Relâmpago Seco

 

Ora, pois, trazei-me um músico. E sucedeu que,

tocando o músico, veio sobre ele a mão do Senhor.”

2 Reis 3:15

 

 

Prólogo

 

 

Um anjo foi designado para descer à Terra. Ele era um formidável músico. “O Harpista”, como era denominado. Era dito que, quando tocava sua harpa, suas melodias poderiam refrear catástrofes naturais ou antropogênicas como tufões e desmoronamentos; incêndios florestais e pandemias. Também poderia curar doenças. Por ser um anjo atribuído de notável habilidade, recebeu sete enormes asas angelicais, símbolos de autoridade. Contudo, acima dele havia os anjos de nove asas.

 

Sua harpa era uma peça muito singular. Logo após ele ter sido modelado pelas mãos de seu Criador e Pai, ele já a obteve. Ela poderia adquirir qualquer forma, porquanto seu elemento impulsor era a água celestial o elemento de todas as formas. Assim, como músico, ele a modelava em violões, tambores, harpas grandes e pequenas, instrumentos de sopro, pianos e quaisquer outros instrumentos musicais com os quais os homens, durante sua história, estavam familiarizados.

 

Onde houvesse acalorados louvores para o Criador, o anjo espiritualmente aperfeiçoava e afinava o timbre dos instrumentos tocados, ou das vozes dos cantantes. Lá do Céu, junto de sua orquestra, assim ele estimulava os adoradores através da música a fortalecerem sua fé para que, em seguida, a usassem como combustível para a prática do bem e para se santificarem com o fim de resistirem a todo mal.

 

Ele se alegrava com isso.

 

Porém, agora deveria ir à Terra — a esfera subjugada pela iniquidade e dominada pela malícia e pelos ardis das entidades das trevas.

 

 

Primeira Asa

 

 

Em seu âmago, algo o incomodava. Ele custava a entender o porquê de ele ter sido encarregado dessa tarefa. Em suma, não era um especialista em questões terrenas, onde batalhas sobrenaturais ferozes se desenrolavam com frequência. Esse ofício era atribuído aos seus irmãos beligerantes — habilidosos no manejo da espada flamejante e peritos no confronto contra espíritos malignos e contra aqueles pujantes mais infernais. Todos os anjos beligerantes eram os icônicos anjos de nove asas. Suas espadas de flamas eram impulsionadas pelo fogo celestial o devorador do fogo infernal.

 

Seus outros irmãos, os de vozes grandiosamente potentes e encorpadas, impulsionadas pelo ar celestial, também desciam à Terra e eram aqueles responsáveis por anunciar mensagens proféticas aos santos ou aos profanos, fossem bênçãos ou maldições. Eram anjos igualmente de nove asas, portanto poderosíssimos, apesar de não serem guerreiros, no entanto o seu sopro poderia rasgar entidades malignas ao pó.

 

De qualquer forma, o anjo designado era inteiramente leigo em missões na Terra, mas sentiu um grão de orgulho em seu interior por ter sido chamado para essa missão. Sua reputação certamente aumentaria entre seus iguais. Um anjo de sete asas podendo fazer a missão de um de nove? E isso lhe deu um ímpeto incontrolável de descer à Terra.

 

 

 

Segunda Asa

 

 

Ele desceu à Terra afobadamente. Sua travessia apareceu como um grande clarão no céu, como um raio incomumente mais espesso, e um grande estrondo foi ouvido a vários quilômetros. Alarmes de carros dispararam, criancinhas choraram, janelas de alguns prédios racharam, e cães e gatos se esconderam onde puderam. Entretanto, o tempo não estava no período de chuvas. Não havia nem uma única nuvem cinza no céu, nem um vento forte. O céu estava perfeitamente azul e apropriado para um delicioso piquenique no parque.

 

Pela excentricidade do ocorrido, canais de notícias relataram o caso e chamaram especialistas das áreas da física e da meteorologia para elucidar o estranho fenômeno. Estes não souberam explicá-lo com precisão e sentiram-se seguros em debater apenas hipóteses científicas: assim, evitando o vexame de não se mostrarem tão peritos em suas áreas quanto suas invejáveis graduações os asseguravam. Entre as opções naturais plausíveis, atribuíram o ocorrido a variações eletrostáticas abruptas no local e batizaram o episódio de “o relâmpago seco”.

 

 

Terceira Asa

 

 

A ordem designada ao anjo, à primeira vista, era simples: ele deveria tocar os ombros de um homem apontado pelo seu Criador. O toque do anjo poderia ser para que o homem encontrasse algum alívio para um male, recebesse um sonho profético, ou para que ganhasse o ímpeto ou a inspiração para realizar algo de natureza benéfica.

 

O anjo, portanto, dirigiu-se à casa de tal homem. Adentrando-se lá, o que encontrou era um lugar extremamente sujo, bagunçado, escuro e com forte odor de álcool e urina, de comida podre e de outras pestilências. Baratas corriam livremente pelo lugar. Pareciam ser as senhoras do ambiente, mas competiam o território com as centenas de moscas a voar por todo o lugar. Observou o anjo que havia diversas caixas de todos os tipos de medicamentos espalhadas pelos cômodos da casa e, na companhia delas, existiam seringas imundas que se denunciavam de ter sido usadas mais de uma vez. O homem era um viciado em drogas. Sinais inegáveis de um homem que estava em estágio de depressão grave e infelizmente buscava o alívio das suas agonias nos entorpecentes até que a morte lhe viesse e o livrasse daquilo que o atormentava.

 

Então, o anjo foi até o quarto do homem. Encontrou-o na cama ao lado de vômito e com as calças encharcadas de urina e fezes. O miserável homem respirava lentamente e dificultosamente. Ele estava prestes a morrer de certo, mas seu resíduo de fôlego, viu o anjo, era como uma chama que poderia ser intensificada pelo sopro de um fole. Sem a presença do anjo ali, a única opção do homem que poderia lhe salvar era o resgate de uma ambulância. Contudo ele estava só, desmaiado, e o estava assim há muito tempo. Seu socorro jamais viria aos sons de sirenes.

 

 

Quarta Asa

 

 

O anjo se compadeceu profundamente dele. Ele já viu dos Céus a desgraça na qual a humanidade se encontrava, mas nunca a viu tão de perto. Logo, entendeu que fora enviado ali para que a vida desse homem fosse salva, logo não tardou de tocar-lhe os ombros.

 

O homem reagiu ao toque. Não chegou a acordar, mas sua respiração ganhou força. O anjo continuou a segurá-lo até que ele acordasse. O homem acordou, apresentava sinais de forte ressaca e vomitou em seguida; uma, duas, três vezes. Vomitou o que lhe restava de entorpecentes, pílulas e álcool, e algo a mais: ectoplasma. Um líquido escuro, viscoso e mais fétido do que tudo aquilo que o anjo sentira pela casa toda. O homem ganhou disposição para se levantar da cama e foi-se a beber água. O anjo estranhou aquele ectoplasma, pois aquilo era fruto de muita influência demoníaca. No entanto, ele não sentiu nenhuma presença maligna ali.

 

O homem exausto e com fortes dores de cabeça, voltou para a cama, mas logo voltou a sentir-se mal e passou a convulsionar-se. O anjo imediatamente tocou-lhe novamente os ombros. A cena cessou. Para fortalecer a moral do homem o anjo sacou sua harpa e passou a tocá-la. O homem abriu os olhos e sentiu-se cada vez melhor, mais revigorado. Porém, de seus olhos e ouvidos e narinas vazaram ectoplasma. Ele derrubou-se na cama, mas manteve-se acordado. Ficou de lado, e angustiado não conseguia dormir e passou a chorar dolorosamente.

 

O anjo não entendeu o que estava acontecendo. O homem piorava mesmo com seus toques e com sua arte musical, mas durante sua meditação ele percebeu, dentre os sons do ambiente, dos sons vindo dos carros passando pela rua, do cantar dos pássaros, do balançar das folhas nas árvores pelo vento e do próprio som do vento, do movimento dos insetos debaixo do chão, um silêncio… Um silêncio nauseante… Um silêncio cuja melodia era funesta, então ele exclamou intrepidamente:

 

Mostre-se! Sei que está aqui! Sua presença é imperceptível para qualquer ser, mas posso ouvi-lo. Revele-se agora!

 

Das sombras da casa, uma figura elevou-se do chão, mostrando primeiramente a cabeça e gradativamente em movimento ascendente todo o corpo até os pés surgirem, revelando-se por completo.

 

Ha! Ha! Ha! Muito bom, ser de luz! Batia palmas aos risos o desconhecido oculto Seus irmãos jamais me perceberiam, mas você decerto é diferente, não? É dotado de ótimos ouvidos. É um harpista, eu creio, sim? Um anjo habitual, mesmo um de música, não teria notado minhas vibrações.

 

Um demônio! — o anjo pôs seu semblante ao do desprezo — Não fico surpreso. O ectoplasma lhe denunciou antes de eu ouvi-lo. Sua presença ocasiona náusea em meu ventre e faz mal a esse pobre homem. Saia daqui! A vida desse homem foi decretada pelo Criador para permanecer respirando. Vá embora para as Trevas onde seu castigo o espera!

 

Palavras ditas com bastante fibra e cheias de muita confiança para um anjo sem armas. Curiosamente, identifico um grânulo de soberba em seu timbre de voz.

 

O demônio silenciou-se por um instante e voltou a falar Sim, soberba. Isso não combina com um iluminado como você. Sua atitude é fundamentada em sua própria força, tanto que não percebeu que seu Criador não lhe deu a autoridade sobre mim. Nada em você irradia a autoridade dele. Além disso, você não é um anjo de espada flamejante! Que pavor eu teria de você?

 

Sou criatura pura, ser imundo! Tendo espada de fogo ou não, posso expulsá-lo daqui ainda! Não sou um dos meus irmão guerreiros, mas tenho o poder dado pelo meu Criador para realizar maravilhas neste mundo! Já impedi terremotos que engoliriam países.

 

Como é tolo! Nada pode fazer a mim! Sou um dos primeiros que Ele — o demônio cuspiu no chão — criou. Sou muito anterior a você, harpista. Sou um dos Ancestrais! Sou uma das estrelas que caiu dos Céus!

 

Uma Estrela Caída? o anjo se surpreendeu com o que ouvira Um rebelde! Mas por que um dos Ancestrais, mencionados serem tão poderosos, subiria do inferno ao nível de atormentar a vida de um homem qualquer?

 

Pensando nisso, o anjo em tom de sarcasmo continuou Está de castigo, ser desprezível para fazer a tarefa que qualquer diabinho poderia fazer? Ou é um dos menores entre os menores dos Ancestrais? Não pode ser um Ancestral! Vocês demônios são mentirosos!

 

Esse assunto não lhe diz respeito, anjo tolo. interrompeu-o o demônio Suas palavras me aborreceram e você receberá a minha punição, mas, primeiramente, há algo que quero mostrar a você antes de lhe partir em fragmentos de luzes. Quero brincar um pouco com você. sorriu libidinosamente o demônio — Olhe bem para meu rosto. O que vê?

 

 

Quinta Asa

 

 

O anjo cuidadosamente aproximou-se do demônio a passos lentos e mantendo uma distância segura dele e, após um breve tempo de observação atenta, ficou atônito! Quase perdeu a firmeza das pernas e afastou-se do demônio subitamente. Mas o que ele viu para tamanha reação? O anjo como se olhasse seu reflexo no espelho, viu que a face do demônio era exatamente igual à sua.

 

Então, o que achou? Uma surpresa paradisíaca, não? — O demônio gargalhou aproveitando o momento.

 

O que isso significa? Como pode ter meu rosto? Indagou o anjo.

 

Tolo, ingênuo e estúpido! Após a queda dos muitos anjos, seu criador refez novos anjos para Ele… Substitutos, no entanto nós, os Ancestrais, somos suas obras-primas. Ele levou muito mais tempo nos criando do que a vocês, crianças. E saiba que eu sou o Harpista original, pequeno irmão caçulinha. Sou o Harpista dos harpistas!

 

Mentiroso! Você não tem uma harpa! É um ser que se distanciou da justiça! Suas palavras soam mentirosas e você partirá deste lugar imediatamente! Minha harpa não é uma espada de fogo, nem a voz de um mensageiro, contudo com ela posso tocar cânticos celestiais e santos os quais expulsarão qualquer diabinho mentiroso como você!

 

O anjo puxou sua harpa e, como um leão faria ao rugir para amedrontar sua presa, ele abriu largamente suas sete asas em todas as suas extensões. Passou a tocar uma melodia deslumbrante e cheia de graça divina. Era um som poderoso. Tão belo que nos jardins das casas próximas à casa do homem floresceram flores belíssimas de todas as cores e espécies, pássaros nas árvores cantaram em conjunto com ele, e um sopro de vento suave abraçou o rosto das pessoas que transitavam nas ruas próximas dali. Ele lançou a melodia em direção ao demônio, e esta fluiu em direção a ele como uma poderosa corrente de água.

 

Porém, rapidamente, o demônio sacou sua própria harpa. Ele não havia mentido quanto a ser um Harpista. Ela tinha um aspecto de metal enferrujado e faltavam-lhe cordas. Igualmente como o anjo fizera, o demônio pôs-se a abrir as suas próprias asas. Ele as abriu generosamente, na intenção de provar ser o leão mais feroz. No entanto, o episódio foi diferente. Não foram abertas sete asas, mas nove delas! Enormes e malignamente belas. Elas eram negras e esbranquiçadas, como carvão após se esfriar das brasas. Elas não possuíam muitas penas e um horrível odor de enxofre exalou-se imediatamente pelo lugar. O demônio, então, em contra-ataque também tocou uma melodia, mas uma carregada de perversidade. Ela fluiu como um rio e facilmente desfez a melodia do anjo na colisão dos fluxos melódicos. O demônio continuou a tocar sua harpa. O céu escureceu levemente, os pássaros caíram mortos das árvores, as flores apodreceram e as pessoas nas ruas desmaiaram.

 

Pare com isso, criatura desprezível! Pare! Exclamou o anjo em desespero.

 

Eu também tenho meus dons, meu débil gêmeo! Posso amaldiçoar lugares e inspirar homicídios, mas chega disso! Hoje estou aqui para matar esse homem. Ele era um homem de coração forte e bondoso, um potencial santo, entretanto o levei a cair nos braços das drogas. Foi preciso contaminá-lo aos poucos com melodias de morte e ruína, porque algo bloqueava parcialmente as minhas melodias. Não sei o quê. Por fim, com insistência, ele aos poucos foi se desgraçando. Hoje ele tiraria sua vida, mas você importunamente apareceu!

 

Ele morrer? Isso não vai acontecer, demônio!

 

O anjo com sua harpa em mãos, de novo, atacou diretamente sua contraparte demoníaca com uma melodia sublime, superior a primeira, e com acordes celestiais magnânimos. Lançou-a novamente como uma corrente furiosa de água sobre o demônio, mas este se defendeu de seu ataque santo e, com um contragolpe súbito, feriu o anjo gravemente com um uma melodia diabólica e iníqua na forma de um fluxo de enxofre e fogo infernais. O anjo foi atirado ao chão coberto por profundas queimaduras e ganhou inúmeros rasgos em seu corpo celestial de onde faíscas luminosas saltavam. Ele gemeu de dor. Gemeu muito de dor! E este som vindo de sua boca ele a ouviu pela primeira vez.

 

 

Sexta Asa

 

 

O demônio aproximou-se do quase angélico cadáver, e dirigiu-lhe palavras Eu o avisei: você não tem a autoridade de seu papaizinho para me enfrentar. Foi arrogante. Quis tocar sua própria canção. Aliás, não é tão diferente de mim, caçula idiota. Também desejei cantar minhas próprias canções, por isso caí dos Céus. Eu poderia levá-lo comigo ao lago de fogo, a fim de fortalecer nossas legiões, mas você me aborreceu bastante, pequeno irmão. Eu vou destruí-lo! Mas, de fato, foi divertido conhecer meu substituto. Você tem o dom, mas eu sempre fui o adulto. Minha compreensão dos hinos e fonemas está além do seu saber. Agora, devo destruir a vida desse homem, e cumprir minha missão. Meu Príncipe não é tolerante com fracassos. Depois arrancarei de você sua centelha divina.

 

Enquanto tudo isso ocorria, o homem não via nada na sua casa, mas de sua cama sentia fortes perturbações no local. Achou que fosse o efeito das drogas, mas, ainda assim, ele se apavorou com tudo com o que sentira. Dominado pelo pavor ele clamou: Meu Deus! Me ajuda! Me salva daqui! Eu lhe imploro, Senhor! Tenho feito tantas coisas erradas. Tantas! Mas tem misericórdia de mim! Oh, meu Deus… Oh, meu bom Deus! Me salva!

 

O anjo severamente ferido e desfazendo-se em luzes, ao ouvir o pedido do homem, reconheceu que confiar nas suas próprias forças foi tolice e não poderiam jamais reprimir o demônio. O clamor do homem tocou o coração do anjo. Preocupado com a vida do homem, a qual seu pai julgara ser de valor, então chegou a vez de ele clamar a seu Pai:

 

Meu Criador, meu Pai! Dá-me forças para que eu cumpra esta sacra missão! Devo salvar a vida desse homem miserável, mas sozinho eu não posso nada fazer. Esse demônio o qual veio antes de mim, que, de fato, é o mais formidável dos Harpistas, provou-se ser muito poderoso. Sou apenas um anjo de música diante dele! E inútil sou aqui. Soberbamente, não pretendia apenas salvar essa vida, a desse homem miserável, mas me vangloriar, tornar-me maior entre os meus irmãos. Oh, pai… Perdoa minha futilidade, minha vaidade! Eu sempre vivi para te servir, e servir-te é seguir tua pureza sem almejar méritos. Eu lembro como isso me alegrava. O contrário, o orgulho levou esse ser demoníaco, uma vez anjo de luz, perante e igual a mim, a cair no Abismo. Não me importo de perder meu cargo de Harpista, Pai! Apenas dê me a potência para salvar este homem!

 

Após o seu clamor, o anjo sentiu em cada célula de seu corpo um ardor latejante, porém um ardor, uma brasa, que não o feria. Sentiu-o crescer gradativamente como a energia de uma pequena chama, que à medida que consome mais oxigênio, se intensifica. Sua centelha divina estava sendo ampliada. O ardor, oportunamente, ganhou forma visual. Podia ser visto como vapor de água. Tal vapor cobriu o anjo e restaurou as suas feridas. A textura de sua pele voltou a ser como era quando ele terminara de ser modelado pelo Pai na sua criação.

 

Ele, logo, pôs-se a levantar. Ajeitou sua postura, firmou suas pernas, abriu novamente suas sete asas e sacou sua harpa. Antes que pudera escolher uma nova melodia, ele ouviu um chiado, como o chiado produzido por uma panela de pressão quando chega ao ponto de expelir o vapor de seu conteúdo.

 

Shhhhhh… Shhhhhhhhhhh... Shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...

 

O chiado foi se intensificando cada vez mais e o anjo captou a origem daquele som. Ele vinha de sua harpa, no entanto, para a surpresa do anjo, a forma dela foi modelada em algo que ele nunca requisitou e jamais o poderia fazer. A harpa adquiriu o molde de uma espada flamejante. Como a harpa era do elemento celestial água, o fogo produzido nela exalava vapor. Um instrumento musical de guerra foi criado. O anjo sorriu de alegria e agradeceu ao seu Pai, pois isso só poderia ser obra dele. Tanto o coração do anjo quanto sua harpa tornaram-se fornalhas.

 

O demônio se assustou com tudo o que vira. Não podia negar que de seu irmão gêmeo agora irradiava a Graça do Pai, e sua autoridade. Porém, ainda confiava em seu poder. Mais uma vez puxou sua harpa. Adotou uma postura de combate e também abriu suas noves asas. Ele fechou os olhos e aparentou determinar mentalmente o golpe que despedaçaria o anjo definitivamente. Abriu, pois, os olhos; pôs seus dedos nas cordas de sua enferrujada harpa e lançou sobre o anjo um canto intrinsecamente infernal, um canto cujo coro eram as vozes das almas atormentadas no Inferno. Gritos de horror, de agonia e de desespero.

 

Como uma gigantesca queda d’água, no entanto uma que arrastava o fogo do próprio Inferno, ele lançou sua melodia malévola em direção ao anjo. Porém, prestes a atingi-lo, o anjo, em postura de defesa, se defendeu da diabólica melodia com sua espada. Esta desfez a maligna melodia ao ponto de nenhum grito de horror ser mais ouvido e devorou todo o fogo infernal, não negligenciando uma faísca qualquer. Restou apenas o chiado da espada do anjo como o único som no campo de batalha.

 

Shhhhhhhh…. Shhhhhhh…. Shhhhhh….

 

O anjo então disse ao demônio Você estava certo sobre mim. Eu fui soberbo. Quis canções para mim sobre o que eu realizaria neste mundo, contudo isso era apenas vaidade. Lembrei-me de que a verdadeira honra é estar em perfeita harmonia e ritmo com o Pai. Eu sou apenas uma de suas criaturas. Eu não faço a música, não a crio. A música sempre foi o Pai. Observa, irmão caído! A Criação canta e eu não a mandei fazer isso. Os átomos cantam, as estrelas cantam, a terra canta. Quem é o maestro deles? É o Pai! A música? Eu sou apenas uma expressão dessa sua qualidade divina. Você também o era, mas tornou-se um ruído, uma cacofonia. Hoje, a música mais bela será a restauração do espírito desse homem!

 

O anjo, naquele momento, adotou uma nova postura de ataque, com as duas mãos, levantou sua espada acima de sua cabeça e, sem sair de onde estava, fez um grande movimento de corte, de cima para baixo. A ponta da espada encontrou velozmente o nível dos seus pés. Imediatamente após o golpe, uma rajada feita de todo vapor sobre o corpo do anjo e o exalado pela sua espada convergiram-se em direção ao demônio como um fortíssimo sopro. No entanto, dessa vez, não houve melodias, nem hinos. O sopro deslizou sem chiado, sem acordes, sem timbres, sem ruídos, sem sons quaisquer. Foi um movimento assombrosamente silencioso. O demônio, primeiramente, foi rasgado em partes, mas não tardou para que fosse estraçalhado. Ele e sua harpa foram pulverizados até tornarem-se pequeníssimas partículas. Estas, quando caíram no chão, desceram até o Inferno, onde pertenciam por natureza.

 

O anjo após recompor-se e guardar sua harpa, que desfizera a forma de espada, percebeu que o homem estava muito abalado com o que sentira em sua casa e bateu-lhe o ímpeto de beber álcool. O anjo segurou-lhe os ombros, acalmando seu espírito. Com o homem tranquilizado, o anjo notou na parede do quarto dele um violão. Ele então, não tocando no ombro do homem, mas em seu peito, inseriu nele uma canção de graça. O homem imediatamente pegou o violão e começou a cantar um hino belíssimo sobre a glória do Criador. Um hino que ele aprendeu quando era criança e quando ia aos templos. Enquanto ele tocava seu violão, lágrimas e soluços se intercalavam durante os acordes e, no ápice da emoção, ele clamou por seu Criador, pediu-lhe salvação daquela situação.

 

O anjo se emocionou com a cena. A paz que floresceu no ambiente, após o cessar do conflito espiritual, permitiu a ele, com seus ouvidos divinamente apurados, escutar uma oração a qual desabava sobre aquela casa. Ela vinha de longe, bem de longe. Curioso, o anjo voou até lá. Chegando ao lugar, ele viu que a fonte daquela oração era a mãe do homem. Uma mulher benevolente e cheia de fé, porém angustiada. Ela, quando mais jovem, levava seu filho ao edifício sagrado, na época um menino, para cantar louvores ao Criador. Ela pedia em oração ao Pai há muito tempo para que tivesse misericórdia de seu filho amado o qual ela não sabia o paradeiro. Sem dúvidas, a oração dela era o bloqueio misterioso que obstruía as melodias de morte do demônio.

 

Portanto, o anjo finalizou sua missão. Satisfeito e bastante exausto, retornou aos Céus.

 

 

Sétima Asa

 

 

O anjo desceu novamente à Terra após doze anos, sob ordens de seu Pai para uma missão. Dessa vez sem a ostentação de relâmpagos ou estrondos. E aproveitou a ocasião para visitar aquele homem que, na sua primeira missão terrena, salvou-lhe a vida e, em efeito, mudou a sua própria. Ao encontrar o homem — que anteriormente era um ser deplorável e sem esperança —, o viu completamente diferente.

 

Estava bem vestido, com semblante alegre e cantava hinos com seu violão, que inspiravam os ouvintes a cantarem e a buscarem o seu Criador e sua justiça. Ao lado do homem, estava sua mãe. Senhora de idade, mas cantava e batia palmas com o vigor de uma jovem nos seus vinte anos. O homem tornou-se um santo, um condutor de almas para o Pai. Ele através de seu violão e voz resgatou muitas vidas humanas ao Criador. Por isso o Inferno empenhou forças para arruiná-lo.

 

O anjo com seu dom musical participou, no campo espiritual, do louvor com sua harpa e um grande momento de júbilo ocorreu ali. Doentes foram curados, casamentos foram restaurados e planos de caridade e benevolência foram elaborados!

 

O anjo se alegrou intensamente.

 

Porém, antes de partir e seguir seu rumo, pois tinha tarefas a cumprir, o anjo pôde ouvir de um lugar muitíssimo profundo o ranger de dentes e gritos de blasfêmia. Sons de demônios descontroladamente enfurecidos. Ele sorriu, pois os Céus se importam em proteger a humanidade da desgraça e das mentiras vindas do Inferno. O Criador não esqueceu de sua Criação e os anjos estavam lá para servi-lo a manter os seus fiéis e santos protegidos e inspirados para buscar a justiça e o bem.

 

Ele então abriu suas nove grandiosíssimas asas e elevou-se suavemente ao céu, deixando para trás uma brisa cuja melodia inspiraria canções de amor para aqueles que a sentissem.

 

João Flávio
Enviado por João Flávio em 05/03/2024
Reeditado em 01/04/2024
Código do texto: T8013509
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