VÔO COM DOIS MIL E OITO

VÔO COM DOIS MIL E OITO

- Com licença, senhor. Creio que a poltrona ao seu lado é a minha.
- Pois não! Fique à vontade, senhora...
- Obrigada. Prazer em conhecê-lo. Meu nome é Natália.
- Igualmente. Dois Mil e Oito.
- Como? Desculpe, não entendi bem.
- Meu nome é Dois Mil e Oito.
- Ahn... Sei... (engraçado!)
- Aposto que você não está acostumada a se encontrar com um Ano assim em carne e osso.
- Bem... é estranho, mas devo ser coerente com o que tenho dito: nada mais me parece impossível nesta vida.
- O senhor está indo ou voltando?
- Estou chegando pela primeira vez. E você?
- Estou retornando para casa, após mais um Natal cansativo. A cada ano que passa fica mais complicado atender a todos. É muito trabalho! E o senhor vem a trabalho?
- Sim. Estou ansioso para chegar e arregaçar as mangas. Há muito a ser realizado. Enfim chegou a minha vez. A viagem foi longa...
- Desculpe-me a indiscrição. De onde o senhor vem?
- Imagine! Não há problemas É bom que eu converse um pouco para aliviar a tensão. Venho de muito longe, de um lugar chamado Tempo. Nasci no Século VIII antes de Cristo, de onde parti; sou descendente direto de Homero. Estive em Ilíada e Odisséia. Lembra-se delas?
- Sim. São duas belas Poesias Épicas, filhas da Guerra de Tróia, mães de Odisseu, Ulisses, Penélope.
- Nunca fizeram referência a mim. Acho que é porque fiquei desgostoso com o fim da verdadeira democracia na Terra e saí peregrinando através do tempo. Foi uma época de fartura, compartilhamento, mas com a Guerra entre Esparta e  Tróia, tudo mudou...
- Por “quando” o senhor andou?
- Andei por muitos acontecimentos. Passei por vários domínios e submissões através de outras guerras; pelo desenvolvimento da agricultura e pecuária, artes e ciência; vi a ascensão e queda do império romano, a queda de Constantinopla...
- Um dos meus mais belos Natais foi em Istambul, Sr. Dois Ml e Oito.
- Vale mesmo a pena! Lá você pode ver como a posição geográfica de um Estado é determinante na história de seu povo.
- E depois? Para “quando” o senhor foi?
- Fui caminhando pelas grandes navegações, expansão do cristianismo e do islamismo, descoberta das riquezas da América, especialmente da cultura maia. Logo depois, encontrei-me com as conquistas napoleônicas e até acompanhei a fuga da família real portuguesa para o Brasil. Conhece D.João VI?
- Sim. Sujeito esperto e de visão.
- Nessa oportunidade, estive com 1808 e o vi abrir os portos às nações amigas. Afinal, era hora de trabalhar um pouco em tempos de paz. Gostei tanto do lugar, que resolvi prestigiar 1888 em “A Libertação dos Escravos”. E Pedro II, você conhece?
- Adorável Chefe de Estado. Pena que não se tornou o primeiro Presidente da República.
- Fui ficando para ver no que dava a tal República, até que me deparei com “1968, o ano que não terminou”. Concorda com Zuenir Ventura?
- Sim. Grande escritor. Retratou com perfeição aqueles tempos difíceis.
- Parece que estou chegando ao meu destino... O comissário vai anunciar a aterrisagem. Veja só! São 08:08.
- É verdade. Mas... É impressão minha ou o senhor está tremendo? Sente frio?
- Não. É ansiedade. Parece que meu coração vai sair pela boca.
- Quer que eu chame a comissária?
- Não, obrigado. Estou me controlando...
- Tenha calma! Ainda faltam alguns dias para o seu desembarque. Para distrair, conte-me mais sobre o senhor.
- Bem, tenho muitos planos para viver intensamente o meu ano. Finalmente, vou instalar-me como todos os outros: com fogos de artifícios coloridos, champanhe, jantares e carnaval.
Mas não me iludo. Meus projetos serão colocados em prática com cuidado, aproveitando tudo o que aprendi na viagem através dos séculos.
- E o que foi que o senhor aprendeu?
- Aprendi que é fácil criar vida, gratificante compartilhar, divino integrar-se à natureza.
Mas não farei milagres, nem estabelecerei uma nova ordem. Portanto, o que está em desacordo com a vida sobre a Terra continuará, se o povo assim o desejar. Farei a parte que me cabe para recuperar a harmonia na Natureza. Cuidarei das Famílias Abandonadas: Famintos, Doentes, Animais Selvagens, Plantas. Já não me iludo com o restante da Humanidade.
- Lamento ter que concordar com o senhor. À medida que o famoso Amor Fraterno se afasta, mais trabalho me aparece no Natal. Estão ficando insensíveis ao abraço, ao olhar terno, às carícias desinteressadas. Transformaram-se em robôs. Pior! Deixaram de ser confiáveis. Já notou como eles estão se destruindo? Parecem objetos descartáveis de si mesmos. Ao desembarcar, observe a Rapidez e Eficiência até nas Lágrimas dos Velórios. Ficaram muito esquisitos.
- Esperei tanto por esse momento... Agora sinto tristeza ao saber que minha passagem se dará “num piscar de olhos”. Provavelmente muitos nem notarão a minha presença.
- Por isto, fique calmo. Não compensa sofrer por quem não merece.
- Tem razão. Sairei de cabeça erguida. Quando eu voltar à Tróia, levarei na memória as imagens dos que me receberem com respeito e carinho. A eles darei um pouco de colo e, como Atena, bons e fartos alimentos para o corpo e para a alma.
- Gostei do senhor. Veja! Já estamos em terra.
- Eu também adorei conhecê-la. Obrigado pela colaboração. Certamente nos veremos no próximo dia 24 de dezembro.
- Será um prazer reencontrá-lo. Boa sorte! Posso lhe dar um beijo?
- Certamente...
-Hummm. Splish-plash...
- Que delícia! Obrigado. Desejo-lhe boa viagem e bom descanso.
- Até dezembro!
Sandra Fayad Bsb
Enviado por Sandra Fayad Bsb em 29/12/2007
Reeditado em 03/01/2008
Código do texto: T795693
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