Ninguém vai a Lugar Nenhum - Parte 3

Capítulo 17: Dia sete de algum mês de mil e tantos anos

Após visitarem o Planeta Affectum, os dois seguiram vagando pelo vasto universo, trilhando seus caminhos com perguntas, histórias, anedotas e brincadeiras. Em certo horizonte, um fenômeno assustador se aproximou: uma tempestade cósmica formada por energias negativas, emanando medo e angústia.

Apesar do temor, os dois decidiram adentrar a fervorosa tempestade cósmica. Adentrando o furacão de pensamentos tumultuados e emoções turbulentas sentindo medo pela primeira vez desde o Affectum. A tempestade era intensa e ameaçadora, com raios de escuridão cortando o espaço ao redor deles.

Em meio ao caos, enfrentaram os ventos assustadores e as visões perturbadoras, percebendo que o medo não era algo a ser temido em si, mas uma parte natural da jornada da vida. Tinham superado o medo antes, e agora o fizeram novamente. O medo se tornou um aliado, um impulso para crescer, aprender e se adaptar.

À medida que Ninguém e Atélis superaram a tempestade cósmica, emergiram do outro lado com uma nova compreensão de si mesmos e de seus sentimentos. O medo não os derrotou; pelo contrário, os fortaleceu.

Ao chegarem ao fim da tempestade, com seus cabelos e pensamentos tremendamente embaraçados, olharam para trás, despedindo-se da tempestade de medo, que ainda caminhava rumo a outros seres para atormentar. Mas sabiam que isso era algo necessário na vida de todos. Todos precisam dos sentimentos, do amor, da alegria, e do medo.

Novamente seguiram adiante, sem temer o desconhecido, pois tinham um ao outro e estavam determinados a encontrar Lugar Nenhum.

No fim da tempestade, depararam-se com uma fenda no espaço-tempo, que os levou a um lugar completamente iluminado, sem escuridão.

Ao atravessarem a fenda, ela fechou-se logo atrás deles.

Capítulo 18: 01101100 01110101 01100111 01100001 01110010 00100000 01101110 01100101 01101110 01101000 01110101 01101101

Ao atravessarem a fenda, ela se fechou abruptamente, deixando-os em um local mágico, repleto de luzes e cores nunca antes vistas. Sentiram que haviam alcançado algo extraordinário, algo que ultrapassa os limites do conhecido e do imaginado.

As luzes revelaram ser vozes do além, guardiãs da existência e tempo.

As milhares de vozes disseram em sintonia:

— Vocês devem seguir separados, pois é o que o universo exige, e assim será. A união de quem não teme o desconhecido é um crime cósmico, julgado pelas estrelas, cometas e vagantes como consequências de seus atos. — Após uma longa pausa, as vozes prosseguiram:

— Vossos julgamentos serão individuais e suas sentenças serão: vagar solitários pela eternidade. No entanto, como ambos são seres eternos, será concedido um último século para passarem juntos. Aproveitem seus últimos momentos com sabedoria, não desperdicem o valioso tempo concedido.

Perplexos com a notícia inesperada, Ninguém foi o primeiro a expressar sua indignação:

— Apenas um século? Isto é um tempo tão curto! Como podemos encontrar Lugar Nenhum juntos em tão pouco tempo?

Atélis, por sua vez, respondeu:

— Ainda possuo inúmeras histórias e charadas para lhe contar.

Capítulo 19: Amanhã

Atélis e Ninguém viveram seu último século, conforme ordenado pelas guardiãs da existência. Juntos, exploraram diversos cantos do universo, testemunharam paisagens cósmicas, formação de planetas e mortes de estrelas. Porém, internamente, estavam apreensivos com a chegada do último dia que passariam juntos.

Após trinta e seis mil, quatrocentos e noventa e nove dias, finalmente chegou o último dia. O tempo parecia ter voado, como se todos os momentos compartilhados em um século se passaram em milésimos de segundos.

— Não quero adormecer, Atélis. Não quero que o amanhã chegue. Não quero ver o dia seguinte. — Ninguém expressou sua preocupação e relutância em relação a enfrentar o amanhã.

— Podemos fugir, fugir do tempo. Rasgar o espaço-tempo e assim ficarmos juntos, e finalmente encontrarmos nosso precioso Lugar Nenhum. — Respondeu Atélis, em uma proposta impensável e impossível. Aparentemente.

— Podemos tentar, afinal, se nada fizermos, não iremos nos ver mais. Como último capítulo de nossa história juntos, tentaremos encontrar uma forma de prolongá-lo, mesmo que minimamente. — Concluiu Ninguém, com uma certa esperança em sua voz, acolhendo a ideia,

No entanto, enquanto planejavam sua fuga, a grande voz de Grmnnu Luhae surge diante deles e os interrompe, em seguida, as guardiãs da existência surgem rodeando os jovens.

Desolados, os dois aceitaram a realidade e esperaram sermão que lhes seria dado.

— Tolos — advertiu a grande voz. — Um tempo lhes foi dado, e de fato isso é um fardo — concluiu. — Não poderão rompê-lo, e sim o seguir, pois se assim fizerem, ambos deixariam de existir.

As guardiãs nada disseram, apenas assentiram, concordando com a grande voz.

Todas as vozes somem, deixando os dois novamente a sós, e entristecidos.

— Nada poderemos fazer, somente aceitar. Peço-lhe firmemente Ninguém, que em toda pergunta ou dúvida que tiveres, que se lembre de mim. E se por qualquer motivo existente você me esquecer, eu darei um jeito de fazer você se lembrar, e pode escrever o que digo, não será de forma boa. — Disse Atélis, em um tom melancólico e ameaçador ao mesmo tempo.

— Não te esquecerei, Atélis, não poderia, os momentos mais felizes de minha vida passei contigo, seria como esquecer uma parte de mim mesmo. — Respondeu Ninguém, enquanto uma lágrima descia calmamente por seu rosto.

Cientes do pouco tempo que restava, decidem ir ao seu planeta favorito em meio a todos os existentes: Paráxenos, ou "o planeta da esquisitice" batizado carinhosamente por Atélis.

Capítulo 20: Paráxenos "o planeta da esquisitice"

O planeta era verdadeiramente estranho, e Atélis não poderia ter sido mais preciso em sua observação. Suas árvores se contorciam e balançavam como serpentes dançando ao vento. Os céus eram cor de vinho e as "gotas" de chuva que caíam eram triangulares, criando uma cena surreal. Por fim, o local que mais fascinou Ninguém e Atélis naquele ambiente esquisito: O lago espelhado.

Os lagos sempre possuem reflexos, mas aquele era diferente. Ele gravava as imagens do que refletia gravada em suas águas, como se fossem fotografias. Em sua primeira visita, os dois deixaram diversas "fotos" no lago, com caretas e poses divertidas para que pudessem recordar seus momentos juntos. Cada imagem no lago contava uma história, silenciosamente, eternizando suas memórias compartilhadas.

Sentados na beira do lago, os dois suspiraram impacientemente, cientes de que o tempo estava se passando. Então, Atélis olhou para Ninguém com sua última pergunta que perambulou por sua mente durante todo aquele século.

— Porquê? — Sua voz ecoou no ar.

Antes que pudesse responder, algo não tão inesperado aconteceu. Uma luz brilhante os envolveu, e o ambiente ao redor se desvaneceu rapidamente. Eles foram transportados para um lugar desconhecido, um espaço além do espaço-tempo.

Diante deles, viveram seres de luz, emanando uma energia serena e misteriosa. Eles perceberam que estavam diante de seu julgamento final, um momento de avaliação de toda a jornada que percorreram até aqui.

Capítulo 21: .-.. ..- --. .- .-. / -. . -. .... ..- –

O julgamento de Ninguém e Atélis ocorreu em um tribunal galáctico altamente formal, com o Juiz presidindo a sessão, como as guardiãs representando o papel de júri e advogados em ambos os lados. A plateia era composta por todos os companheiros dos réus, incluindo Peônia e os habitantes dos planetas que eles visitaram. Centenas de bilhões de seres estavam presentes para testemunhar ou julgar Ninguém e Atélis.

I

Julgamento de Ninguém

Ninguém foi o primeiro a ser julgado, e durante o processo, foi mantido em uma cúpula de vidro para garantir a ordem na sala. A voz-advogado apresentou uma lista detalhada dos crimes a eles imputados:

— Não temer o desconhecido — Crime cósmico de primeira categoria.

— Viagem intergaláctica sem autorização — Crime cósmico de quinta categoria.

— Retirada de ser ou objeto de seu planeta de origem, em duas ocasiões — Crime cósmico de nona categoria.

— Tentativa de assassinato de planeta — Crime cósmico de décima segunda categoria.

— União de dois seres eternos que não temem o desconhecido — Crime cósmico de categoria vigésima.

A lista continuou abordando diversas infrações, até que se chegou ao crime mais grave:

— Tentativa de rompimento espaço-temporal — Crime cósmico de centésima categoria, considerado inafiançável.

Após uma cuidadosa análise dos fatos e argumentos apresentados, o Juiz proferiu o veredicto:

— Culpado.

A sentença aplicada a Ninguém foi severa:

— Você será exilado no espaço, proibido de qualquer tentativa de comunicação.

A decisão foi imposta como forma de proteger a integridade do universo e coibir condutas que ameaçassem a ordem cósmica.

O julgamento de Atélis aconteceria em seguida, e o tribunal aguardava atentamente a continuação do processo. O destino de ambos estava prestes a ser selado pelo sistema de justiça galáctica.

II

Julgamento de Atélis

No julgamento de Atélis, foi levado em consideração o fato de que ela passou muitos anos presa em seu casulo, o que ficou em menos incoerência em relação a Ninguém. A voz-advogado apresentou uma lista reduzida de crimes:

— Desacato à autoridade cósmica — Crime cósmico de segunda categoria.

— Roubo de objetos de seu planeta de origem — Crime cósmico de nona categoria.

— E os mesmos crimes pelos quais Ninguém também havia sido acusado.

As guardiãs e a grande voz observavam Atélis atentamente, mantendo o ambiente tenso e solene durante o julgamento. Sendo possível ouvir alguns bocejos sonolentos vindos da plateia.

Após a leitura dos crimes, finalmente, quebrando o silêncio constrangedor que pairava na sala, uma das vozes questionou o Juiz:

— Meritíssimo, qual sua decisão final?

O Juiz, cuidados após a reflexão, declarou:

— Declaro o réu acusado. No entanto, não a exilaram no espaço.

Após uma breve pausa para confirmar sua decisão, o Juiz prosseguiu:

— Prendam-na novamente em seu casulo.

A decisão de mantê-la no casulo foi tomada considerando o tempo que ela passou lá e com o intuito de que a pena aplicada lhe permita refletir sobre seus atos e as consequências de suas ações. A sentença foi aplicada em conformidade com as leis e diretrizes do tribunal galáctico, buscando garantir a justiça e a ordem no universo.

III

Aplicações das sentenças

Após o veredicto de culpa, Ninguém foi exilado no espaço. Sendo deixado somente com a própria sorte, vagando solitariamente pelos confins do universo. A pena era dura, mas necessária para evitar que suas ações perturbassem ainda mais a ordem cósmica.

Atélis teve uma pena diferente, foi obrigada a retornar ao seu antigo casulo, sem a possibilidade de receber visitas. A pena foi dada buscando uma forma de transformação e reflexão de seus atos.

Sentenças dadas, o tribunal vai aos poucos se desfazendo, cada ser ali presente retornou ao seu local de origem, uns felizes, outros murchos, uns calados. Mas todos saíram cientes de que naquele tribunal havia se encerrado a história de Ninguém e Atélis.

Capítulo 22: O Rei cego

Seguindo sozinho, Ninguém sentia sua vida mais cinzenta, como se uma parte de si mesmo houvesse partido. Tentava ao máximo não pensar em Atélis, apesar de não ter visto a pena que foi aplicada a ela, ele tinha a esperança de que os dois iriam se encontrar novamente, em Lugar Nenhum.

Ao horizonte, o jovem ouviu trombetas arranhadas, aparentando não serem tão usadas. As trombetas tocaram, e ao chegar ao fim da canção, uma voz começou a contar uma breve história:

— Era uma vez, em um reino distante, reinava um monarca conhecido como O Rei Cego, que, apesar de seu título, governava com grande sabedoria e justiça.

O Rei Cego adquiriu sua habilidade única após um evento enigmático em sua juventude. Uma antiga profecia dizia que um líder com uma visão além das aparências governaria com sabedoria e empatia, autoridade e paz ao reino. Quando o jovem príncipe perdeu a visão após um acidente, o povo acreditou que a profecia estava se cumprindo.

Em vez de se deixar abater pela perda da visão física, o príncipe se desenvolveu a desenvolver sua mente e outros sentidos. Aprendeu a ouvir com atenção, sentiu cada vibração do ar e percebeu o mundo através de suas outras faculdades. Com o tempo, ele se tornou capaz de ver além das aparências e compreender as intenções e emoções das pessoas.

Quando assumiu o trono, O Rei Cego mostrou-se um governante exemplar. Sua empatia e sabedoria eram incomparáveis. Ele escutava atentamente os anseios de seu povo e tomava decisões motivadas no bem-estar coletivo. Seu coração sensível e mente perspicaz permitiriam enxergar além das artimanhas e intrigas políticas, protegendo o reino de disputas e conflitos desnecessários.

E assim, o legado do Rei Cego perdurou através dos séculos, servindo como um terapeuta constante de que a verdadeira visão está no coração e na alma, e não nos olhos físicos. — Após isso, a voz se calou.

Ao chegar ao desfecho da história, Ninguém pôde notar a existência de um imponente reino, porém, não tão próspero quanto o esperado. Seu magnífico muro encontrava-se rachado e coberto por uma densa camada de vinhas e musgos. As torres eram meros destroços do que já foram um dia, e o grandioso castelo exibia suas vidraças, decorações e enfeites em pedaços, sem vida, espalhados como trapos.

Ao adentrar as ruínas do castelo, Ninguém pôde notar um velho com longas barbas e cabelos, cujos olhos estavam enevoados e perdidos em seu profundo sono por milhares de anos.

Ao aproximar-se do Rei cego, o jovem tomou um susto ao notar o despertar do Rei, que, de alguma forma, percebeu sua presença e começou a falar:

— Seja bem-vindo, nobre viajante. O que te trás as minhas prósperas terras? Onde estão meus modos? Sou o Rei Caecus, o cego — Disse ele, estendendo sua mão enrugada ao vento, esperando que Ninguém o cumprimentasse.

Ninguém o cumprimentou e respeitosamente disse:

— Majestade, onde está seu povo? Tudo aqui está em ruínas!

De repente, Caecus caiu em uma risada fervorosa, que aparentou durar alguns minutos. Ao retomar sua seriedade, o Rei perguntou seriamente: — Ruínas? Ora, meu jovem, não diga besteiras. Meu reino está prosperando como nunca! Todos possuem riquezas, meus guerreiros estão bem treinados e os dragões não nos atacam há muito tempo. Meu reino está se expandindo e, no futuro, pretendo dominar aquela grande área bem ali, ao lado do penhasco — e apontou com seu dedo magro. — Lá, irei construir uma fazenda.

Ninguém tentou intervir, afinal, o Rei cego estava enxergando coisas que Ninguém não estava vendo, e isso era loucura:

— Mas, Vossa Majestade, não há nada lá.

O Rei riu novamente, e prosseguiu com sua fala:

— Você daria um ótimo contador de piadas, quer trabalhar em meu reino como bobo da corte? Como não consegue ver? Acho que você é o cego aqui! — Expressou o velho rei, com uma breve irritação. — Vamos, feche seus olhos e veja! Adentre meu verdadeiro reino, vamos, não tenha receios!

Ninguém então fechou seus olhos, e após suas pálpebras tocarem-se, um outro ambiente surgiu: O castelo agora está iluminado por candelabros e tochas nas paredes. No chão um longo tapete vermelho se estende desde a entrada até o trono do velho rei. O rei parecia o mesmo, mas ao fitar seus olhos, Ninguém notou que a neblina havia desaparecido de sua visão. Não era mais cego.

Após sair do castelo, a sensação era de estar em outro mundo: O reino estava prosperando, com diversos moradores, ferreiros, tecelões, soldados, dentre outros. O muro e as torres, que antes eram só ruínas, estavam agora completamente restaurados e exuberantes.

Ninguém não estava acreditando no que estava vendo, era algo indescritível. Enquanto olhava a bela vista daquele reino, o rapaz sentiu uma presença se aproximando dele.

— Como eu havia lhe dito — disse o rei, enquanto olhava o horizonte — O reino está prosperando, nossas terras se expandem a cada dia e meus habitantes estão felizes. Irá se juntar a nós?

Ninguém estava solitário e seu objetivo aparentava estar muito distante. A proposta foi breve, sem muita cerimônia, e após fazê-la, o rei ficou em silêncio. Depois de pensar por alguns instantes, Ninguém aceitou a oferta.

Com um ato de felicidade, o rei soou um grande berrante e gritou para todo o reino:

— Temos um novo habitante! Vamos comemorar! — E todo o reino vibrou em harmonia.

Capítulo 23: O Reino dos Sonhos

O rei conduziu Ninguém até um dos quartos do castelo. Enquanto subiam as escadas, os moradores e empregados do castelo cumprimentavam Ninguém como se não recebessem um novo habitante a anos. No quarto, o rei ordenou que alguns de seus criados trouxessem a melhor vestimenta para Ninguém. E ao se retirar do quarto, o rei concluiu:

— A festa não pode parar.

Com tudo pronto, Ninguém desceu as escadas e se encontrou com o rei no salão principal. Ninguém estava vestido com uma roupa do melhor tecido, acompanhado de ombreiras e acessórios dos mais caros metais. O rei, por sua vez, estava vestido com suas roupas comuns, assim como todos no reino.

O rei acompanhou Ninguém até o centro do reino, onde todas as celebrações e festas eram realizadas. O local era um grande campo cercado por árvores de várias espécies. No centro, mesas e cadeiras se estendiam por grande parte do espaço. Os habitantes estavam todos sentados em suas respectivas cadeiras, nas quais continham seus nomes. Todas as cadeiras estavam ocupadas, exceto três delas: “Caecus”, “Oblitus” e uma cadeira sem nome.

— Por que aquela cadeira não possui nome? — Perguntou Ninguém.

— Porque é a sua cadeira, e você deve batiza-la — disse o rei enquanto entregava uma faca a Ninguém.

O jovem pegou a faca e riscou a cadeira. No entanto, ao cravar a última letra, o nome se transfigurou à sua frente. O nome que de fato estava na cadeira era: Alguém.

— Seja bem-vindo ao reino dos sonhos, Alguém. — Disse o rei.

— Mas me chamo Ninguém — Indagou

— Não é o que diz a cadeira. A partir de hoje você se chama Alguém.

Ninguém não havia gostado daquilo. Ninguém era seu nome e gostaria de permanecer com ele. No entanto, deixou sua inquietação de lado e aproveitou a festa.

Algum tempo depois, todos os habitantes dirigiram-se até suas respectivas casas e o rei foi levado ao castelo por seus criados, pois havia desmaiado devido à embriaguez. Ninguém permaneceu ali, pensativo. Aquele reino era incrível e misterioso, muitas de suas perguntas foram simplesmente ignoradas, e qualquer questionamento sobre o passado daquele lugar era respondido com: — O Reino está prosperando.

Além disso, Ninguém não viu o Oblitus a noite toda. Em certo momento tentou questionar sobre sua cadeira, mas foi interrompido pelo rei com uma rígida resposta: — Não comentamos sobre aquela cadeira.

Como o reino todo estava dormindo, Ninguém decidiu observar a cadeira mais de perto. A cadeira era gasta, rangia um pouco e o nome gravado aparentava estar riscado, como se essa pessoa estivesse em uma espécie de exílio.

Ninguém se virou instintivamente, pois estava se sentindo observado. Foi então que percebeu alguém sentado em um dos galhos de uma árvore próxima, uma pessoa que ainda não tinha visto no reino.

Era um homem idoso, vestido com trapos. Seu odor era nauseante, como o de um cadáver e contaminava o ambiente. Sua pele estava enrugada e coberta de feridas. Seus olhos revelavam algo que Ninguém já havia presenciado: o medo.

— Estão mentindo — disse o idoso, com uma voz fraca. — Este reino não está prosperando, está apodrecendo. Estamos todos apodrecendo.

Ninguém, intrigado com as palavras do homem idoso, decidiu se aproximar e perguntar mais sobre o que ele queria dizer. O homem olhou para Ninguém com olhos tristes e revelou sua história:

— Sou o dono desta cadeira com o nome de Oblitus, e um dia fui habitante deste reino. Contudo, recentemente caímos em uma doença que nos aflige todas as noites, roubando nossa vitalidade. Pesadelos — disse Oblitus, com lágrimas turvando seus olhos. — O rei e os demais moradores podem esconder o sofrimento, mas estão moribundos, com os dias contados. Se não sair deste lugar o mais rápido possível, você encontrará o mesmo destino.

Ninguém ficou confuso com a menção aos pesadelos e indagou:

— Pesadelos? O que são? — Perguntou Ninguém.

— Nunca teve pesadelos? Eles são… Não tenho palavras para descrevê-los. Só de pensar, sinto um calafrio percorrendo minha espinha. — Oblitus respondeu com um arrepio de apreensão

Enquanto conversavam, luzes pareciam se aproximar, e Oblitus observava a aproximação delas. Ele se despediu apressadamente de Ninguém, alertando-o com suas últimas palavras de advertência:

— Preciso ir, o Rei se aproxima. Antes que vá, preciso lhe dizer uma última coisa: jamais durma! Sob qualquer circunstância. — Ao terminar sua fala, o homem já não estava mais lá.

Antes que Ninguém pudesse responder, o homem ficou como poeira diante de seus olhos. Logo em seguida, o rei e alguns de seus servos se aproximaram de onde Ninguém estava. O rei parecia atordoado, lutando para manter-se acordado, mas conseguiu, pelo menos por enquanto.

— O que fazes aqui? Admirando a bela vista? Venha para o castelo, meus servos lhe mostrarão seu quarto. — Disse Caecus.

Mas o jovem não queria ir ao castelo; ele queria respostas e estava determinado a obtê-las

— Conheci Oblitus — disse Ninguém.

Sem ouvir o resto da fala de Ninguém, o rei já tomou uma expressão de apavoro, sua presença receptiva tornou-se mais fechada, e seu olhar tornou-se ameaçador.

— Oblitus é um renegado do reino, um lunático que tenta rechear a cabeça dos outros com lorotas. O que ele lhe contou? Sobre fadas? Dragões? Algum tipo de…

Antes que o rei pudesse terminar, Ninguém lhe respondeu:

— Pesadelos, ele me alertou dos pesadelos.

— Pesadelos? Ora você está tão louco quanto Oblitus, por favor Ninguém, retorne a suas terras, vejo que não merece o Reino dos sonhos.

O rei e seus servos retornam ao castelo, e Ninguém aos poucos desaparece, retornando ao mundo desperto.

Capítulo 24: As Raízes

Ao retornar ao mundo que conhecia, Ninguém teve uma sensação peculiar, como se toda sua experiência no reino dos sonhos fosse simplesmente um devaneio de sua mente. Quando finalmente tentou abrir os olhos, o rapaz se pôs em um estado de choque ao perceber que seu esforço era nulo. Suas pálpebras se negavam a abrir, como se fossem costuradas.

Num ato de desespero, tentou tocá-las, e encontrou algo com textura áspera erigida sobre suas pálpebras, impedindo-as de abrir. Com o passar do tempo, o jovem conseguiu libertar seus olhos daquela prisão de:

— Raízes? — Questionou Ninguém muito intrigado.

O cenário ao seu redor permanecia o mesmo, as decadentes ruínas do reino dos sonhos. No entanto, um detalhe notável destacou-se na paisagem: as raízes. Estendiam-se por todo o reino, porém eram completamente diferentes das raízes comuns. Tinham uma coloração negra, eram tão resistentes quanto concreto e, por alguma razão misteriosa, estavam determinadas a manter Ninguém sob seu controle, fazendo-o dormir.

A medida que Ninguém se libertava da sua prisão, as raízes passaram a persegui-lo implacavelmente. Pareciam desejar que ele retornasse ao reino dos sonhos, ansiando que ele adormecesse, talvez terminarem o que haviam começado.

Temendo o perigo que o reino dos sonhos corria com as raízes, o jovem seguiu ao que restava do grande castelo para despedir-se de Caecus.

Quando entrou no castelo, ficou incrédulo com a terrível transformação que o velho rei havia sofrido. Sua pele outrora enrugada estava em um estado de decomposição, atingindo uma tonalidade esfacelada, semelhante às folhas secas de outono. Seus olhos, antes vazios, tinham afundado profundamente em suas órbitas, e seus dedos esqueléticos estavam inchados como batatas prestes a apodrecer. Estava morrendo. Era uma cena de agonia e decadência.

Ninguém, assustado com a transformação do velho homem, não conseguiu conter a pergunta que queimava sua mente:

— Vossa majestade, o que houve?

O rei cego respondeu com uma voz fraca, cada palavra parecendo consumi-lo ainda mais:

— Pesadelos… Não temos poder contra eles. Oblitus estava certo. O Reino dos sonhos está em ruínas.

Enquanto falava, partes de seu rosto e corpo se desfazem, como um castelo de areia sendo levado pelas ondas do mar. A cada palavra, sua forma parecia se deteriorar ainda mais, desfazendo o ser que algum dia já fora.

O rei cego, mesmo com sua visão comprometida, virou seu olhar na direção do jovem e proferiu suas últimas palavras com sabedoria:

— Você se tornou Alguém, nunca foi Ninguém. Deve seguir seu caminho, não olhe para trás, meu jovem, nossos destinos se desfazem aqui. Nunca esqueça, nem tudo o que vemos é com os olhos abertos. O reino dos sonhos será apenas mais uma de suas memórias. Desapareceremos na bruma do tempo.

O rei e todo reino em instantes foi consumido pelas raízes, e todos tornaram-se pó diante de Ninguém, toda a história ali vivida estava destinada ao esquecimento eterno, tudo foi consumido pelos pesadelos.

Ninguém olhou ao seu entorno e seguiu solitariamente, em direção ao seu destino aparentemente inalcançável, rumo a algo que ele estava duvidando ser real. Mais uma vez, ele se dirigiu, em busca de Lugar Nenhum. Porém já não buscava sendo Ninguém, ele tinha aprendido algo. Tinha se tornado Alguém.

Gabriel Lofy
Enviado por Gabriel Lofy em 24/11/2023
Código do texto: T7939071
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