RAPUNZEL NÃO É MAIS AQUELA. NEM O PRÍNCIPE
RAPUNZEL NÃO É MAIS AQUELA. NEM O PRÍNCIPE
Ping-pong, ping-pong, ping-pong. Na área de recreação do prédio, algumas garotas e garotos continuam a jogar. A bolinha bate nas raquetes e por vezes fica na rede no centro da mesa, ou é jogada fora dela do lado adversário. Ponto para o Julinho. Ligia reclama:
— Agora é minha vez. — E substitui o Mandrake no outro lado da mesa. O jogo recomeça: pingue-pongue, pingue-pongue, pingue-pongue.
No pátio ao ar livre, meninas e meninos deslizam seus patins no piso de cimento. Dentro da sala alguns jogam RPG, tentando parecer calmos. Mas muito excitados.
Ritinha Trocaletras e um grupo de alunos da mesma série do "Colégio Adriana Prieto", estão fazendo um trabalho sobre a leitura de um conto popular de nome Rapunzel. Hermano olha para ela com ares de pouca amizade, fala cheio de razão:
— A mãe dela...
— Mãe não, madrasta. Corrige Regininha Surfistinha.
— Trancou ela na torre porque ela soltava pum. Um atrás do outro, daí o nome dela: Ra-pun-zel.
Ritinha Troca letras, indignada, parte para a réplica:
— Toldo murndo zolta pum, não é moltivo para tlancar alguém numa tolre de calstrelo.
Hermano não se dá por vencido:
— Ela devia soltar pun fedido. A bruxa não gostava. Ninguém gosta.
— Mãe madrasta. Já disse. Mãe madrasta, não apenas mãe. Pronto! Corrige Regininha.
— Mãe, madrasta, bruxa. É tudo a mesma coisa.
Mandrake aproximando-se da turma pergunta:
— Começaram ou estão terminando? O que vocês escreveram sobre a maluca do cabelão que jogou as tranças enormes praquele bundão do príncipe engravidar ela.
— Ah, você está de palgode, por que lhamou o namolrado dela de bulndão? Está com invelja proque volcê nunca terve namolrada.
— Eu odeio garotas. Elas sempre acham que sabem tudo. Mandrake está bravo.
— O que você escreveu aí? Pergunta Hermano para Ritinha que está fazendo as anotações para o trabalho de classe.
— Eu não vou esclever essa coisa de blundão, a profelssora não vai gostar. Fala sério ou leva zelro. Ela tilra treu nolme do tralbalho.
— Ela não vai saber. Comenta Hermano. Ninguém vai me dedurar. É isso.
— Tu foi suouspenso nesse semeltre. Duas suspensções e não aceiltam tua maltrílcula no prólximo ano.
— Eu sempre vou odiar garotas. Sempre. Soltem pun ou não, tenham cabelão trançado ou sejam raspadas como o pai da Regininha.
— Não força, cara, trabalho de escola é coisa séria. Regininha impõe moral.
— A professora disse que precisa de ser nos conformes de como a gente fala. Hermano defende Mandrake e lembra que tem de sair para ir na “lan house” da 2ª sobreloja do prédio em frente.
— Tem game novo. O cara tem de ser muito fero para chegar no 15° nível. Deve de acertar pelo menos uns sessenta malas com tiros na testa. Não é pra iniciante.
— Muito fera, mano. Confirma Hermano, eu consegui ir até o sexto nível. E só joguei uma vez. Ontem. Acertei o estômago, o fígado, o coração, abri um buraco na cabeça de dois deles. Os ossos perfurados, o sangue jorrando, muito maneiro, brother. Hoje vou me concentrar mais e chegar até o nono nível.
— Não é da nossa tribo, bang. Ferra com eles.
— É tudo vagal, vamos detonar esses caras. É a lei.
Fazendo gestos com as mãos, imitando a torcida quando o time deles faz um gol, os garotos terminam a saudação batendo-se com as mãos direitas nas palmas das mãos.
Regininha Surfistinha volta a falar:
—Você leu a história da Rapunzel, cara. Temos de entregar a interpretação amanhã. Mandrake volta-se para ela:
— O que você escrever pra mim tá bom. Ela era uma tremenda vagabunda. Jogava as tranças da torre para o mala subir até o quarto dela na torre.
— Assim até eu, falou o Crispim.
— Muita sacanagem, mano. Eu vou dizer o quê? Que ela ganhou um barrigão de gêmeos?
— A professora não vai querer saber o que eu acho da popozuda com duas mães, criada de duas bruxas. Os pais a venderam por uns rabanetes. Que filhos da puta!
— Uma bruxa, mano. Não é fácil! Que dizer de duas?
— É bruxaria pra ninguém botar defeito, provocou Mandrake: “Eu sou gamado em violência. Nos jogos, na Tv, no cinema, na Internet, nos quadrinhos”.
— Escreve aí você e a Ritinha. Vocês têm simpatia por ela, a piriguete do cabelão. Depois a gente assina em baixo da redeação.
— Simplatia coisa nenhulma. Quelro é tilar uma nota broa pra não ter de alguemtar os prentelhos dos meus pais me prolibindo de ir um anilvelsário, usar a Intelrnet, ver telesvisão, cortlar minha mesalda. Tô flora!
— Tô fora! Flora é vegetação, plantas. Ritinha calou, mas ficou injuriada com a provocação de Mandrake. O rosto enrubesceu. Ruborizada, ela trincou os dentes, mas ficou calada.
— O boletim tem de ser assinado por eles, cara. Regininha, muito brava, protesta. A professora quer que a gente crie em cima da história. Dê nossa contribuição.
— E na lelunião dos pais halja marlhação, se a gente não faz o trablalho como ela quilser.
—E como ela quer, hein? Tá bom. Trocaram a filha por rabanetes porque estavam com fome. Não tinha trabalho na floresta pra quem não era lenhador.
— A bruxa só fez o papel dela, brother. Queria que Rapunzel cobrasse pedágio de elevador. Elevador de cabeleira pra quem quisesse subir na torre.
— Essa história tá ficando toda pra mim e a Ritinha. Vocês só vão assinar o trabalho.
— Tá bem. Minha interpretação é a seguinte: Era uma vez uma garota trocada pelos pais por rabanetes. A bruxa a trancou numa torre, e quando queria falar ou ficar perto dela, mandava ela jogar as tranças do cabelão para poder subir até ela. — Nesse momento Hermano falou que também estava nessa. E continuou a narração:
— Um príncipe que passava por ali e tinha ouvida Rapunzel cantar, ficou maravilhado com sua voz. Viu a bruxa chamar pelo nome dela e ela jogar as tranças. Quando a bruxa desceu e entrou na casa dela, ele apertou o botão do elevador ao chamar pelo nome Rapunzeel! Ô Rapunzel, joga as tranças. Por favor.
— Ela era virgem cara. Assim mesmo jogou. Aliás, por isso mesmo.
— Eu não garanto nada. Hoje, virgem só CD sem gravação.
— Queria parar de ser cabaçuda, adiantou Crispim.
— Nem toda loura é burra. Ela sabia se defender.
— A bruaca da bruxa demorava, mas o príncipe subia num instante. Ela ajudava puxando pra cima a trança.
— A bruxa então fez o papel dela, cortou os cabelos da solta pun, encheu ela de raquetada, e a levou para um local distante no labirinto da floresta. E falou: "Vire-se, filha da mãe ingrata. Agora você vai viver às próprias custas". O Hermano interferiu:
— Quando o cara chegou para o bem-bom, todo armado no tesão, chamando o nome da Rapunzel, a bruxa jogou as tranças dela pra baixo. E o príncipe que já estava todo subido deu de cara com o narigão da bruaca, cheia das acusações. Ela jogou o endurecido do alto da torre e ele caiu de cara nas plantas cheias de espinhos furando os olhos. Mandrake retoma a palavra:
-O príncipe ceguinho ficou vagando pela floresta feito um vagal, durante anos. Até que um dia Rapunzel, que tinha engravidado e pariu um casal de gêmeos, se jogou nos braços do pinguelo outra vez, vendo-o circular cafofo dela. As lágrimas dela caíram nos olhos dele e ele voltou a enxergar. Pegou a família toda e voltaram correndo para o castelo dele e viveram felizes para sempre. É isso aí.
— Agora põe aí o nome da gente e estamos conversados, impôs Mandrake.
— Vamos pra ““lan house”” que o nosso conto de fadas tá cheio de malas esperando para serem detonados.
—Boa botaria, cara. Hoje eu chego no nono nível de qualquer jeito.
— O game não é fácil. Não chega não, responde Mandrake. Nem que a vaca tussa.
— Por que selrá que esclebelam uma histólia de um casal tão idilota?
— Você está falando de qual casal? Perguntou Regininha.
Enquanto escreviam ouviam o ruído irreverente da bolinha raquetada: pingue-pongue, ping-pong, pingue-pong, pingue... De um para o outro lado da mesa.