Nasce uma Fada
Eu tinha o mesmo problema de Wendy Darling: minha alma gêmea era alguém que não poderia estar ao meu lado. O caso dela era muito particular, pois um namoro com Peter Pan seria inviável. Ele não conhecia o romance, muito menos o desejo. Wendy teve um final triste para o seu primeiro amor, o mesmo que o destino reservava para mim. Afinal, não importava que minha amada fosse adulta, já que ela não vivia no Mundo das Fadas. Ah, se eu tivesse poder para buscar visitas no mundo terreno, assim como Peter Pan tinha...
Nunca esquecerei do dia em que a encontrei pela primeira vez: foi num dos poucos momentos em que fadas circulavam pelo plano terreno. Estava trabalhando de acordo com o que me foi exigido, juro! Mas como manter a concentração quando alguém tipo a Cinderela entra no seu campo de detecção?
Vocês podem pensar que sou superficial e me encantei pela primeira pessoa bonita que encontrei. Não deixa de ser verdade, mas não era sua aparência corpórea que continha a beleza hipnotizante. Nós fadas somos cegas, percebemos o mundo pela magia contida nele. Desse modo, foi a magia emanada pela Cinderela a responsável por me fazer largar tudo e segui-la.
Sua magia era pura de uma maneira rara de encontrar. Transmitia dor, muita dor, só que não existia um resquício de rancor. Sua aura era a mais pura paz, a paz de um sonho. O sonho de uma vida melhor.
Aquela energia positiva me viciou. Afinal, mesmo no Mundo das Fadas havia conflitos e sentimentos condenáveis. Éramos tão pecadores quanto qualquer humano. Nesse contexto, sentir magia quando ela emanava emoções negativas era exaustivo, e ficar perto da Cinderela era como sentir um gostinho do paraíso. Precisava ir atrás dela, independentemente da bronca que levaria. Se música era o remédio da alma, então Cinderela era música para os meus ouvidos.
Acompanhei algo que me quebrou mais do que uma simples chamada de atenção: a razão do sofrimento da moça. Ela estava junto de três pessoas, eu conseguia sentir a aura negativa delas. Causou-me dor e inibiu a sensação de aconchego da magia da Cinderela. Pensando bem, acho que só me senti assim depois de descobrir serem a fonte do sofrimento dela.
Era vítima de maus tratos em sua própria casa. Sua madrasta e suas duas irmãs postiças eram as responsáveis por explorar seu trabalho como cozinheira e faxineira. Por esse esforço, recompensavam-na com trapos para vestir, restos para comer, um quartinho imundo para dormir e agressões físicas ou psicológicas se fizesse algo “desagradável”.
Presenciei esse show de horrores por segui-la até em casa. Ela levou logo de cara uma bronca por demorar no mercado. Segundo as três, estava quase na hora do baile em que o Príncipe Encantado iria escolher sua esposa e as irmãs postiças precisavam dos cosméticos pedidos. Cinderela foi educadíssima e pediu desculpas, as quais não foram aceitas e só geraram mais gritaria. Principalmente quando mencionou ter encontrado um vestido baratinho para usar no baile. Todas foram firmes em proibi-la de ir.
Não acompanhei o resto, porque foi bem nesse momento em que a líder da expedição me encontrou. Minha vez de ouvir um sermão, mas o meu foi merecido. Fui obrigada a voltar aos meus afazeres, coisa que me gerou um enorme sofrimento. Sentir aquela magia se afastando doeu como se arrancassem parte do meu corpo, minhas asas batiam com dificuldade e era difícil voar na direção contrária. Senti-me expulsa do paraíso.
Aqueles sintomas não me deixaram dúvidas do que ocorrera. Como tudo tinha acontecido daquele jeito tão sedutor e pouco profundo, só havia uma explicação: era a magia das almas gêmeas. Já tinha visto ela em ação, então era capaz de reconhecê-la.
Uma fada, e acredito que os humanos também, tinham diversas almas gêmeas espalhadas pela geografia. Já tive o privilégio de encontrar uma, porém nosso relacionamento não deu certo. Podia parecer que nunca encontraríamos outra, mas geralmente cruzávamos com várias.
De acordo com o livro, Wendy foi capaz de conhecer uma nova. Deve ter sido mais difícil para a moça reconhecê-la do que foi para mim, já que humanos enxergavam fótons e não sentiam magia. Por isso, o processo de percepção é bem mais lento.
Após essa constatação, jurei voltar ainda naquele dia para ajudar Cinderela a ir ao baile. Afinal, nada como uma festa para esquecer os problemas.
. . .
Cinderela não conseguia entender por que não se sentia à vontade com o Principe Encantado. Seria um erro dela? Dele? Ninguém sabia, mas ele parecia tão incomodado quanto ela. Quem poderia adivinhar que o par mais belo do baile seria um fracasso de casal?
Essa falta de conexão afetava a estabilidade do reino. Pois, àquela altura, o Príncipe Encantado já era o Rei Encantado. O baile para escolha de uma esposa foi feito às pressas justamente porque o pai do herdeiro estava doente e logo pereceria. Portanto, cabia ao novo governante gerar integrantes para a linha sucessão com urgência, porque uma dinastia sem herdeiros era extremamente frágil.
Cinderela estava desesperada. O Rei Encantado era uma excelente pessoa: gentil, humilde, preocupada com a população... Se ele fosse um cretino, ainda haveria razão para não se encaixarem. Mas e sendo um bom amigo? Como conseguiria conceber se ambos sentiam repulsa ao se tocarem?
Foi nesse momento que ela sentiu algo dentro de sua alma. Havia um jeito, claro que havia! Ela só precisava ter fé em seu desejo que um dia a oportunidade apareceria. Oportunidade essa que já tinha vindo ao seu encontro como sua Fada Madrinha.
Cinderela lembrava desse momento como se tivesse acabado de ocorrer. Assim que foi abandonada sem transporte e com o vestido rasgado, foi ao chafariz da casa e começou a chorar. Queria tanto ir naquele baile espairecer! Desejava esquecer sua vida triste por algumas horas, entretanto nem isso era permitido fazer.
Foi então que viu uma senhora cega pedindo um pedaço de pão e um copo de água. Essa cena a fez sentir-se muito culpada. Veja só: ela se lamentando por não conseguir ir a um baile chiquérrimo enquanto outras pessoas eram privadas de condições básicas de subsistência e ainda precisavam lidar com a fragilidade de uma deficiência.
Não pensou duas vezes: montou uma refeição rápida para a mulher. Tão logo a pedinte terminou de se alimentar, um brilho cegante surgiu diante de Cinderela e uma outra pessoa apareceu no lugar da senhora cega. Uma fada! Ou pelo menos achava que era. A mulher tinha asas de morcego, orelhas gigantescas e não possuía olhos. Mesmo assim, não era nem de longe assustadora. Pelo contrário, era magnífica! Só de olhá-la, já sentiu algo diferente que não soube nomear.
Naquele dia, recebeu uma carruagem e pediu por um vestido novo. Ficou sem jeito em fazer uma demanda, mas a autointitulada Fada Madrinha não tinha olhos para perceber que o vestido atual fora destroçado.
Essa ajuda mágica permitiu-lhe escapar dos abusos sofridos pela família herdada do pai. Graças a ela, tinha um marido o qual sempre a tratou bem. Sabia que seria atendida nessa nova situação, pois podia confiar na Fada Madrinha. Por isso, Cinderela clamou por ela com todo o seu coração.
Ela demorou a aparecer e Cinderela estranhou. Da outra vez foi tão imediato... Passaram-se alguns meses, até que completou um ano da realização daquele baile. Foi nesse dia que a Fada Madrinha apareceu. Será que era o único dia do ano em que podia visitar o plano terreno?
Quando novamente olhou o rosto do ser mágico, aquela mesma sensação invadiu seu corpo. A diferença foi que conseguiu identificá-la: era atração, aquilo que almejava sentir pelo Rei Encantado. Ela tentou ignorar essa percepção nada conveniente.
– Cinderela, como é bom te ver novamente! – Assim que chegou, a Fada Marinha correu em lhe dar um abraço apertado. – Fico feliz que tenha se livrado daquela gente... – concluiu com um sorriso.
Ouvir aquelas palavras sensibilizou a rainha, que não se controlou ao fazer o pedido:
– Queria sentir pelo meu esposo o que sinto por você. – Os olhos da Fada Madrinha se arregalaram ao escutar isso.
– Mas... o que você sente por mim? – De repente a ansiedade tomou conta da fada, que sentiu seu coração acelerado.
Percebendo o que tinha dito, Cinderela ficou vermelha de vergonha. Mesmo assim, fez esforço para não perder a pose. Respirou fundo e tentou manter em mente o que realmente importava: a gravidez.
– Eu não consigo sentir atração pelo meu marido, mas nós precisamos gerar um herdeiro o mais rápido possível. Por favor, me ajude. – Suplicou com o mesmo desespero encantador da última vez, aquele que derreteu o coração da Fada Madrinha.
– Posso realizar o desejo de vocês. Mas, como seria muito antiético, preciso da autorização da Mãe Natureza. Você e seu marido precisam pedir a ela, eu apenas usarei magia para intermediar o processo. – Declarou a fada. – Cadê ele?
Cinderela procurou o Rei Encantado para contar as boas novas. Ele não pareceu empolgado com a possibilidade de usar magia para fazer aquilo. Aliás, quem ficaria? Até estranhou que sua esposa estivesse tão animada. Porém, ele logo conseguiu desvender a verdadeira razão de toda aquela alegria: a presença da Fada Madrinha.
Estava pensativo enquanto acompanhava a mulher, precisava tomar uma importante decisão que impactaria na felicidade de Cinderela. Ela era uma boa companheira e ele só lhe desejava o melhor. Portanto, não se arrependeu ao pedir também algo para a Fada Madrinha:
– Eu só preciso de um filho e está muito claro o quanto vocês se gostam. Não quero impedir esse romance. Existe alguma maneira de vocês ficarem juntas?
– Só uma fada pode ir ao Mundo das Fadas e nós fadas podemos caminhar no plano terreno apenas por um dia no ano. – A resposta foi triste, porém uma ideia surgiu na cabeça da mágica criatura e ela logo sorriu. – Na verdade, existe sim um jeito de driblar isso. Se vocês todos concordarem.
Após ouvir a explicação, ambos toparam fazer aquele truque para que Cinderela fosse viver entre as fadas. Por isso, pediram com todo o coração à Mãe Natureza para que ela realizasse aquele desejo. Quando ouviram os dizeres “Bibidi Bobidi Boo”, olharam um para o outro e finalmente sentiram atração.
. . .
Nove meses depois, nasceu um herdeiro para o trono do reino.
Cinderela não parava de olhar para o filho. Desejava guardar na memória cada milímetro do rosto dele, pois sabia que cegaria ao partir para viver com sua alma gêmea. Uma fada nascia quando um bebê ria pela primeira vez, então sentia um misto de medo e ansiedade com o primeiro riso do herdeiro.
Era triste abandonar aquele serzinho tão desejado, mas a mãe sabia que a criança estaria em boas mãos com seu pai, o Rei Encantado. Por isso, quando ouviu a fatídica risada, Cinderela também riu enquanto juntava-se à sua Fada Madrinha. A risada dela não durou muito tempo, pois logo seus lábios foram tomados por aquela que a esperava do outro lado.
Então eis aqui a história de como um filho deu à luz sua própria mãe.