos dela parecem até... – começou a sussurrar consigo mesmo, mas antes que pudesse terminar Sirian foi surpreendido por ruídos similares aos de uma pedra rachando. Observou a estátua com maior atenção e percebeu que ela trincava e se desfazia aos poucos como uma casca, revelando uma criatura de pele escamosa e verde acinzentada.

Paralisado de medo ele não conseguia entender o que estava acontecendo, já tinha ouvido boatos e lido algo sobre gárgulas guardiãs, criaturas de pedra que criam vida e guardam locais sagrados ou artefatos antigos, mas nunca poderia imaginar que viveria para ver uma criatura dessas.

A estátua se ergueu despejando as últimas lascas de pedras no chão e deu dois passos tranqüilos em direção ao jovem que ainda estava imóvel, depois se espreguiçou com um rugido ameaçador como se despertasse de um sono de séculos.

Sirian finalmente conseguiu voltar a si ao ouvir o rugido da criatura, notou que ela o observava como um predador espreita sua presa, então se preparou para reagir a qualquer movimento brusco. O demônio avançou em seguida para cima do único alvo a vista com uma investida alada de grande intimidação, mas Sirian conseguiu, num pulo rápido evitar o golpe, se jogando para sua direita e rolando no chão.

A gárgula manobrou em pleno ar dando uma volta circular pelo jardim e indo de encontro a Sirian novamente, que dessa vez estava despreparado, não conseguindo desviar do ataque devidamente, recebendo três profundos cortes das garras da criatura. Ajoelhado no chão e com dores no braço, ele se ergueu rápido ignorando ao máximo sua dor por temer seu inimigo.

Com um raciocínio lógico o jovem percebeu que o melhor ponto para se esquivar dos ataques era o centro da sala, já que a criatura voava em círculos e não poderia manobrar bem o suficiente em local tão pequeno para pegá-lo no centro. Correu o mais rápido que pode para lá e em meio à corrida a gárgula avançou com outro ataque, mas Sirian conseguiu evitar novas feridas se jogando contra o chão num outro salto.

Agora que estava finalmente no centro do jardim, a gárgula foi desacelerando seu vôo aos poucos até descer no chão e começar a andar em círculos em volta de sua presa. Sirian começou a se questionar porque a criatura mudou de comportamento repentinamente e não encontrou respostas. Se sentia um pouco aliviado agora que podia descansar um pouco e se sentir mais seguro, mas não baixou a guarda com medo de uma nova mudança de comportamento. Sentou no chão e começou a procurar uma solução. Relaxou, analisou tudo em questão e enquanto tentava se concentrar a gárgula continuava com seus passos vagarosos, observando, esperando algo.

Cansado e desesperançoso ele baixou a cabeça em desânimo e percebeu que havia algo escrito em baixo relevo no chão, na mesma antiga linguagem das outras inscrições, e parecia ser uma continuação para a frase incompleta que antes havia lido:

- ...quando a luz onipotente banhar o demônio pedregoso, carne reverterá para pedra dura.”

Mentalmente uniu as duas frases e pensou no que elas estariam ligadas. Obviamente o texto falava sobre a gárgula, o trecho “...carne verterá da pedra pura...” delatava isso e também parecia mostrar que a gárgula tomava vida em locais escuros. A segunda parte que acabara de ler parecia dizer que a luz do sol pode afetar a gárgula fazendo com que ela volta-se à sua forma de pedra. Na verdade ele já havia suspeito de que o sol fosse sua fraqueza, mas suas suspeitas eram baseadas em lendas que não sabia se poderia confiar. Entretanto, ainda havia um problema...

“Como posso fazer que a luz do sol banhe tamanha criatura que parece saber que esse é seu ponto fraco?” - pensou consigo mesmo, dessa vez não tendo certeza se havia ou não sussurrado seus pensamentos.

Puxou uma de suas moedas de ouro e, numa tentativa que sabia ser inútil, refletiu a luz da janela contra a gárgula. O feixe de luz era pequeno demais para fazer qualquer coisa, mas pelo menos ele percebeu que onde o feixe tocava no corpo da criatura, uma parte mínima dela tornava-se pedra quase que instantaneamente. Tentou passar o feixe por outros pontos do corpo e petrificá-la aos poucos, mas ela voltava ao normal mais rápido do que o feixe de luz poderia cobri-la.

Impaciente, Sirian possuía uma única solução desesperada, correr o máximo que podia para a passagem que o demônio protegia e dar continuidade à sua busca. Não hesitou em fazer exatamente isso, nem pensou numa estratégia, de fato havia até esquecido por alguns segundos que a gárgula estava ali com ele. Tentou correr em disparada para a passagem, mas quando mal saiu da única área onde podia ficar protegido, a gárgula alçou vôo rapidamente e pulou em cima dele que estava distraído demais.

Caindo no chão com o peso enorme da besta, tudo que ele pôde fazer foi usar seu braço direito ainda intacto para se defender da criatura. O braço foi mordido e arranhado muitas vezes, enquanto a criatura com as patas traseiras rasgava suas roupas e certas vezes sua pele. Sua algibeira se arrebentou em meio à confusão e todas as suas moedas caíram no chão. Mais uma vez seu raciocínio ligeiro entrou em ação e enquanto se defendia com o braço direito, pegou uma das moedas caídas estendendo o braço esquerdo o máximo que podia tentando alcançar a luz do centro da sala. Quando finalmente conseguiu, refletiu o pequeno feixe de luz contra os olhos da gárgula cegando-a temporariamente.

A criatura se levantou espantada atacando o nada, procurando algo para dilacerar. Sirian estrategicamente esperou o momento certo e quando a gárgula se aproximou um pouco da luz a chutou com toda sua força fazendo com que ela se desequilibrasse e caísse na área iluminada. Quase todo seu corpo retornou para a forma pedra pouco antes de se colidir contra o chão, despedaçando-se em pedregulhos de diversos tamanhos, deixando apenas as pernas ainda despetrificadas, porém agora, inanimadas.

- Finalmente... – sussurrou e depois de tomar fôlego, cansado, cortou algumas tiras da capa enfaixando o braço ferido antes de seguir caminho.

Adentrando mais no castelo, o jovem percorreu outro longo corredor e conforme continuava maior era o número de plantas que cercavam as paredes e tetos. Finalmente chegou a uma sala totalmente recoberta de plantas, talvez o ponto mais herbário de todo o castelo. O local era quase uma floresta e antes que pudesse examiná-las a procura de alguma que possuísse propriedades medicinais, um forte vento soprou e as plantas começaram a remexer aos poucos. Segundos depois toda vegetação ali parecia ter vida própria, se reunindo num único grande amontoado de plantas. Não demorou para a sala e até mesmo o corredor de onde viera ficassem limpos, sem uma única folha seca. Depois que todas as plantas se agruparam no meio da sala começaram a tomar uma vaga forma humanóide, todas juntas, formando um único ser criado de vinhas e folhas das mais variadas.

O gigante plantiforme possuía duas folhas vermelhas no que parecia ser um esboço de sua face, e preenchiam o que deveria ser seus olhos.

- Que queres aqui humano? - sua voz lembrava o som do vento correndo pelas folhas de um enorme pinheiro.

Abismado com a criatura anormal frente a ele, Sirian tentou entender o que poderia ser aquilo. Nunca nem nos livros soube de criatura tão extraordinária, disse com uma voz sutil e vacilante:

- Vim investigar este castelo abandonado em busca de uma possível donzela que, boatos dizem, estaria aqui confinada.

As duas folhas avermelhadas da face enorme da criatura se retorceram levemente e até pareceram mudar para uma coloração mais viva.

- Suas palavras são sinceras, mas sinto seu coração desesperançoso. Parece procurar alguém que não encontrarás nunca, sente que aqui não reside nem se confina quem tanto busca. Mesmo assim tens disposição para uma possível nova decepção?

Sirian se espantou com as palavras do gigante, não entendia como ele poderia saber tanto. Baixou o rosto olhando o nada e pensou um pouco em sua vida, na busca que já durava mais de uma década. Uma busca que sabia ser inútil e totalmente ridícula, apenas a fuga de uma vida deprimente. Abriu finalmente os olhos e disse:

- Não há mais nada que eu possa perder. Nada existente em nenhum dos mundos poderia salvar quem mais amo, então farei o mínimo para ajudar aqueles que outros deram as costas e quem sabe alguma divindade possa chegar a ter um vestígio de piedade e acabar de vez com minhas dores de algum modo...

- Que assim seja, mas infelizmente irás descobrir que o preço para prestar qualquer auxílio pode ser deveras alto. - as palavras dele soavam como profecias obscuras - Se queres salvar a donzela que está nesta prisão de plantas terás de entender um enigma que nem mesmo minha sabedoria pôde desvendar: “Apenas a mais pura gota amarga forjada como o orvalho da manhã, diluída com o alimento dos quase vivos que se abrigam da luz primordial poderá liberar a prisão rochosa da dama cativa.”.

Pouco depois de recitar o enigma, um novo vento forte espalhou todas as folhas que compunham o homem-vegetal e aos poucos foram levadas para fora do castelo. Sirian vislumbrou a cena e em seguida o centro da parede oposta à passagem de onde ele tinha vindo abrira como uma porta de dois blocos de concreto que se afastavam verticalmente. Ele atravessou a porta com passos sôfregos e chegou a uma enorme sala parcialmente destruída, não havia mais teto e metade da parede esquerda estava desabada. Pela primeira vez sentiu falta das folhas que forravam o castelo.

Aproximou-se de um altar que havia no meio da grande sala destruída onde repousava uma estátua deitada, parecia um altar de sacrifícios e a estátua lembrava uma bela jovem de longos cabelos que usava um vestido.

- “... a prisão rochosa da dama cativa”; então ela está presa na forma de uma estátua. - raciocinou consigo mesmo.

Começou a pensar no enigma procurando um jeito de reverter aquele encanto. Não duvidava das possibilidades improváveis da vida, não se limitava mais às compreensões da razão. Entretanto observou a estátua com certo desânimo aparente, suspirou e mais uma vez concentrou toda sua capacidade de raciocínio no enigma.

- A parte óbvia é o sangue. “...o alimento dos quase vivos que se abrigam da luz primordial...”; “quase vivos” deve se referir à morto-vivos, e morto-vivos que “se abrigam da luz primordial” são vampiros, logo o alimento de vampiros é o sangue. - sussurrou consigo mesmo conclusivamente.

Removeu as faixas do braço ferido, e dele deixou escorrer algumas gotas de sangue sobre a estátua enquanto tentava desvendar a primeira parte do enigma. Tentava entender o que seria uma “gota amarga”, talvez fosse de vinagre, mas não entendia como faria uma gota de vinagre surgir como orvalho.

- Talvez se colocasse um pouco de vinagre sob uma folha e a deixasse rolar...; pensou rapidamente, mas logo afugentou tal pensamento por achá-lo ridículo demais.

Concentrou-se o máximo que pode no enigma, mas tinha a mente longe, bem longe. Laeria não saia de sua cabeça e sabia que nunca sairia, mas dessa vez estava pensando nela mais do que o normal. Não conseguia entender como as coisas aconteciam de forma tão inesperada, coisas tão estranhas. Sentia como se fosse ontem quando a havia perdido.

- Por que...? - suas palavras saíram involuntariamente - Por que os deuses deixaram que isso acontecesse comigo?

Sussurrava palavras para si mesmo, a maioria delas incoerentes demais até mesmo para ele. Lembrou-se dela caminhando pelos jardins da mansão, cuidando das plantas; ela adorava flores, principalmente tulipas. Parecia ainda ouvir seus passos ecoando pelos corredores num ritmo quase musical... Então tudo ficara vermelho, as tulipas se mancharam com o tom rubro do sangue e então ele a viu estirada no chão. Seu longo vestido branco dançava com o vento da primavera, uma primavera que ele nunca mais esqueceu.

- Por que ela?

Não conteve o choro e uma lágrima rolou pela sua face, deslizou calmamente até o queixo e caiu em cima da estátua feminina que estava no altar. A lágrima rolou alguns centímetros e se misturou com as gotas de sangue. Quando se deu conta Sirian viu que de forma similar à gárgula que havia confrontado bravamente, lascas de pedra eram destacadas da pele da donzela aprisionada. O feitiço estava sendo quebrado, aos poucos o rosto da bela dama ficava à mostra e ele ajoelhou-se frente ao rosto para observá-la melhor. Era tão bela, sua pele alva suave como seda, seus cabelos castanho-escuros possuíam um brilho divino, seus róseos lábios pareciam convidar-lhe para um beijo. Não era Laeria, mas isso não lhe fora nenhuma surpresa.

Quando tentou se levantar notou que suas pernas não se moviam, elas estavam se transformando em pedra. Lembrou-se das palavras do grande arbusto guardião: “...infelizmente irás descobrir que o preço para prestar qualquer auxílio pode ser deveras alto.”

Sentia a casca de pedra lhe cobrir aos poucos, conforme a pele rochosa da jovem dama se desfazia. Quando mais da metade de seu corpo estava coberto por pedra ele sentiu uma amargura terrível, não conseguira cumprir sua promessa, não terminara sua busca como esperava. Suas últimas palavras foram:

- Eu falhei... Perdão, Laeria.

Ao despertar, a única coisa da qual a donzela se lembrava foi de um nome: Laeria. Não se recordava de mais nada sobre seu passado, sabia que havia ficado por décadas, talvez mais de um século, presa num encanto terrível, mas nem ao menos lembrava por que. Viu a estátua ajoelhada do herói que a salvou, ele se sacrificou por ela, superou desafios para salvá-la, mas desconhecia por completo seu rosto, nome ou qualquer coisa sobre sua pessoa.

Suspeitou que talvez o nome que aquele jovem proferira fosse seu e que ele tivesse vindo apenas por ela, talvez ambos tivessem sido amantes ou parentes naquela ou n’outra vida. Ela não sabia, não lembrava, mas não importava.

Depois de desperta ela reergueu o velho castelo. Com ajuda de alguns nobres reconstruiu a cidade e ordenou que fosse feita a praça principal em torno da estátua do jovem que havia lhe devolvido a vida. O castelo se transformou num reino próspero que foi batizado com o nome de sua principal regente, Laeria. Ninguém sabia a verdadeira história da rainha, menos ainda a do reino, mas nunca foi esquecida a história do jovem que adentrou um castelo supostamente amaldiçoado para salvar uma princesa mesmo eles não sabendo quem exatamente ele era, ou por que foi salvar a princesa. Sua bravura sempre foi lembrada e ele ganhou o título de: “O Salvador de Laeria”.