Metodologia acerca das sensações do mundo
"A biblioteca está vazia", ouvira certa vez. Esta colocação insensata nega-se em si mesma e destroça o coração do sonhador. Ora, os livros, em cujas páginas corre o fôlego da floresta; os bolores 'ruminantes'; as paredes e estantes sempre rangendo na tentativa de esconder-se do silêncio... Não são estas prova de vida? Ah, se há uma coisa que levarei comigo até a morte é a magnificência de ser, mesmo na ausência, que somente uma biblioteca tem. Caminhei lentamente entre as prateleiras absorvendo o cheiro de velho, tentando escutar o que os livros conversavam. Algumas moikos já haviam começado seu trabalho noturno, limpando páginas ou ordenando novos exemplares. Eram, contudo, o que chamam de 'almas discretas' e mal podiam ser ouvidas ou vistas entre as sombras que guardavam as porções perdidas das estantes.
Naquela noite procurava Ozbiru. Informei-me com uma das moikos que, deixando seus afazeres, apontou com o dedo minúsculo para cima, de onde um ratinho carrancudo atirava livros sem piedade sobre uma camada densa de ar. Apesar da imagem ser familiar, aquele não era um dia qualquer, mas Ari. Em dias como aquele, onde a Lua e a estrelas entravam em festa, dirigia-me aos aposentos de quem detinha o maior número de palavras. Ozbiru curava minha solidão. Pegamos alguns livros velhos e sentamo-nos no coração do local, a luz vinda dos céus nos banhando.
— Hum...— semicerrou os olhos analisando-me— É sobre o tempo? Ou então...Estaria planejando partir de Ellrur?
— Não. Apenas sinto-me sem propósito, contudo não planejo deixar meu lar. Ora, minha face transparece tamanho aflito?
— Mais que isso, menina. Vejo algo triste escondido, entranhado em cada traço do teu rosto. Seria a praga do mundo atual? Eles chamam de apagão. Algo como sentir-se morto.
— Não...Não. Sinto-me sozinha, é verdade, mas isto não poderia ser resumido ao vazio. Ozbiru, o que quero dizer é que não reconheço qualquer serventia minha ao mundo.
— Bobagem! Bobagem! Quem disse que precisa servir ao mundo? Não tens qualquer obrigação. A vida que lhe foi dada...Bom, isto lhe pertence e deve ser usado como deseja. Srta. Pondraci, não estava reescrevendo a Metodologia Acerca das Sensações de Mundo?
Meus olhos arregalaram-se. Descruzei as pernas, talvez tranquila, talvez confusa, mas sem dúvidas abobalhada— Havia me esquecido. Como pode ser?
— Sobre o que escrevera? A Saudade nas asas de uma borboleta? Ou então a expectativa sobre o fluxo do tempo? Ah, sim, citara o amor pelo desconhecido, este que possui o cheiro da vela, a ternura do quarto espesso, os sonhos em um livr-
— Está certo, caro Ozbiru! Como sabes de tudo isso? Devo dizer que assusta-me o alcance de tua sabedoria. Uma alma que conhece-me mais que eu mesma.
— Não. Eu reconheço o que transmite, afinal as pessoas são como livros. O que sei, ora— ele gargalhou— é o mesmo que tu sabes sem saber que sabes. Isto, contudo, não nos importa agora. Esta é a sensação que me interessa descobrir hoje com a senhorita. Amor. Srta. Pondraci, já desfrutou desta coisa incompreensível? Quebre-a para mim, desmonte-a e me reescreva o que é amar.
Segurei os fios de cabelo sobre a testa. Algo em mim sabia qual a sensação de amar, contudo não poderia dizer que amei. Talvez tivesse amado, mas o tempo roubado isto de mim, ou ainda apenas detivesse todas as "eus" pré-determinadas e minha versão futura estivesse mostrando-me que sim, amaria assim.
— Não posso dizer que já amei, no entanto bem sei como é este sentimento.
— Fora aí que erraste, Pondraci querida. Está criando ideias acerca das sensações, idealizando-as como apenas uma alma sonhadora é capaz de fazer. Mas espero que não caia na sua armadilha. Deves escrever acerca de sensações reais, não imagens incertas— percebendo minha expressão continuou— Evidentemente que não estou dizendo para que trates as sensações como qualquer pessoa o faz, exagerando-as ou as incobrindo.
— Ah, sim! Pude compreender isso. O que preocupa-me é como diferenciarei uma sensação inventada de uma verídica.
— As verdadeiras sensações são como um toque de intuição, elas falam por si mesmas. Nelas, todas as peças se encaixam. Sensações verdadeiras são simples, como as paredes desta biblioteca, também como ela são transparentes no que são.
Esperava que Ozbiru continuasse a falar e, quem sabe, pudesse dar-me todas as respostas. Não que fosse preguiçosa— apesar de não negar que o sou vez ou outra— mas de alguma forma sabia que o conhecimento destas sensações sublimes, quase invisíveis à mente e à alma imatura, estas coisas iriam arrancar-me de forma bruta da realidade. E senti esta queimação, uma agonia que me estremecia causando inquietude. Não era como as árvores solenes em sua saberia, propriamente parte das sensações veladas do mundo— aquelas que causam calafrios e imersões— mas um elemento fugaz, sem mais conceitos. Era como se minha realidade se mostrasse efêmera, um quadro que rasguei. Agora, uma parede áspera e crua me analisava e eu a revidava. Isto porque, apesar de vazia, a parede detinha a capacidade de ativar, com maior precisão, todos os meus sentidos. Quero tocá-la, sentir suas imperfeições, construir mentalmente cada partícula e imaginar a história por traz da simplicidade contida nelas. Não que o quadro não pudesse fazer isto, contudo tinha uma armadilha em si mesmo, visto que a beleza das cores, das formas representadas, tudo isto distrai-nos da verdadeira essência ali guardada. O quadro deixa de ser ele para representar um mundo, criando sensações não tão táteis, como disse: frágeis. Mas a parede não.
Uma luz acendeu-se. Era isto, as verdadeiras sensações eram cruas, robustas, maleáveis. Uma mente treinada poderia até manuseá-las. Assim como nomeamos a dor, a alegria, a saudade e a liberdade; da mesma maneira que destruímos sua beleza com conceitos vagos, desta mesma forma fazemos com as sensações. O amor não deveria ser entendido, calculado, deveria ser apenas isto: sentido. E qual o problema nisto? Por que não aceitar a facilidade nestas palavras? Pensando comigo mesma encontrei a resposta. O homem precisa do controle do que está fora para sentir-se no controle do que está dentro. Se o mundo externo é um caos inexplicável, ele consequentemente também se torna. Mas isto é mera ilusão. O mundo não é um caos, talvez um conjunto de combinações sem resposta, mas não caos. O homem, porém, aquele que não se conhece ou não se atreve a analisar seus buracos secretos, este sim detém o caos, e este continua se escondendo em pequenas verdades. Vejo cordas tão frágeis, puxando-os, alargando seus sorrisos, mas esta imagem é somente tenebrosa, digna de piedade. O meu caos é diferente, pois o reconheço e aprecio e esta possivelmente é a diferença, pois se conheço o processo de funcionamento do maquinário, mesmo que este acuse uma futura desordem, eu irei prevê-la antes da catástrofe.