Pensamentos de vidro

A grande estátua de vidro está presa ao ciclo da excentricidade: a princípio infalível, mas acaba largada à inércia da agonia. O que fizeram contigo grande estátua? Ah, ela está cansada da mesmice, da chatice, da renite, de fingir que entende a vida!

Quero arrancar a tatuagem interna que desenharam sob o meu cérebro. Desta vez, decidi que não vou rimar os amores, nem os desencontros... Eu vou narrar à história de uma vida de vidro. Será que alguém me ouviria?

Houve um corte transversal da simplicidade de uma estátua de vidro, ainda na evolução de seu surgimento, depois mais algum bocado de frêmitos de vida, e, afinal, um extraterrestre deu o nome de traumas. “Olha só, acho que seria o caso de tu procurares um terapeuta”. Entretanto, o que é de vidro sempre tem um outro plano, é o próprio espelho, e tem uma predileção pelo caráter heroico. A ida ao terapeuta lhe pareceu muito pouco sedutor.

Pobre estátua! Ela já está cansada dos seus dilúvios de alucinações; lágrimas, e de conversar consiga mesma, dentro do banheiro, sobre assuntos de outras vidas – extraordinário! O quarto, seu refúgio, é um labirinto de cristal e ela usa-o para criar novas estratégias, que poderão mudar o mundo. Uma personalidade bastante reservada: tímida.

Olhos castanhos arregalados tentando observar o que é microscópico. E a cabeça longe, muito longe mesmo... A mãe, irritada, questiona o seu ar disperso:

“Fez o que eu te pedi?”

“Não... Esqueci.”

“Você tá pensando o que, heim filha?! Que a vida é fácil? Vive com a cabeça no mundo da lua!” “Tá pensando que lá fora é poesia? Não, não é poesia! Vem cá, você tá em que planeta?”

“Depois do injusto rebaixamento de Plutão, me mudei pro planeta ‘Transe’, estou entre o irreal e o real”.

Em “Transe”, sim! Porque se mundo é mesmo isso o que ela ver, é melhor se refugiar dentro de sua mente. Lá, na sua mente, existe um mundo mágico, parecido com o de Alice. Lá ela pode dizer o que sente, pois ninguém vai achar que se trata de neuroses. Lá as interlocuções são parecidas com as que ela tem com o espelho, a exemplo dos diálogos entre Dr.Carl Gustav Jung e Sabina Spielreim:

“Lá em Marte eles não têm filhos.”

“E por que não?”

“Porque ninguém faz amor em Marte!”

“Como você sabe disso?”

“Eu estive lá.” (...)

“Não pode me curar, doutor.”

“Por que não?”

“Por que o senhor é são e eu não sou”.

“E daí?”

“E daí... o senhor não pode me entender.”

Depois das cenas reais do filme, ela sempre teve vontade de interpelar a Srta.Spielreim:

“Como se representa o amor em Marte?... Qual é o motivo das pessoas não fazerem amor em marte?... Lá as pessoas não amam?”

Não. Com certeza, em Marte, eles encontraram outra maneira de se entrelaçarem aos corações, e de satisfazerem as vontades dos corpos. Não se sabe qual, por certo muito mais digna do que a humana (aqui eles fazem amor e não amam, muitas vezes, sequer sentem prazer de verdade, trata-se tão-somente de curiosidade!). Não é mesmo, Srta.Spielreim? A estátua de vidro admira muito a maneira que a destemida “guardiã da alma” se entregou à paixão proibida! Contudo, como lhes foi dito, não rimarei os amores e nem os desencontros, portanto, retomemos a narração...

O fato é que a figura de vidro sempre teve vontade de conhecer Marte. “Acho que lá as pessoas são mais parecidas comigo”, disse ela. Por quê?! “Bom, desconfio que lá os corações das pessoas não sejam frívolos buracos negros”, concluiu. E lá, talvez, os marcianos prestem à atenção ao que ela diz.

A estátua de vidro tem uma visão negativa dos humanos?! Não, ela apenas é uma mutante macróptera, esse tipo de alteração genética é inadmissível na humanidade. (os homens não podem entendê-la. Por quê? Porque eles são sãos, assim como Dr. Jung.). E ainda mais: ela está exausta de ver as crianças jogadas pelas ruas; traficantes fazendo o “circo pegar fogo” e a “justiça” fingindo não ver que os principais responsáveis são os homens de ternos de vidro, seres “pensantes” atacam brutalmente os animais e a natureza, guerra em prol da “paz”...! E ninguém silencia por um instante, para interrogar-se: “O que eu posso fazer para vivermos num mundo melhor?” Hoje, corações glaciais se preocupam com o novo modelito do Fashion Week, e dane-se a babaquice de amor ao próximo, isso é coisa de ativistas, ou de fanáticos religiosos...

Parece, mas não é – absolutamente – não é fácil... Explicar ao ser humano que alma sempre lhe transparece aos olhos, e mundo é míope! Oh quantas crianças perderemos ainda?

Ah, talvez a mãe dela esteja certa: não é tempo de poesia. A vida não é poesia! Acontece que só os transpiram versos serão salvos desta miopia. “Se você pouco vê use lentes ou transforme o mundo”. Li certa vez isso, e nunca mais me desfiz da casual reflexão, que a frase me trouxe. E desconfio este seja o marketing da vez (... “transforme o mundo”.), o qual salvará a humanidade de si mesma. Oh perdoe-me, meus amigos, se me torno repetitiva!

O poeta, várias vezes, se questionou a respeito da existência de uma palavra que nunca foi proferida. Decerto, a estátua de vidro também gostaria de pronunciar o que ainda não foi dito. Contudo, o que lhe cabe é um desabafo: “Então, explica pra mãe que a poesia me deixou presa à esquisitice, quando sensível demais para a realidade que vivemos hoje”. Ana Cristina César assentaria: “é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”.

E a nossa protagonista, estátua, como sempre, e sempre uma estátua. Ela vai continuar no seu cerceamento introspectivo de mundo, já que lá a vida não parece ser tão dura: gritos alucinados soprando em seus ouvidos, e o seu pensamento de vidro é uma hipérbole infinitamente íntima e desordenada.

Ela está presa numa privação de fala. Porque é mais uma criatura de vidro, que tem medo de se quebrar! E eis aqui, amigos, ei-lo aqui: isto... que também é – apenas ─ meu sutil pensamento de vidro.

Luana Zenaide
Enviado por Luana Zenaide em 01/02/2024
Código do texto: T7989757
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