A Pequena Ninfa
O mar esteve feroz aquela noite, correndo desenfreado e se acalmando aos pés de alguma praia distante, mesmo que ainda não pudesse ser avistada.
A esperança de chegar a uma margem era comparável ao tamanho das ondas quilométricas que lutavam para engolir aquele minúsculo barquinho, e levá-lo para as profundezas do oceano. A ventania fazia a água correr e Anara torcia para que ela corresse até a areia mais próxima.
Ela havia feito uma promessa depositada sobre um pingente de pedra adornado em linhas finas, provavelmente feito por outra pedra mais afiada. O fio que rodeava seu pescoço, e a assegurava da firmeza do pingente sobre seu busto, era amarronzado, trançado e cuidadosamente retirado das palmeiras de onde, um dia, ela viveu. Anara se agarrava ao mastro daquele barquinho, orando para que as sereias não a comessem. Com certeza havia sido uma péssima ideia ouvir as histórias de seus tios antes de embarcar na sua missão mar a fora.
Anara era uma mocinha pequena de pele bronzeada e tranças claras, enfeitadas com flores. Seu corpo fino e magro era tão sensível que parecia se quebrar a cada forte baque contra os respingos que as ondas a jogavam. Por um breve momento ela se questionou se aquilo era realmente necessário, se sua tribo realmente precisava de tantos jovens assim: jogados pelo mundo… Sendo mortos por uma maldita onda. Se perguntava se aquilo não era um abate. Como seus pais, tios e primos sobreviveram aquele rito de passagem? Talvez fosse por eles serem mais robustos e terem mais força bruta, mas… Anara não. Ela era pequena e raquítica, a única coisa que lhe restou fora a pouca inteligência que, talvez, ela pudesse ter herdado de seus familiares.
Enfim, independente de qual fosse os motivos de sua tribo, ela havia feito uma promessa a sua mãe que, mesmo com os comentários maldosos de seus vizinhos de tenda, acreditou que ela voltaria com vida e que não afundaria até se juntar às algas do mar.
Ela agarrou-se à promessa física, apertando contra o peito aquele pingente onde sua mãe deixou escorrer uma gota de sangue, simbolizando que sempre estaria com ela. Pena que não poderia viver na escuridão que suas pálpebras a proporcionaram, ela tinha que abrir os olhos, mesmo que isso significasse ficar frente a frente com aquelas ondas que a ameaçavam de tantas maneiras. Era melhor afundar enxergando a não saber o que foi que a tinha atingido, e foi o que aconteceu, assim que seus olhos amendoados avistaram a grande onda que ia em sua direção, o sal marinho atingiu suas orbes e, por puro impulso, ela se soltou do mastro e afundou junto com seu barco. Anara morreria assim? Por culpa do sal?
Mas que tipo de morte era aquela, uma morte
patética por causa de sal? Antes ela pudesse pensar isso, assim que afundou, o oceano se tornou calmo e escuro, ela não queria voltar para superfície, sabia que não tinha a menor chance. Assim que ela subisse seria mandada de volta para fundo e isso só ia a deixar desesperada, coisa que ela não sentia ao lado dos peixes. Talvez, só talvez, ela devesse se importar, mas Anara só se importou de verdade quando sentiu o ar se esvaindo. Ela ainda via a parte de baixo do seu barco, aquela área suja e coberta por ostras que deixava ela agoniada. Anara nadou até lá, colocou toda força que havia guardado durante seus doze anos de vida apenas para aquele momento.
Aparentemente a distância era pouca, mas a água a puxava para o fundo, o que apenas dificultava suas chances de viver.
Ela batia suas pernas e braços contra a correnteza do mar, enquanto as pequenas bolhas de ar tampavam sua visão a cada mover de suas mãos contra a água salgada. Anara suspirou fundo e desesperada assim que suas narinas foram contempladas por ar puro. Finalmente na superfície, ela procurou por todos os lados o barco, que, por um breve momento, sumiu de sua vista. Quando se deparou com o que seria parte de seus futuros pesadelos, uma grande e súbita onda a engolindo de uma só vez, fazendo-a afundar novamente enquanto passava por cima de Anara que, subindo para superfície de novo, com a força da correnteza, ela foi levada até seu barco novamente.
Um sorriso largo e cheio de esperança surgiu no rosto da garota, ela se segurou na popa de seu pequeno barquinho tentando erguer seu corpo para dentro do convés. Ela se prendeu a possibilidade de segurar-se ao mastro, mas se esqueceu da existências das ondas, uma outra que se chocou contra seu corpo e causou um contato brusco entre sua cabeça e a popa de madeira… A fazendo apagar por completo, deixando que as ondas e correntezas a levassem para longe.
…
Ela lutou contra a dormência de seus olhos, tentando prender seus braços nas bordas do barco. Foi como adormecer nos braços de seu pai. O chiado do mar e o movimentar das águas se tornaram tão baixos quanto o som dos ventos, ela apenas sentia os respingos d'água contra seu rosto tentando acordá-la, mas foi inútil. Anara se soltou da popa e deixou que seus olhos a levassem para um sono profundo, enquanto sentia sua cabeça latejar aos poucos como se fosse um som abafado.
Longe, bem distante do que seria civilização. Anara acordou com parte do rosto coberto por areia fina e sentindo um leve molhar nas pontas dos dedos dos pés, ela abria seus olhos lentamente ao mesmo tempo que seus ouvidos captavam o som ambiente. A primeira coisa que viu foram palmeiras altas decoradas como cocos verdes e pássaros tropicais em suas folhas, demorou um pouco para ela ouvir o som dos atobás próximos ao seu corpo caído de bruços. O bico grande e fino a bicaram com pequenos intervalos de tempo entre cada bicada, aquela fina parte do pássaro a cutucando foi o que a fez criar forças para levantar, e sentar sobre os joelhos.
Ela olhou ao redor enquanto segurava sua cabeça que ainda estava turva e tonta, Anara não arriscaria ficar de pé agora e desmaiar novamente, ela decidiu ficar lá, sentada encarando o mover das folhas de palmeiras o cantarolar estridente dos Atobás — seus olhos se prenderam na entrada para a floresta, não era uma selva como achou que seria. Era uma mata seca e escura, com grandes árvores altas e arbustos largos. Que erva medicinal ela acharia ali? Afinal, era o objetivo pelo qual seus líderes mandavam os jovens mar a fora. Como ela voltaria, agora sem barco, e sem ervas? O único jeito era criar um jeito, não tinha o que fazer a não ser improvisar.
Quando teve certeza de que sua cabeça aguentaria ficar ativa enquanto estivesse de pé, ela se levantou devagar e decidiu explorar a floresta. Já tinha passado por um mar escuro e valente, um outro ambiente escuro não a faria recuar agora. Ela passou por entre os arbustos, sendo arranhada de leve por alguns pequenos espinhos. Anara seguiu sem rumo, cada vez mais dentro da floresta. Estava com sede e fome, mas não era acostumada com florestas, não sabia o que poderia comer, o que poderia curar — qualquer deslize precipitado poderia levar à morte ou paralisação de seu corpo — foi quando, por obra ou sorte do destino, após empurrar as folhas largas caídas de uma árvore, que ela não reconhecia qual a espécie. Anara viu uma clareira e uma cachoeira belíssima, ela torceu para que água fosse potável enquanto corria até lá. Ela se jogou na água e a provou, era doce, tão doce que por um instante ela achou ser um lago inteiro de mel. Um sorriso grandioso se formou no rosto dela, Anara até sentiu sua cabeça dolorida se curando aos poucos.
Essa água é milagrosa! — ela pensou.
A luz batia contra a queda d'água e a fazia brilhar como um céu estrelado, fora quando, subitamente, Anara se encolheu ao ouvir um rugido próximo… Fazendo a água tremer. Foi tão subitamente que ela nem teve tempo para formar as expressões surpresas em seu rosto. Anara sentiu medo, um medo tão profundo que suas mãos começaram a tremer. Aquelas águas tinham espíritos protetores? Será que Anara havia violado as leis daquela floresta
misteriosa? Ela não sabia, mas sentiu em seu peito de onde vinha aquele urro, ela não tinha motivos para seguir aquela intuição… Mas algo, talvez curiosidade, que mesmo assustada a fazia seguir para onde sua intuição a levava.
Ela seguiu até as proximidades da cachoeira, sentindo a queda d'água molhar suas tranças, ela atravessou para além da cascata descobrindo uma caverna úmida e escura. Onde, de imediato, ela se viu de frente para uma grande criatura branca com o corpo coberto por espinhos. A tal criatura tinha os braços e pernas grandes, seus olhos eram escurecidos, mas tristes. O monstro se encolhia em seu canto e evitava olhar para Anara, que estava paralisada encarando aquela fera. A criatura urrou de novo, mas dessa vez foi tão baixo quanto o miado de um gato enfraquecido.
— Você está bem? — ela não sabia porque tinha dito aquilo. Saiu tão involuntariamente quanto uma tosse.
A criatura urrou novamente, dessa vez mais alto que a última vez. Tentando afastá-la, talvez.
— Eu — ela ponderou — Eu posso te ajudar, você está ferido?
A criatura finalmente decidiu olhar para Anara, e ela avistou aquelas lágrimas grandes escorrerem pelos espinhos de seu rosto. Anara não entendi por que dizia aquilo tão naturalmente, como se conversando com uma pessoa normal ou com um bichinho de estimação. A fera a olhou esperançosa e ergueu uma de suas patas escondidas, e lá estava o problema, uma flecha com a ponta de ferro cravada na palma — então ele entendia o que ela falava — Anara se surpreendeu ao ver aquela flecha causando dor em uma criatura tão grande, ela se aproximou com passos largos e vagarosos.
— Quer que eu tire? — ela se aproximou, se agachando próximo a pata que a fera ergueu em concordância — Vai… vai doer — ela diz quando coloca as duas mãozinhas sobre o cabo da flecha, pronta para puxá-la.
Um urro alto, fazendo todo o ambiente tremer, ecoou quando a flecha saiu da pata dele. Estava tão profundamente cravada, que, quando retirada, fez Anara cair com a flecha nas mãos. A criatura, ao sentir a liberdade na pata, se levantou e contemplou Anara com o seu tamanho imenso. Por um momento, ela achou que seria atacada e morta ali mesmo. Havia durado tanto e o seu ato de bondade a levaria ao túmulo, mas a fera passou por ela saindo da caverna a deixando sozinha e confusa. Ela jogou a flecha no chão, com o sangue azulado da fera sujando suas mãos, e correu em direção a ele. A fera entrou no lago da cachoeira e afundou a pata ferida na água, Anara encarava de longe o que a criatura fazia, e com um piscar de olhos, a ferida larga e funda que demoraria meses para cicatrizar, se curou em minutos ao contato com a água.
— É sagrada… — ela sussurrou maravilhada — E você é um guardião, não é? — ela perguntou amigavelmente, ignorando a postura e aparência ameaçadora da fera, que apenas acenou com a cabeça.
Anara sorria para ele enquanto a criatura a encarava com o rosto duvidoso. Decidindo ignorar a presença gentil da garota, ele seguiu para fora da cachoeira entrando na floresta.
— Ei! — ela riu correndo atrás dele, ao se certificar de que a fera não era uma ameaça — Meu nome é Anara.
A fera a encarou indiferente, mas não se sentiu ameaçado por Anara. Talvez ela poderia ser diferente dos outros humanos, talvez… Uma amiga.