Encontrando Estações

Luiz Gustavo nunca prestava atenção em cartazes com propagandas quando saía. Aquele dia, portanto, foi uma exceção. O cartaz anunciando viagens trazia descontos imperdíveis. Lembrou logo de seu marido Osmar, que amava praia, e pensou em comprar as passagens para fazer uma surpresa para o companheiro. Faltava alguns meses para o aniversário dele e comprando com antecedência conseguiria achar um preço acessível. 

 

Chegando na agência de viagens, foi atendido por um funcionário que lhe ofereceu um pacote para duas pessoas com passagens e hospedagem. O destino era Florianópolis. A propaganda feita do local pelo atendente foi o suficiente para convencê-lo, então pagou e tentou voltar para casa como se nada tivesse acontecido. 

 

Infelizmente, Osmar não chegou a viver o próximo aniversário, muito menos a viagem programada nele. Acabou adoecendo gravemente, foi hospitalizado e não resistiu. Luiz Gustavo teve sempre muito firme na memória o último pedido de seu marido: não cancelar a viagem e aproveitar o passeio. 

 

A viagem acabou não ficando secreta depois dessa reviravolta terrível. Osmar quis aproveitar ser um pacote para duas pessoas e sugeriu que o esposo levasse alguém junto para tentar se distrair dos pensamentos mórbidos que em breve assolariam a mente dele. Porém, o viajante não conseguiria ser frio a esse nível e apenas embarcou para fazer o último desejo daquele que amou. 

 

Luiz Gustavo caminhava tristemente pela Avenida Pequeno Príncipe. O nome foi dado em homenagem ao Antoine de Saint-Exupéry, que já passara por aquelas terras. Contudo, Luiz Gustavo não estava interessado. Afinal, a vontade de viajar já tinha ido embora há tempos. Foi apenas para honrar o pedido de Osmar. Não conseguiria, entretanto, convidar outro, porque tinha a sensação de que estava substituindo-o. Finalmente, terminou sua longa pernada e chegou em seu destino: a praia do Campeche. 

 

Já anoitecia e Luiz Gustavo pretendia assistir ao pôr do sol na beira do mar, uma das vistas mais bonitas fornecidas pela natureza. Seu instante de paz não durou muito, contudo. De repente, escutou um falatório bem próximo de si, que rapidamente tirou sua concentração. 

 

– Você veio muito forte dessa vez! – reclamou uma voz feminina. – Foi o inverno mais frio do século no Brasil, chegou a nevar em várias cidades! 

 

– Sai para lá, Primavera! – respondeu um homem na defensiva. – Foram ordens superiores. Aquecimento global é uma realidade e quanto mais quente é o Verão, mais frio devo ser. A Mãe Natureza sempre manda que busquemos o equilíbrio. 

 

Luiz Gustavo pensou que estava delirando, aqueles dois eram estações do ano?! Sabia que era equinócio de primavera, mas não esperava realmente perceber a troca de estações de uma maneira tão explícita. Pensou em como abordaria os dois, porque sua curiosidade estava a mil, mas nem precisou. Logo o Inverno reparou em sua presença e fez sinal para a Primavera. 

 

– Você provavelmente é mais um de meus fãs… – A estação gélida falou com ele. – Sou o General Inverno em carne e osso. Isso não acontece todo dia, uh? 

 

– “Para os vaidosos, os outros homens são sempre admiradores”. – Primavera revirou os olhos enquanto falava. – Ele está confuso demais para ter vindo até nós de propósito, acorda Inverno! Afinal, por que ele seria seu fã? 

 

– Porque sou o General Inverno, responsável pela derrota de Napoleão e Hitler. De qual ditador você já deu cabo, hein? 

 

– Mas estamos em Florianópolis, não na Sibéria! Aposto que ele prefere o Verão. 

 

– Você tem razão. O que estou fazendo aqui? Deveria ir à Stalingrado, lá sou respeitado. 

 

– Você sabe que o nome mudou para Volgogrado há muito tempo, não é? 

 

– Sério?! E por que não mudaram para Invernogrado? Soa muito melhor. – disse convencido. 

 

– Vocês são realmente estações do ano?! – Luiz Gustavo finalmente recupera a voz diante do choque. 

 

– É por isso que não gosto de aparecer para os adultos, as crianças nunca duvidam de nós. – comentou o Inverno. 

 

– Ah, Inverno… “Todas as pessoas grandes foram um dia crianças, mas poucas se lembram disso”. – Primavera respondeu. 

 

– E o que deu em você para citar duas vezes o Pequeno Príncipe? – estranhou a estação gélida. 

 

– Não sei, esse local é inspirador. – A resposta veio acompanhada de um sorrisinho misterioso. – Agora, diga-me qual é a razão dessa sua expressão tão tristonha? 

 

– É que hoje era o aniversário do meu finado marido Osmar, ele faria 39 anos… – disse enquanto já sentia as lágrimas querendo chegar. – Queria dar uma viagem para cá de presente, mas ele adoeceu e não sobreviveu até esse dia. 

 

Primavera deu um abraço em Luiz Gustavo, na tentativa de animá-lo. Enquanto isso, Inverno fez um sinal de que estenderia um pouquinho mais seu expediente, para que ela pudesse animar o homem. Quando o abraço foi desfeito, a estação gélida já não estava mais lá. Provavelmente havia retomado sua forma original. 

 

– O que você acha que pode fazer por mim, Primavera? Tudo que você faz é ativar instintos reprodutivos nos animais. Eu não estou interessado em puberdade ou cio no momento. – disse deprimido. 

 

– E, se estivesse, eu não poderia ajudá-lo. Sou apenas uma posição específica entre a Terra e o Sol em um dado hemisfério. Os seres vivos fazem sozinhos essas coisas de amadurecimento. Mas espero que eu possa ser útil no que você realmente precisa, afinal sou a estação da renovação e dos recomeços. – Ela sorriu. 

 

– Então você não é nenhuma espécie de Perséfone? 

 

– Perséfone, Flora, Eostre, Osíris, Cibele, Freya, Saraswati, Ishtar, Olwen, Asasa Ya, Mutin… Todos eles têm um pouco de mim, mas não sou nenhuma deusa não. Apenas consigo meus dias de humana duas vezes ao ano. 

 

– E como isso funciona? – Luiz Gustavo ainda não conseguia acreditar em nada daquilo. 

 

– Se nem vocês, que têm universidades buscando respostas para o universo dia e noite, conseguiram descobrir, por que uma simples estação do ano saberia. Algumas coisas simplesmente são assim. 

 

O mistério da personificação do inverno e da primavera desviou por um momento a atenção de Luiz Gustavo da perda de Osmar. Contudo, assim que decidiu não se importar mais com a lógica, essa dor retornou. Primavera percebeu isso e tentou pensar em alguma coisa para animá-lo, ao menos enquanto o Inverno não voltava cobrando a troca definitiva. 

 

– Olha… – A estação encarava o interlocutor, confusa. 

 

– Luiz Gustavo. – Ele entendeu que não saber o nome dele era a razão da dúvida. 

 

– Luiz Gustavo, “foi o tempo que dedicou ao seu marido que o fez tão importante. Nós corremos o risco de chorar um pouco quando nos deixamos cativar, mas se choramos por termos perdido o sol, as lágrimas nos impedirão de ver as estrelas”. – E Primavera apontou o céu, que àquele horário já era uma bela noite estrelada. – Pelo menos aproveite o passeio, vou ser a sua guia de turismo. 

 

A estação puxou o homem pelo braço e levou-o até um restaurante na beira da praia. 

 

– Antes das andanças, vamos comer um peixinho. – disse a estação com animação. 

 

– Eu já fui nesse restaurante hoje mais cedo, é meio caro. Não sei se tenho dinheiro para um jantar a dois não. 

 

– Essa vai ser por minha conta então. – E Primavera mostrou duas notas de cem reais. 

 

– E onde conseguiu isso? Você roubou? – Luiz Gustavo estava em choque. 

 

– Consegui no mesmo lugar em que obtive esse corpo. – E deu de ombros. – Vamos comer uma boa tainha agora. 

 

Com isso, os dois entraram no estabelecimento. O garçom o qual tinha atendido o homem mais cedo reconheceu-o e estranhou a presença de outra pessoa com ele. 

 

– E essa aí? Conheceu na praia? 

 

Sem saber o que dizer, ele improvisou: 

 

– Ah, essa é… – Tentou pensar em algo. – Minha prima, que se chama Vera. Ela estava no hotel quando vim pela primeira vez. – E deu um sorriso amarelo. 

 

A “prima” deu uma risada com a falta de criatividade do outro. 

 

Não era todo dia que uma estação do ano estava apta para comer, por isso Primavera não perdeu nem um segundo e devorou aqueles frutos do mar maravilhosos. Porém, Luiz Gustavo não parecia ir com a mesma sede ao pote. Comer ajudava a esquecer os problemas para algumas pessoas, pelo visto ele não era uma delas. 

 

– Agora que estamos alimentados, que tal entrar na água? – A estação tentava soar animada. 

 

– Já está de noite e eu nem tenho outra roupa aqui para usar se molhar essa… 

 

– Vamos só molhar os pés e aproveitar a paz de uma praia vazia. Era o que você pretendia fazer inicialmente, não? 

 

Sem dar resposta, Luiz Gustavo saiu do restaurante com Primavera. Tentou buscar algum sentimento que não fosse tristeza pela perda de seu amado ou confusão total pelo fato de uma estação do ano virar pessoa, mas foi difícil. A cidade podia ser bonita, todavia não conseguia concorrer com a confusão de seus pensamentos. 

 

Tentou focar na brisa que atingia seu rosto e buscar a paz da natureza. Por um momento, a água batendo em seus pés pareceu levar suas preocupações embora junto com o vento. Aquele mar, cheio de liberdade, conectou-se com ele. Aquela paisagem, de repente, era parte de si. Ele era parte da fauna. O cheiro da praia pareceu por um instante tão harmônico! 

 

E então ele viu: era o fantasma de Osmar! Luiz Gustavo não acreditou em seus olhos, mas depois de ver duas estações do ano em corpos humanos, já não tinha forças para duvidar de nada. O espírito estava rodeado de flores e permaneceu em seu campo de visão por alguns segundos. Mesmo depois de desaparecer, o homem ainda encarava o local, pasmado. 

 

Caso ele tivesse prestado mais atenção, veria que o corpo da Primavera já tinha partido e ao seu lado estava apenas o Inverno em carne e osso. Uma nova estação estava começando e ele esperava que fosse tão cheia de encantos quanto sua virada.