A sereia de Noronha
Érico ficou imensamente animado ao descobrir que viajaria para Fernando de Noronha com a família. O menino sabia muito bem o paraíso que era esse arquipélago composto por 21 ilhas, ilhotas e rochedos de origem vulcânica.
A beleza era mesmo algo de outro mundo e ninguém hesitou em bater várias fotos, mas a animação mesmo era para fazer os mergulhos. Aquela região era simplesmente uma das melhores do mundo para tal atividade.
Érico ficou com medo e preferiu não acompanhar os pais, mas ficou encantado com os golfinhos que volta e meia apareciam. Entretanto, não foram os mamíferos aquáticos que prenderam a maior parte da atenção dele.
Pois, de repente, escutou ao longe uma linda voz cantando versos que não poderiam explicitar mais o que o garoto sentia estando naquele lugar. Com certeza, Jorge Ben Jor estaria orgulhoso com a interpretação de seja lá quem fosse.
Moro num país tropical
Abençoado por Deus
E bonito por natureza
Mas que beleza
Encantado com a melodia, nem percebeu quando se afastou de todos e foi parar em uma região afastada. Suas pernas pareciam ir ao encontro do som contra a sua vontade e sua consciência não estava mais presente.
Nem mesmo quando já estava muito ao fundo e com risco de afogamento, pareceu acordar para a realidade e pedir socorro. Sua última visão antes de submergir foi uma garota nadando desesperada em sua direção, com um olhar de culpa.
Ao acordar, percebeu-se em cima de uma pedra, no meio do oceano. Não fazia ideia de como chegara até ali, mas essa não foi a razão de sua surpresa. Ao seu lado, com ar preocupado, estava uma sereia! Não conseguia acreditar em seus olhos, era possível que uma criatura dessas existisse mesmo?!
– Quem é você? – perguntou assustado. – A Iara? Mas você não morava no rio Amazonas?
A criatura hesitou, mas enfim tranquilizou-se e disse:
– Ah, é apenas um menino. Achava que era um homem. – E deu de ombros.
A voz dela era aveludada e hipnotizante. Ele sentia-se tentado a se aproximar, porém, diferentemente de quando escutou-a cantando, pois sim, a cantora só poderia ser ela, não foi enfeitiçado.
– Tenho 10 anos, Iara. Mas que diferença isso faz? – Érico pareceu ofendido pela afirmação da outra, afinal toda criança quer ser um adulto e todo adulto quer voltar a ser criança.
A sereia deu uma risada antes de responder:
– Meu nome, na verdade, é Maiara. Até termina igual, se parar para pensar. Iara foi a primeira sereia, já não está viva há alguns séculos. Vocês também devem ter algo assim, os primeiros humanos… Rupave e Sypave, se não me engano. – Ela pensou um pouco para ver se lembrara errado.
– Ah, você diz tipo Adão e Eva?
– Esses eu não conheço. Que estranho, jurava que era Rupave e Sypave. Mas enfim, não importa. – A sereia não cabia em si de alegria e dava cada salto que fazia o menino desejar poder fotografar.
– Por que você está tão alegre assim? Nunca tinha visto uma pessoa antes? – o garoto perguntou curioso.
– Ah, eu já encontrei várias. Aqui todo dia aparece um monte. Mas é a primeira que consigo enfeitiçar, nem acredito que já tenho idade para isso! Não sou mais uma pequena sereia! – Ela gritava de emoção.
– Vocês só conseguem encantar as pessoas a partir de certa idade?
– E elas só podem ser encantadas a partir de certa idade também. É impossível encantar um bebê, já um adulto… Você só foi enfeitiçado porque me ouviu cantar, caso tivesse o dobro de sua idade, até essa conversa já seria mortal.
Érico tentou entender o que acontecia com os humanos durante o envelhecimento, capaz de deixá-los mais suscetíveis à voz de sereias. Não parecia fazer muito sentido, teria a ver com os famosos “assuntos de adultos”? Na dúvida, optou por perguntar.
– Não sei o motivo, acho que porque liberam o pior de si. O mundo seria melhor se sua expectativa de vida fosse de 5 anos, vamos combinar. – respondeu.
– Mas nós não podemos ter filhos aos 5 anos! – o menino disse como se fosse argumento o suficiente para a expectativa de vida humana ser maior.
– Melhor ainda, a espécie acaba! Eu poderia começar por você. Sou Flamengo e tenho uma nega chamada Tereza! – Antes que Maiara continuasse a canção, o menino pulou para dentro d’água, onde não poderia escutar aquela voz assassina.
Percebendo isso, a sereia mergulhou também e começou a fazer alguns gestos. Incapaz de compreender, ele fez um sinal de que subiria e contou que não sabia LIBRAS.
– Eu nem sei o que é LIBRAS. – disse Maiara rindo. – Aquilo era LIAS, linguagem aquática de sinais. Falha minha pensar que você entenderia. Só disse que era uma brincadeira. Estou um pouquinho só emocionada. – Ela sorria feito boba. – Ainda não sabia que já era capaz de enfeitiçar crianças quando cantava…
– Como assim? – Érico fez uma cara confusa.
– Não sabendo, ué! Não é algo assim muito datado, a transição da infância para a idade adulta é longa e cheia de processos e… ah, qual é? Vocês devem ter algo parecido.
– É, temos sim. – O garoto assentiu. – Eu só não cheguei nessa parte anda.
Mal essa fala saiu da boca de Érico e apareceu um barco indo em direção aos dois. Provavelmente seus pais já movimentaram meio mundo para encontrá-lo.
Maiara não perdeu tempo em sumir de vista, sabia muito bem dos perigos de ser capturada por aquelas pessoas. Adultos não teriam o mesmo encanto de uma criança e as coisas ficariam complicadas.
– Você vai embora? – o menino perguntou ao ver que se afastava.
– Você pode pertencer a terra, mas eu pertenço ao mar. Como poderia viver longe das águas? – Foi a última coisa que disse antes de sumir na grandiosa Amazônia Azul.
Érico nunca mais esqueceu seu encontro com a sereia em Fernando de Noronha. Ele não sabia se por ser uma criatura mitológica ou porque se afeiçoara a ela. De qualquer jeito, jurou para si mesmo que voltaria a encontrá-la quando fosse mais velho.
Ao alcançar a idade adulta, percebeu que a tarefa era quase impossível e ele não teria muita chance. Foram dois anos de busca naquele mesmo ponto em que, tanto tempo atrás, encontrou Maiara. Durante todo esse período, Érico ficou morando no próprio barco.
Ele estava constantemente com protetores auriculares, afinal sabia que, tendo crescido, um mísero “Oi” seria mortal. Foi muito difícil, mas até conseguiu aprender LIAS, ou achava que tinha conseguido. Foram vários e vários estudos em livros de biologia, fantasia e mitos tupi-guarani. Além de observação marinha.
Ao finalmente encontrar a sereia a qual tanto procurava, teve imensa dificuldade em reconhecê-la. Se o tempo tinha feito muito bem a Érico, tornando-o um jovem bonito e forte, parecia ter sido o oposto para Maiara. Ela estava muito magra, sua pele estava imunda e seu cabelo, antes enorme e volumoso, estava curto e descabelado. Foi mesmo o tempo que deu o golpe fatal ou não?
– Maiara, sou eu, o primeiro menino enfeitiçado por você! Lembra de mim?
Naquele instante, a sereia estava cantando. Ao ouvir o chamado, virou-se e nadou em direção à voz. Vendo ali um homem, ela ficou extremamente assustada e voltou a cantar, na tentativa de livrar-se daquela ameaça.
Reparando nesse reflexo defensivo, Érico contou em LIAS que estava com a proteção e tentou refrescar a memória da sereia. Ela pareceu relaxar, o que ele tomou como um bom sinal. Ser reconhecido já era um grande passo.
– O que você quer aqui? – perguntou em linguagem de sinais. – Eu não sou uma mulher, sou um peixe. Sei que vocês humanos se esquecem disso, mas não posso aliviar seus anseios. E agradeço todo dia por isso, não sei como conseguiria conviver com a culpa caso fosse uma de vocês. Vá embora, procure alguém com pernas e bem… tudo aquilo que vem junto.
– Eu não vim aqui para tal. – Gesticulou com desapontamento. – Por que pensou isso?
– Vocês e seus irmãos não fizeram nada de bom que me levasse a pensar em outra coisa. – Deu de ombros.
– Irmãos? Mas eu sou filho único…
– É claro que você não consideraria as outras pessoas como iguais! Por que achei que consideraria? Olha o que vocês fizeram com o meu lar! – A fúria em seus olhos entregava que a proteção auricular foi uma escolha muitíssimo assertiva.
– Do que está falando? Do óleo nas praias do Nordeste? Chegou aqui em Fernando de Noronha também, não foi? Mas já tiraram tudo, nunca mais vi nada sobre no noticiário… – Érico respondeu surpreso por esse tema ser abordado logo por uma sereia.
– Quem dera fosse só isso… – Maiara bufou, após fazer os sinais. – Vocês estragaram o planeta inteiro!
– Ei! Eu cuido do meio ambiente! Não sou eu quem faz o desmatamento ilegal da Floresta Amazônica, são os latifundiários! – Ele pareceu um pouco ofendido.
– Falar é fácil, não é? – Com certeza, se ela tivesse pronunciado, sua voz sairia irônica. – Bem, menos para mim, porque tenho uma voz assassina. – Por um instante, seu olhar já não transmitia mais raiva, e sim tristeza. Isso deixou Érico pensativo: Quantas vezes ela precisou se calar em nome da segurança dos outros? Será que naquele momento não queria voltar a cantar?
Aquilo foi o suficiente para o homem entender que não era bem-vindo e decidir partir antes de Maiara mostrar uma face mais violenta. A sereia estava tão frágil que seria cruel demais fazê-la encarar a espécie causadora de toda sua dor e ainda impedi-la de soltar a voz. Pois é, uma pessoa não hesitaria em capturá-la, mas ela hesitou em tirar a vida de um humano.
Érico não tinha como saber, mas “País Tropical” não era mais a canção cantarolada. Enquanto ele partia com sua lancha para talvez nunca mais voltar, uma voz afinada entoava, de maneira a encantar Chico Buarque, os seguintes versos:
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia