Ellohen - Prólogo
Sua mão que agora escorria pela cintura procurando cuidadosamente a bolsa que servia de porta-objetos, levava um já amassado, e molhado papel que obtinha o real motivo de estar naquele local e naquele exato momento. O dispositivo metálico acoplado em seu antebraço esquerdo reluzia em sua base central, luzes piscantes verdes em sua maioria agrupadas em um único local. Ao que tudo indicava, seu objetivo estava próximo. Entretanto, um certo temor o fez hesitar por alguns segundos e notar o belo luar que iluminava o reino em ruínas. A chuva desabara repentinamente ao alcançar a entrada do prédio abandonado, como se o próprio céu chorasse a decadência do lugar. As gotas pesadas batiam nas ruínas com força, ecoando como suspiros melancólicos em meio ao silêncio que imperava. As ruas estavam desertas, uma paisagem desolada e corroída pelo tempo. Veículos abandonados e cobertos de musgo se fundiam ao ambiente que dominava o lugar, uma natureza que parecia ter sido selada por um destino sombrio. O reino, um dia imponente e vital para o continente de Vandar, agora era uma sombra de sua antiga grandeza.
As ruelas, outrora iluminadas pelo combustível amital, estavam mergulhadas na escuridão, uma escuridão que parecia ganhar vida com a chuva que a alimentava. O combustível amital, essencial para a iluminação e energia do reino, escasseara a ponto de não mais clarear os recantos sombrios das Terras Cinzentas, como era conhecido o local. Um título sombrio para um lugar onde a lei já não encontrava eco. As ruínas eram testemunhas do abandono, da ausência de um governo e da decadência moral que havia se infiltrado nas estruturas de pedra. O nome "Arcabouço das Trevas" ecoava na mente de Landho, um nome que ilustrava de maneira precisa a atmosfera que pairava sobre o reino. O local havia perdido a luz da ordem, transformando-se em um refúgio para aqueles que rejeitavam qualquer forma de governo ou controle. Não eram seres comuns que habitavam essas terras agora, mas sim os renegados, os desesperados e os descontentes. Criaturas das sombras que encontravam abrigo na ausência de lei.
A história do local se entrelaçava com a decadência da própria civilização. Uma terra que um dia fora marcada por comércio, cultura e vida estava agora mergulhada na escuridão, uma sombra do que um dia fora.
Com um leve acenar de cabeça, Landho sinalizou para dois jovens que o acompanhavam, algo que eles entenderam prontamente que já era hora de seguir com o plano, embora suas fisionomias não transparecessem uma confiança absoluta.
Escorados em um muro que os separavam do interior do edifício, Cobin, embora jovem e esguio, transmitia um ar de leveza e descontração nas palavras amparadas por seus grandes e pálidos olhos azuis:
- Senhor, os números de filamentos do Nó estão em uma frequência exorbitante. Nunca havia visto algo nesta magnitude. Talvez fosse melhor, por precaução, avisarmos o ateneu da possibilidade real de uma Fenda Amital. – alertou o jovem em suas palavras enquanto seus olhos verdes e tremulantes refletiam a luz verde pulsante que seu bracelete transmitia.
- Meu xharak mostra isso também, senhor! Será alguma interferência ou anomalia? – concordou o segundo do Tridente de Sant Sovhen. Toro era um homem mais velho, negro e extremamente forte fisicamente. Sua função de Guardião da Ponta do Tridente era incrivelmente compatível com sua fisionomia e seriedade em seu olhar obscuro e penetrante. Não havia uma pessoa sequer capaz de ignorar sua imponência e respeitabilidade por onde quer que estivesse.
- Creio que não, Toro. Todos os nossos equipamentos sinalizam a mesma intensidade de COFA. É impossível três xharak’s apresentarem o mesmo erro. Assim que pisamos nestas terras pude notar tal mágyka fortemente concentrada neste local. O Mantil captou essa grande convergência. - revelou ele enquanto manejava em sua mão um tecido branco raro e adornado de detalhes rúnicos verdes. - Acho que somente tinha visto uma concentração tão grande de amital quando visitei pela primeira vez os Jardins da Eternidade, onde a árvore Ni'Ya descansa. Mas de qualquer forma tratei de enviar um recado para o ateneu imediatamente logo após chegarmos. – tranquilizou Landho a seus companheiros com um leve semblante de serenidade que contrastava com a agressiva cicatriz que se desenhava acima do olho esquerdo até bochecha abaixo, sobre o qual ele não gostava de falar. – Porém, não podemos nos dar ao luxo de esperar pela chegada de reforços. Somos a elite das forças de Sant Sovhen, somos um dos Tridentes e devemos agir como tal. Exo!... – bradou ele levantando um pouco o volume sonoro de suas palavras e esticando a mão para seus companheiros como se esperasse por uma reação que complementasse seu gesto.
- Pouse!... – disse Toro com voz firme, baixa, porém imponente, e logo segurando fortemente o antebraço de Landho.
- …Netu! – completou Cobin com um sorriso de excitação levando a mão ao largo antebraço de Toro com firmeza. O rito se formou quando Landho segurou o antebraço de Cobin, fechando assim o triângulo.
- Vamos juntos agora impedir o que quer que esteja acontecendo neste fim de mundo. Se for uma Fenda, vamos fechá-la! Porque somos Tridentes! – o gesto, o toque dos antebraços entrelaçados, selou o pacto silencioso entre eles, como se suas essências se fundissem em um único propósito. A aura que se criou ao redor deles era palpável, carregada de determinação e uma força que transcendia a matéria. E com as palavras finais de Landho, ecoou a promessa de que, juntos, eles enfrentariam qualquer adversidade.
Os três seguiram cautelosamente edifício adentro, coberto de musgos e plantações desgovernadas, com muita rapidez como que se quisessem fugir o mais rápido possível da forte chuva que encharcava as ruelas de paralelepípedos desgastados e cheios de destroços. Não haviam portas na entrada, apenas alguns pedaços de madeira que teimavam em se prender às dobradiças. Dentro do prédio a calamidade se comparava ao estado da reino. Até mais, já que a iluminação do luar já não adentrava o local, o que trazia uma certa obscuridade e umidade ao recinto, além da temperatura também já não ser mais a mesma.
- Esfriou bastante - sussurrou Cobin acompanhando Landho, lado a lado, na ponta dos pés. A apreensão era notável na fisionomia do jovem que a todo momento parecia achar que mais alguém se encontrava ali. Olhava para todos os lados, como que se esperasse por um surgimento repentino.
- Isso vai ser fácil de resolver. Nada melhor que uma boa ação para espantar o frio. - retrucou Toro, tentando transmitir confiança para seus companheiros embora ele mesmo também estivesse sentindo uma fagulha do calafrio avassalador.
Cobin acenou a cabeça repetidamente como aprovação junto de um sorriso amarelo que não inspirava muita confiança.
- Venham! Vamos acabar logo com isso. - disse Landho ao mesmo tempo em que disparava em direção as escadarias, que embora velhas, ainda se mostravam bem fortificadas. Os passos dos três eram ágeis e furtivos, era nítido que tinham tido treinamento para isso. O nível de ansiedade dos três era proporcional a cada andar que subiam, assim como o calor em seus corpos que expurgava cada vez mais o frio que outrora sentiram quando entraram no edifício abandonado.
No penúltimo lance da escadaria puderam ver um feixe de luz verde acima deles que era reproduzido pela fresta da porta que estava entreaberta. Os passos a partir de então se tornaram mais cuidadosos. Vozes de dentro do aposento podiam ser ouvidas ainda que distantes e indecifráveis. Os três rapidamente chegaram à entrada e posicionaram-se antes de tomarem qualquer atitude. Os dois jovens emparelharam-se em cada um dos lados da porta, e Landho, mais atrás, sinalizou positivamente para os jovens, que agora, estavam tomados por uma confiança que antes não existia. Neste instante, cada um dos jovens empurrou com toda a força a parte da porta que lhe cabia, ao mesmo tempo em que com a outra mão lançaram, cada um, um dispositivo circular, metálico que exibia marcas brilhantes rúnicas esverdeadas no seu ponto central, que voou para dentro do salão liberando imediatamente uma densa névoa povoando toda a área do salão. Os três antes de adentrarem vendaram-se com um tecido, similar ao que Landho segurava antes de entrarem no local, parecia mágyko por imediatamente surgirem runas igualmente esverdeadas brilhantes por toda sua extensão. Um tecido branco e brilhante que demonstrava ser eficaz em se ver muito mais além do que os olhos comuns podiam. Agora sim, prontos, os três invadiram o salão e puderam ver o que ali se encontrava. Eram aproximadamente dez pessoas que agora dispersas, formavam um círculo em torno de um objeto flutuante dourado reverberando uma incandescente chama rubra amitalística.
As pessoas mal puderam entender o que estava acontecendo quando a densa névoa eclodiu diante de seus olhos. Suas fisionomias não eram de pessoas comuns, haviam traços de veias sanguíneas pretas que se desenhavam por todas as partes amostra de seus corpos. Os olhos totalmente escuros como a noite que abraçava o local encontravam-se desorientados, buscando o catalisador daquela explosão. A movimentação destes mutanos tornara-se inquietante e buscando refúgio em cantos aleatórios do salão a fim de algo para se palpar e recobrar o mais rápido possível dos sentidos, ou se tornariam presas fáceis para Landho e cia. Assim pensavam, embora o objeto continuasse a emitir o forte brilho amital.
Landho equipado com seu Xharak instalado em seu antebraço esquerdo sequenciou algum tipo de comando que o fez brilhar e piscar freneticamente como que se estivesse fazendo algum tipo de iniciação para uma posterior ação.
- São os tridentes! Protejam o erudito! Não deixem que quebrem o ritual! - bradou um dos mutanos que transparecia ser o líder de algo que se assemelhava muito aos cultos que a Ordem da Libertação realizava por todo o continente. Era um homem alto trajado de algumas placas de proteções antigas, como uma coleção de conquistas de outrora. Suas veias enegrecidas pelo corpo e rosto, a pele pálida como um broto de neve, além da ausência de fios capilares, o deixava mais aterrorizante e trazia para a si a voz de comando das ações.
Os jovens tridentes avançaram, suas espadas de lâmina curta guardadas na parte de trás das cinturas, faiscando na penumbra. Após invadirem o salão enevoado, suas formas se dissolveram em vultos cintilantes, movendo-se como sombras em meio à nebulosidade. As pequenas espadas cortavam o ar com precisão, deslizando entre as névoas que envolviam os mutanos e o cenário desolado. O tilintar metálico ecoava em meio ao ambiente opressivo. As primeiras vítimas foram subjugadas sem dificuldade, o fluir das lâminas era uma dança mortal executada por Toro e Cobin, enquanto Landho canalizava a energia amital através de seu Xharak, disparando três tiros certeiros que encontraram seus alvos entre os mutanos desorientados. Feixes de luz brilhantes e esverdeados irrompiam enquanto ele se movia acrobaticamente em meio aos corpos amontoados tombados como troncos derrubados da Floresta de Cárkamus.
As ações pararam quando um forte vento irrompeu pelo recinto e desanuviou-o. O erudito que mesmo sem poder enxergar nitidamente não deixou de dar prosseguimento ao ritual com tamanha força de vontade e imposição da mágyka rubra conseguiu abrir uma fenda que se pôs acima do artefato dourado flutuante. Uma fenda negra, pequena na verdade, mas o bastante para atrair a atenção dos tridentes que agora se viam atônitos. A fenda, mesmo que pequena, reproduzia calafrios nos três e a atmosfera também gélida provindo dela fez a temperatura do salão baixar demasiadamente. Landho jamais havia visto uma Fenda Umbral de tão perto, sempre ouvira histórias sobre elas, mas nunca havia, de fato, visto uma.
Landho agora precisava, mais do que nunca, impedir o mutano erudito de finalizar o ritual e evitar que catástrofes piores pudessem ocorrer. - O que esses caras estão pensando? Eles são loucos? - os pensamentos em sua cabeça traduziam bem o temor pelo que poderia acontecer se nada fosse feito a tempo. O líder dos cultistas aproveitou o lapso de tempo perdido por Landho para atacá-lo com um punhal direcionado a seu peito, visando algum órgão vital. Landho, agora pego de surpresa, não conseguiu esquivar-se completamente da arremetida e o punhal alojou-se no ombro de Landho que urrou de dor, mas ainda assim, teve força e mostrando-se destemido, ele segurou fortemente a mão do mutano onde estava o punhal e com a outra mão, que detinha o dispositivo de forte poderio militar, agarrou a garganta do oponente, levantando-o do chão com certa facilidade, ao mesmo tempo e quase que simultaneamente, o brilho intenso da manopla aglomerou-se rapidamente e eclodiu em energia amital enquanto o cultista batia as pernas no ar tentando se livrar, porém sem sucesso. O que pôde se ver a seguir fora apenas o corpo jazido, sem a cabeça, do líder dos cultistas caindo suavemente de encontro ao chão desgastado.
Landho, agora ferido, tombou para os lados e ajoelhou-se para verificar a gravidade do ferimento. Os dois jovens tridentes já haviam dado conta dos cultistas restantes e estavam agora agachados ao seu lado preocupados com o grave ferimento de seu superior.
- Não há tempo para isso. Impeçam o erudito de completar o ritual! Rápido! - bradou Landho para que a fenda fosse interrompida o quanto antes. Porém já era possível notar que o tamanho já não era o mesmo, havia se expandido mais. E por um instante, os tridentes puderam ver olhos vermelhos flamejantes no fundo da fenda. Aqueles olhos sinistros estremeceram as estruturas do trio instaurando um sentimento de desespero pelo que poderia sair de lá de dentro da fenda. Os jovens logo se lançaram ao encontro do erudito a fim de impedi-lo, enquanto o invocador erudito encontrava-se em transe com o ritual. Já não era mais o que olhos viam ou o que ouvidos ouviam anteriormente. O ambiente estava diferente, distorcido e tenebroso.
De repente, como uma intrínseca autodefesa da Fenda, uma forte ventania juntamente com corvos negros erigiu-se de dentro da Fenda levando todos em sua área a voar como bolas de papéis por metros de distância. Os corvos agora estavam atacando ferozmente a quem tentasse chegar até o erudito e a fenda, que no momento já não tinha mais pupilas em seus olhos, somente clarões de chamas brancas.
A fadiga era grande, todos tentavam se por de pé para continuar a batalha a fim de interromper a qualquer custo o ritual de ser finalizado. Landho, em seu último ato, decidiu usar todo o recurso que tinha, proveniente de sua manopla mágyka, e canalizou toda a carga para um único e último disparo para infringir ferimentos o suficiente para nocautear o erudito mutano. E assim preparou-se. Sua mira já não era das melhores, a vista aperfeiçoada pelo mantil mágyko em seus olhos ajudava, mas não o suficiente. Porém a vontade e o senso de dever para com todos os povos de Vandar e Ellohen fora o suficiente para que Landho conseguisse reunir forças e concentração o suficiente para dar o disparo certeiro. Assim, Landho com amital canalizado o suficiente de seu Xharak, o imponente instrumento metálico em seu antebraço, liberou toda a carga de energia amital, uma luz esverdeada e brilhante na direção do erudito gerando um impacto grande o suficiente para lançar o corpo do ritualista contra a parede, desmontando-a e desmoronando todos destroços em cima de seu corpo. Foi um tiro suficiente para cessar todo o ritual. Foi o que pensaram.
Os corvos caíam e se esfacelavam em penas negras, a fenda eclodiu e balançou as estruturas do prédio que agora agonizavam em virtude da iminente derrocada. Não fosse pela negativa surpresa que tiveram logo após. Algo passou pela Fenda. E com o dissipar da poeirada, o clarão e todo clima que se instaurou pós abertura da Fenda, continuou. Pode-se então ver uma figura quadrúpede tremeluzente negra, e de olhos vermelhos flamejantes que desenhavam o ar conforme se movimentava. Lembrava muito uma pantera negra ora carnal, ora espiritual.
- Landho... Isso é... – a voz aterrorizada de Cobin dava o tom do que seus olhos trêmulos acabara de ver.
- Não pode ser... – Toro não demonstrava terror como Cobin, mas parecia ter sido enfeitiçado por uma mágyka de paralisia.
- É um... Mandala! – respondeu Landho, incrédulo à figura a sua frente. – Não pensei que fossem reais!
Os olhos flamejantes, que agora encaravam fixamente os três cambaleantes e fatigados combatentes do Tridente, aproximava-se a cada passo que dava. O chão ruía e espalhava fagulhas de chamas avermelhadas a cada toque de suas patas.
- Cobin, Toro! Saiam daqui! Deem o alerta máximo para o ateneu! Precisamos de Agnis ou de Sthavar aqui! Contatem a Millöra se for necessário! – ordenou aos quatro ventos Landho para que os agora paralisados companheiros.
Não houve tempo suficiente para nenhum dos dois esboçar uma reação. O Mandala reagiu de maneira veloz e quase que instantâneo. De seu corpo inúmeros tentáculos negros e energizados atingiram todos os integrantes do Tridente em diferentes pontos não-vitais. Sua força era tamanha que seus simples, porém aterradores, tentáculos elevaram facilmente os corpos dos três soldados da elite do ateneu Sant Sovhen.
O urro de dor dos três foi generalizado, a sensação de impotência era grande diante de um ser somente conhecido por histórias que se contavam para aterrorizar as crianças, era algo mítico, lendas. Mas agora, estava bem diante de seus olhos.
Os tentáculos tão fortemente instalados em suas carnes, ombros, braços e pernas retirou-se conforme a vontade do Mandala, gerando uma queda livre de aproximadamente quatro metros rumo ao impacto do chão.
Era o fim! – pensou Landho enquanto caía lentamente de encontro ao chão já bem danificado pela batalha. – não temos como vencer.
Mas antes que todos os três corpos tocassem o chão, a fera em um movimento quase que imperceptível ao olho nu, desapareceu da visão dos três. E então, Landho achou que talvez tivessem sido poupados de alguma forma.
Landho e Toro, depois do impacto da altura, levantavam-se vagarosamente a fim de tentarem se manter de pé, com muita dificuldade. E olharam ao redor. Cobin estava de pé, cabisbaixo e marcas de runas pretas pelo corpo. - O que era aquilo? – pensou Landho. – Os ferimentos dele sumiram.
- Cobin! – gritou Toro, agora de pé embora lutasse contra a tremulação involuntária de suas pernas.
O rosto de Cobin, elevando-se aos poucos, mostrava uma face aterradora, olhos vermelhos e flamejantes. Assim como os da fera.
- Não existe mais Cobin! – aquela voz estremeceu Landho e Toro. Mesmo Toro, conhecido por ser uma muralha de pedra de sentimentos e fraquezas, parecia ele amedrontado.
- Vocês todos, lacaios de selünes, pagarão pelos crimes de seus antepassados! – esbravejou a criatura pela boca de Cobin. – Centenas de anos aprisionados como animais. Um sentenciamento sumário e cruel digno da humanidade, mas a justiça há de recair sobre cada geração viva daqueles que ousaram nos trancafiar!
- Não, Cobin! – suplicou Landho, já com dificuldades para pronunciar palavras. – Não o deixe tomar o controle...
Era tarde, Cobin em uma velocidade extrema partiu para cima dos dois, agora inimigos, desferindo golpes com seus punhos energizados de mágyka rubra. Landho defendia-se como podia, embora a cada defesa, nasciam marcas negras no exterior e concussões no interior. A força era algo descomunal.
- Pare com isso, Cobin! – esbravejou Toro se jogando em cima de Cobin, agora controlado pelo terrível Mandala. A jogada de tentar imobilizar Cobin não funcionou como se esperava. O corpo de Cobin, fervendo com a amital rubro e fervente lançou Toro a uma velocidade assustadora e de mesma intensidade gerando um impacto estrondoso na parede, o que fez Toro perder a consciência.
Landho era o único que restava consciente, mas não por muito tempo. O último ataque desferido em seu estômago deixou Landho desnorteado e a beira da inconsciência. Landho pensou em sua família, mulher e seus dois filhos que sempre faziam uma pequena festa surpresa a cada fim de ciclo de missões pelo ateneu. Eram raros esses encontros por ano, mas inigualáveis em felicidade e saudade, só que dessa vez, Landho temeu que isso não mais aconteceria. A morte era certa.
Então o golpe de misericórdia que era esperado, não veio. Landho abriu os olhos, e ainda ajoelhado, encarou aquele ser, outrora amigo querido, mas agora um monstro.
Em um momento de quebra de expectativa, Landho pôde ouvir sons das tropas militares do ateneu se aproximando por ar e terra. Eram os reforços. Mas seria tarde demais?
- Então, não vou matar vocês! Vocês serão a prova viva para todos os povos, reinos e líderes de todos os cantos. Que os Mandalas estão voltando. Vamos buscar o que é nosso por direito! – revelou serenamente a voz tenebrosa que ainda saía pela boca de Cobin. – Já este corpo... Infelizmente não há o que fazer! – e com um sorriso no canto da boca de Cobin, o corpo todo se fez arder em chamas negras e rubras, juntamente com os olhos na cor vermelha mais intensa, até uma só, e gigante labareda rubra ascender aos céus abrindo uma enorme cratera no teto e desabar o que restava dos aposentos pelos cantos.
Nos derradeiros momentos de sua consciência, Landho fitou o horror que se desenrolava diante de seus olhos. Os olhos de Cobin, outrora vibrantes e cheios de vida, agora exibiam uma obscuridade perturbadora, chamas vermelhas dançando em suas íris como brasas ardentes. Landho testemunhou a força maligna do Mandala, que havia se apossado do corpo de seu amigo.
A figura do Mandala era um turbilhão de energia negra, uma entidade que parecia ter sido esculpida a partir das sombras mais profundas dos pesadelos. Uma silhueta distorcida, repleta de tentáculos que se estendiam como garras sinistras, parecia dançar ao redor de Cobin como um predador esperando para se lançar sobre sua presa. Cada movimento da criatura era uma sinfonia de trevas, um espetáculo terrível que fazia a mente de Landho vacilar entre o medo e o fascínio mórbido.
E então, o inevitável aconteceu. A energia negra do Mandala se desprendeu do corpo de Cobin, como um último suspiro de um espírito vingativo. O corpo de Cobin caiu no chão com um estrondo, um eco sinistro do que ele já havia sido. Seus membros carbonizados e retorcidos eram uma prova do poder devastador da entidade que o dominara. Landho sentiu uma onda de tristeza e angústia inundar sua alma enquanto encarava a cena.
O silêncio que se seguiu foi como um lamento silencioso pelo que se perdera. O Mandala havia partido, deixando para trás apenas a carnificina e o vazio. O ar estava impregnado com um cheiro acre de queima e desolação, uma lembrança constante da batalha que se desenrolara ali.
Landho cambaleou, sua visão turva e seus sentidos enfraquecidos pelo esforço e pela dor, o fez vacilar à beira do abismo das dúvidas, agarrando-se à lembrança do que seu amigo Cobin fora, um amigo que agora estava perdido para sempre nas garras do terrível Mandala.
E assim, os últimos momentos de Landho foram preenchidos pelo eco da tragédia que se desdobrara, pela escuridão que havia engolfado seu amigo e pelo som distante dos passos que se aproximavam para resgatá-lo. No limiar entre a vida e a inconsciência, Landho se despediu do reino em ruínas e das Terras Cinzentas, um herói que enfrentara o abismo e resistira até o último suspiro.