Julgamente
Houveram barulhos nos bancos enquanto todos sentavam, após a juíza ter tomado seu assento no Tribunal da Culpa. Intrusos e curiosos ocupavam a corte naquele dia. Não teríamos júri. A decisão da juíza seria soberana. A acusação estava tranquila porque já tinha ganhado várias vezes casos parecidos. A acusada estava claramente nervosa mas só não mais que sua própria defesa que, mordendo o interior da boca, retirava pequenos pedaços de pele e abria pequenas feridas dentro da bochecha.
O Tribunal da Culpa não segue as regras comuns dos tribunais humanos ocidentais que conhecemos. Por viver no Mundo dos Pensamentos, ele pode ser tão ligeiro ou tão insistente quanto todos os moradores desse reino, então algumas formalidades são deixadas de lado para torná-lo mais viável.
“Vamos direto ao ponto. Por favor, acusação, apresente o seu caso” pediu a juíza, quase em um suspiro de cansaço. Já era seu oitavo julgamento do dia e não tinha chegado nem a hora do almoço.
A acusação tomou a frente do tribunal com suas roupas claras e delicadas, cabelo perfeitamente arrumado, maquiagem impecável e um cheiro naturalmente delicioso. Ao mesmo tempo ingênua e sensual. Alegre e esperta. Enfim, perfeita.
“O caso de hoje é muito simples, vossa excelência. Verá que é fácil de resolver e espero que tome pouco do seu precioso tempo. A ré é acusada de ter desejado a morte de sua própria mãe.”
“Protesto!” gritou vacilante a defesa. “A acusação não tem autoridade para determinar o que é desejo e o que é um simples pensamento.”
“É claro que eu tenho”, rebateu a acusação. “Chamo para este tribunal minha primeira testemunha: o Pensamento original”.
As portas se abriram, e diante de uma corte agitada e que falava alto e constantemente, entrou uma sombra cinza, densa e enorme, se arrastando pelo corredor até assumir o banco de testemunhas.
“Olhe só, meritíssima! Como está pesado esse Pensamento!” apontou a acusação.
“Protesto!” gritou temerosa a defesa. “Este Pensamento sempre foi pesado.” Como resposta recebeu um sorriso leve e sarcástico da acusação que prosseguiu com seus trabalhos. “Nos diga, Pensamento, quem é você?”
“Eu nasci como a última imagem da mãe da ré no caixão.” Grande alvoroço tomou conta da corte. A juíza não se preocupava em conduzir absolutamente nada. Seu foco estava completamente voltado a pensar em qual seria a sentença. A acusação continuou então seu papel.
“Realmente pesado… mas diga, este era seu peso original? Ou você teve algum agravante para estar tão denso como está?”. Enquanto ouvia isso, a ré se estremecia na cadeira.
“ Não, doutora. Eu era só um pensamento infeliz de meia idade. Digo isso porque não sou exatamente novo na cabeça da acusada. Eu estava triste e já um pouco pesadinho, admito, mas não tão denso, não. Era mais transparente e teria saído de cena bem rápido, se não tivesse sido detido pela acusada.”
“Defina como ela o deteve, Pensamento” incentivou a acusação.
“Oh, no começo ela me tentou com uma festinha. Não pude resistir. Me alimentou com os sentimentos ruins que tinha em conserva na despensa, e como era muita comida comecei a chamar e criar outros Pensamentos. Na verdade foi muito divertido! Mas fiquei cansado e mesmo assim ela não me deixava sair. Estava obcecada!
“Interessante! Obcecada, você diz. Só por você ou por todos os outros Pensamentos infelizes? E por favor, se puder, descreva os outros convidados.”
“Logo que eu, imagem da mãe no caixão, cheguei, já chegou bem rápido a Fantasia do funeral, o Pensamento sobre o choro e as Imagens Projetadas dos membros da família. Alguns sentimentos também apareceram pra festa. A Tristeza, óbvio, minha grande amiga, mas também tinha o Nervoso, a Ansiedade e acho que eu vi a Raiva de braços dados com a Vingança.
“Protesto!” gritou agitada a defesa. “Não pode alegar os sentimentos presentes sem ter certeza.”
“Prossiga” resmungou a juíza.
“Ora, podemos conjecturar que é possível, afinal a Raiva é um sentimento bem invasivo. Não seria a primeira festa de luto que ela invade.”, alegou a acusação. “Continue, Pensamento, qual foi o momento em que a ré te prendeu?”
“Eu estava tranquilamente comendo angústia e crescendo, e então me uni à Fantasia e fomos detalhando cada momento do suposto funeral. Até a música que a ré cantaria em memória da falecida, acredita? Um trabalho impecável o nosso. E quando estava tudo bem esmiuçado do começo ao fim, meu trabalho já estava completo e eu já estava bem carregado, então comecei a me despedir de todo mundo. Muitas emoções ainda iam ficar por um tempo, sabe? Só que a ré, não me deixou ir! Ela começou a me fazer repetir de novo e de novo, cada cena, cada detalhe, cada momento. E as emoções já estavam no auge. Tenho quase certeza que a Ansiedade estava em êxtase. Mas mesmo assim, a ré lacrou a porta com a Obsessão e não iria me deixar sair.”
“Lamentável. Sinto muito por seu sofrimento, testemunha.” prosseguiu a acusação. “Como todos podem ver, a ré exigiu a permanência do Pensamento, logo, realmente queria ver a mãe morta”
“Não é verdade!” gritou a ré de um salto. “Eu não quis trazer a Obsessão. Ela grudou ali tão de mansinho que eu nem percebi que estava impedindo a saída!”
“Ré, você admite que a obsessão é sua e que você deixou ela tão grande, capaz de obstruir a passagem dos pensamentos?” Replicou a acusação
A ré lentamente se sentou novamente, encarou as mãos que tremiam e respondeu “Sim, acho que eu devia ter controlado melhor a situação.” A acusação deu um largo sorriso de vitória.
Então, também tremendo e suando muito, a defesa se colocou de pé: “Gostaria de chamar como testemunha de defesa o sr Medo.” Ao que vacilou um pouco no nome da nova testemunha. Era natural, todos o temiam por definição e essência. Até a acusação sentiu uma pontada no estômago, que fez seu melhor para disfarçar.
“Defesa, certamente não quero interferir”, declarou a juíza “Mas o Medo realmente é uma testemunha favorável à ré?”
Ao que a defesa respondeu “Eu tentei muito encontrar sentimentos e pensamentos positivos como o Amor e as Boas Lembranças, mas não encontrei nenhum. Parece que estão todos escondidos no meio dessa crise. Mas imagino que o sr Medo possa esclarecer um ponto da situação.”
“Tudo bem, então. Podem deixá-lo entrar”
As portas se abriram no mesmo momento em que as luzes todas diminuíram um pouco. O ambiente certamente estava mais pesado, e todos ficaram mudos com a entrada do Medo. Definitivamente não era alguém que você desejaria que cismasse com você. Até os Traumas da ré, presentes na corte, tremiam do seu chefe. Seus passos eram impossivelmente silenciosos, do jeito que só o Medo consegue pisar para entrar de mansinho. Mas sua aparência… bom, não vou saber descrever, porque a verdade é que poucos olharam de frente pra ele. Eu mesmo nunca fiquei o encarando muito tempo, então não sei descrever com exatidão. E não importa muito, porque ele sempre muda de forma, é um mestre do disfarce e transformação. Já posou até de Amor! Veja sua audácia! Ele sentou no banco das testemunhas e nenhuma Fantasia, Pensamento ou Emoção ousou trocar olhares com ele.
“Sr Medo,” iniciou a defesa que tremia dos pés a cabeça “o sr. poderia nos confirmar um fato? A ré tem ou não tem medo de que a mãe morra?”
O Medo se esticou na cadeira e começou com a voz grave “Ah sim, a ré tem muito medo da morte dos pais”.
“Viu, corte e excelentíssima juíza? Se a ré tinha muito medo da morte de ambos os pais, certamente não tinha a intenção de alimentar o Pensamento da mãe no caixão. Foram Pensamentos e Sentimentos intrusos, e não foram convidados como dizem ter sido” Disse tudo isso de uma só vez e só ao final respirou.
A acusação então pediu permissão para interrogar a testemunha, que lhe foi concedida.
“Então, sr Medo, a ré tinha medo de seus pais morrerem. Que outros medos relacionados aos seus pais o sr consegue pescar de seu arsenal?” Ao que deu uma troca de olhares maliciosa com o Medo. Era o que ele mais gostava. Que trouxessem à tona medos que não foram chamados e sem motivo aparente.
“Ah, tem muitos! Ela tem o medo de conversar com eles sobre seus sentimentos por mais de 5 minutos. Tem medo que percebam quando mente dizendo que está tudo bem. Tem medo de ser parecida demais com sua mãe, ou de menos com seu pai…”
“Já deu para entender” interrompeu a acusação, frustrando um pouco o sr Medo que estava amando a lista, “que a ré tem medos que refletem ressentimentos. É completamente plausível que eles sejam maiores que o medo da perda, e por isso, colocando na balança, realmente ela deseje a morte da mãe”.
A defesa não se dava ao trabalho de tentar rebater mais. Estava tão intimidada, que a ficha da ré enquanto a olhava ia caindo de que, praticamente, não tinha defesa. Não uma que pudesse bater de frente com a acusação, ou refutar o Medo. A defesa estava rendida, fraca, murcha, capenga. Não devia ter se alimentado de coragem ou alta estima fazia um bom tempo. E as Boas Memórias estavam escondidas. Com certeza já tinham perdido essa causa que nasceu perdida.
A certeza da iminente derrota deu coragem à ré de se levantar e contestar a situação: “Excelentíssima Juíza, é um absurdo eu estar aqui por um motivo tão pequeno. Não sei porque adoram me arrastar pra cá o tempo todo. Parece que fico mais tempo remoendo a culpa de qualquer besteira ou pensamento inútil e cumprindo sentenças do seu tribunal do que vivendo a minha vida!”
A corte entrou em alvoroço. A ré olhava em volta e não entendia o porquê de eles estarem rindo. A acusação a olhava com desdém e, talvez, pena. Até a juíza saiu de seu tédio e respondeu à menina:
“Nós já tivemos essa conversa essa semana, menina esquecida. Você vem pra esse Tribunal de Culpa por conta própria! Não seria crime você rejeitar os chamados e não vir. Se está aqui é porque quer ser punida. Estamos todos aqui, bem cansados na verdade, só pelo seu desejo de se torturar.”
A menina parou em choque. Era verdade. E o mais triste, é que realmente já tinham tido essa conversa antes. E havia jurado não botar os pés no Tribunal da Culpa, que só lhe trazia sofrimento e fazia perder tempo. Na frente de todos os presentes, ela se levantou, saiu de trás da mesa e foi pelo corredor central para a saída. Ninguém a impediu e nem ninguém a impediria. Assim que saiu, viu como a luz voltava a brilhar em sua mente, fora do Tribunal. A crise estava passando.
Apesar do alívio que sentia ao conseguir sair, infelizmente não estava pronta para nunca mais voltar. Ao menor chamado já se via indo para lá. Ainda voltaria muitas e muitas vezes ao Tribunal da Culpa.