Ojeriza ao Fim - CLTS 25

- Ele não vai me alcançar... - Beorth disse para si enquanto subia com cuidado a difícil trilha na face da montanha rochosa. - Não vou sucumbir como ele. - Lembrava do seu rei, Magnar, que ele acabara de enterrar. - Eu vou conseguir ! - Parou ofegante, encarando a cidade longe a suas costas e não conteve as lágrimas. As faixas negras presas da torre do castelo até as muralhas, marcavam o luto.

Beorth usava seu robe real branco, com o símbolo do reino e de sua ordem bordados em prata. Seus cabelos longos se misturavam com a barba desleixada, ambos já iam perdendo a cor. Ele era o Clérigo Real, cargo honroso e de extrema confiança. Passou a maior parte de sua vida servindo fielmente o Rei dos Homens, Magnar Wardan, que antes de ser rei era seu ídolo e o de muitos. O maior mago que já existiu.Graças a seu cargo, o Clérigo acompanhou intimamente a trajetória do rei, viu e participou da maioria de suas conquistas. Fazia parte de toda a lenda que rondava cada batalha e cada feito épico de seu rei. Presenciou exércitos inimigos se rendendo com a simples presença de Magnar no campo de batalha. Mas, também viu sua decadência. O título de Clérigo Real lhe permitiu acompanhar o rei de muito perto e o que era uma benção, com o passar dos anos, se transformou num martírio. Magnar ficou velho e fraco, foi obrigado a se dobrar a política para continuar ‘poderoso’ dentro de seu próprio reino. Sua magia, que outrora fora confundida com catástrofes naturais, no fim de sua vida, não passava de um acender e apagar de luzes. Sua postura altiva e firme se dobrou com o peso do tempo e até seu caminhar virou um penoso arrastar de sandálias.

- Eu vou conseguir! - Beorth voltou a si, secando as lágrimas. - O tempo não vai me alcançar.

Respirou fundo e retomou sua caminhada, usava seu cajado para se apoiar, resmungava sobre sua pesquisa, seu passado e presente glorioso e as possibilidades que estavam à sua frente. Trazia uma bolsa com algumas poções e suprimentos, tinha outro cajado preso a cintura, curto e grotesco.

Depois da longa caminhada, chegou na entrada da caverna. Descansou um pouco antes de retirar alguns feitiços que a mantinha escondida e protegida. Entrou e depois os reaplicou. O cheiro de urina e dejetos era forte. Estava dentro de um túnel curto completamente escuro, se não fosse por uma fagulha de luz intensa no fundo. Jogou tudo que tinha no chão, secou mais uma vez os olhos e foi até lá, segurando uma fruta gorda que retirou da bolsa.

O túnel terminava numa área quase redonda, tudo era esculpido na rocha, com apoios e escoras de madeira. No chão havia um recipiente com uma magia branca que iluminava a área, do outro lado um prisioneiro que dormia. Acorrentado pelos pés e amordaçado, era um Orc. Estava visivelmente fraco, entregue à exaustão, deitado sobre a própria sujeira. Sua aparência era deprimente. Não vestia nada. A magia branca o afligia.

- Está com fome? - O Clérigo perguntou achando graça da situação do outro. Já se habituara ao mau cheiro.

O Orc despertou assustado, demorou pouco mais de um minuto até conseguir encarar seu sequestrador. Estava machucado, a pele queimada em várias partes e cortes por todo corpo.

- Não vai responder? - O clérigo riu e mordeu a fruta. Seu suco escorreu pela barba até ser sugado pela roupa.

O cheiro fez o estômago do Orc se manifestar.

- Vou tirar isso de você. Mas, lembre-se do que aconteceu na última vez … aquele seu dedo que arranquei foi pouco pelo que você tentou fazer. Não é verdade?

O Orc continuava deitado, apesar de seus mais de dois metros e corpo musculoso, era nítido a falta de esperança em seus olhos. Olhou para suas mãos e se sentou com esforço. Balançou a cabeça concordando com Beorth que se adiantou e tirou a mordaça. Se afastou e jogou a fruta em seu rosto. Riu quando o prisioneiro se esticou de qualquer maneira para comê-la no chão. O orc estava sem as presas.

- Isso, isso. Fique forte! - Beorth tinha um encantamento de fala ativo, para poder entender e ser entendido pelo outro.

- Beorth … ainda dá tempo … para com essa loucura… - O Orc disse com uma voz rouca e vacilante, enquanto engolia a fruta.

- Já está acabando Rogg. Meu objetivo está próximo, você viu como estamos evoluindo… - O clérigo balançava a cabeça impaciente

- Não Orth… Não! - O Orc não aguentava mais argumentar. Perdera a noção de quantos dias estava preso ali. - Nossa magia é ... incompatível.

- Tá bom. Tá bom… parece que voce ja esta pronto não é?! Agora vamos começar… - Beorth tinha sua própria convicção. Pegou o cajado curto de sua cintura. - Você sabe o que eu preciso...

- Você nunca irá controlar a arte das trevas Orth. Nossa magia é incom … - Beorth o interrompeu intensificando a luz da magia branca, fazendo o orc soltar um urro e se encolher de dor.

- Eu não quero saber oque você ‘acha’. Eu quero que você me obedeça! - O Clérigo foi até. - Tome isso. - Lhe entregou o cajado. Se afastou sacando o seu. Longo e refinado, com runas encantadas incrustadas. O que o acompanhou em suas batalhas. - Não vamos perder tempo, tá bom.

O orc pegou a arma e se pôs de joelhos, balançando a cabeça, cansado..

- Isso é ... magia Orc! - Rogg tentou mais uma vez. - De natureza Orc… - outra vez foi silenciado pela magia branca.

- Não fale! … vamos logo com isso. - O semblante de Beorth mudara totalmente.

- Você precisa nascer das sombras pra controlar … - Perdera a noção de quantas vezes já havia repetido isso. - Somos amigos Orth. Você e eu convivemos por muito tempo… sabemos que isso não irá funcionar...

- Cale a boca ! Quem é voce pra saber de alguma coisa? - O clérigo se alterou, estava desesperado - Um Necromante medíocre, mal sabe invocar e quer me dar lições? - O orc baixou a cabeça esperando castigo, mas não veio. Beorth voltou a chorar. - Você me conhece… sabe o que eu represento. Eu estou no ápice do meu poder! Sou o melhor da minha ordem.. Não posso e não vou me render Snall-Rogg. Não quero ouvir mais nada! … Faça o que mandei.

- ma…

- AGORA!... Faça o que eu mandei agora!

O clérigo o encarava com olhos vidrados. Depois de alguma hesitação, o orc obedeceu. Se levantou com dificuldade, era jovem, tinha meio metro a mais que o outro e o dobro de sua largura. Apesar de também ser um mago, tinha o físico característico de sua raça. Encarou o clérigo, estava desiludido de tudo aquilo. Buscou a concentração, respirou fundo e lentamente recitou um feitiço no idioma dos necromantes. Uma pequena nuvem negra dançante foi se formando à sua frente conforme ele falava. Era um espírito das trevas sendo invocado. Usado pelos Necromantes para possuir um corpo sem vida e usa-lo conforme sua vontade.

- Isso. Isso! - O clérigo se empolgou. - Agora é minha vez..

Tirou de suas vestes uma pequena runa antiga, vazia. Uma joia rara capaz de reter magia. Postou a runa diante do espírito. Ergueu seu cajado com uma mão e com a outra apontou para a joia. Começou a murmurar um feitiço num idioma antigo, perdido no tempo. Falou uma vez. Nada aconteceu. Outra vez, e novamente nada. O espírito, suprimido pelo seu invocador, não passava de uma silhueta negra de olhos fumacentos, olhava do Orc para o Humano. Beorth recitou mais quatro vezes e nada aconteceu. Na quinta tentativa mudou uma palavra do feitiço e uma ondulação se fez no ar ao seu redor, e nada além disso. Foi o suficiente para animá-lo.

- Eu… não aguento mais… - O Orc dissipou o espírito sem forças para mantê-lo.

- De novo!

- Preciso me recuperar.

Beorth tirou uma pequena poção azulada de dentro de suas vestes e jogou para ele tomar.

O Orc bebeu e invocou novamente. Uma invocação simples, fácil de controlar e mesmo assim o Clérigo sequer ameaçou tomar seu controle, ele não sentiu perturbação nenhuma sobre seu domínio. O Clérigo recitava, apontando a mão livre para a runa e o cajado para o espírito. O máximo que conseguiu foi ondular o ar novamente várias vezes, nada além disso.

- Já disse ... não vai funcionar... - O orc disse desesperado, depois de ver o espírito se dissipando no ar de novo. - Sua nature… - foi interrompido pelo cajado batendo em seu rosto, o jogando no chão.

- DE NOVO!

- Por favor...

- DE NOVO!

- Isso é inútil… - Recebeu outra pancada.

- DE NOVO! MALDITO. INVOQUE E CALA ESSA BOCA! - Beorth exalava sua angústia.

- VOCÊ NÃO VAI CONSEGUIR! - O orc também gritou. - Não importa quantas vezes você tente. É impossível.

O clérigo ouviu calado, sorrindo e balançando a cabeça.

- Quem é você pra achar que sabe de alguma coisa? - Tirou uma faca curta do coldre. - Eu não sou nascido da Luz, feitos os Elfos... e você é testemunha do meu poder com a magia de luz, não é?

Intensificou a magia branca, o orc se encolheu no chão em sofrimento. Beorth parou na sua frente e cravou a faca em sua coxa. Se satisfez quando ouviu um grito.

- Eu não vejo a luz como um elemento, como os Elfos fazem. Eu a vejo como meu objeto de fé. Isso cria um vínculo. Isso me dá controle sobre ela. Agora as sombras… as trevas. Eu vejo como representante do mal. - Disse e girou a faca na perna do infeliz, que mal conseguia se mexer diante da luz intensa, sua pele queimava. - Você vai me ajudar a provar que minha maldade criou um laço com as trevas e isso me permite manipulá-la.

Se levantou e fez uma lâmina de luz na ponta do cajado. Perfurou o Orc pelo menos três vezes, antes de deixá-lo. Voltou para a entrada da caverna sob os gritos e rosnados de fúria e frustração do prisioneiro. "Agora é tarde demais" pensou. Analisando o passado recente, quando recebera seu amigo Snall-rogg como representante dos Orcs para uma troca de cultura e fortalecimento da amizade entre as raças.

- Agora é tarde demais! - Disse enquanto comia a maioria das coisas que havia trazido. Retirou alguns pergaminhos dos seus bolsos e buscou alguma pista sobre o feitiço que tentava executar. Passou anos em busca daquele conhecimento, teve que se desfazer de quase toda a sua riqueza para convencer um Elfo a ensiná-lo a ler e a dizer as palavras antigas. Ensaiou as palavras à exaustão, uma a uma.

Voltou até o Orc com plantas medicinais. Reduziu a magia de luz para o mínimo possível e jogou as folhas sobre o condenado.

Snall-rogg estava tremendo, sua pele estava com queimaduras profundas e coberta de sangue que escorria e se misturava com a imundice do lugar. Da maneira que estava pegou as folhas e começou a mastigá-las devagar.

- Você … está… lou...louco. - Falou com esforço.

O clérigo andava de um lado para o outro resmungando suas teorias, trocando folhas com escritas antigas diante dos olhos relendo-as. Ensaiando cada palavra novamente.

- Louco? Eu ? - Riu forçadamente. - Eu sou o maior Clérigo que pisou neste mundo, seu desgraçado! Eu não vou morrer como todos aqueles grandes heróis antes de mim…. Como Magnar…

Snall-rogg estava deitado de costas no chão e o encarou transtornado.

- Seu rei morreu?

- Sim! E meu legado não ficará só em lendas e canções como o dele. Eu serei meu legado! - Beorth o encarou sério. - Eu serei eterno!

- E o que … minha invocação tem a ver com … essa loucura? - As ervas especiais faziam efeito de cura rápido. - Controlar... as trevas não te faz imor… - Perdeu as palavras quando viu o que ele tirou do bolso.

- Veja! Olhe isso! - Beorth segurava entre os dedos uma Runa única. Uma joia extraordinária. Havia algumas em suas vestimentas, anéis e no colar, todas com alguma magia incrustada lhe dando algum tipo de benefício mas, nenhuma com tanto esplendor quanto aquela. - E está vazia! - Disse contemplando-a.

- É… incrível… - Por um momento o Orc ficou fascinado pela jóia. Apoiou seus braços no chão e se arrastou até a parede mais próxima para se apoiar.

- Você vai invocar a porcaria de um espírito e eu vou aprisioná-lo nessa jóia. Transformando-a num amuleto de imortalidade.

Snall-rogg encarou o Clérigo incrédulo. Por um instante, seu lado intelectual se interessou pela ideia. Parecia algo plausível. Porém, estava esgotado física e mentalmente. Sacudiu a cabeça percebendo a realidade.

- Eu nunca vou sair daqui não é? Isso vai durar … até meu corpo não… resistir mais!? - Arfava.

- Invoque! - O clérigo atirou o cajado curto contra ele

O orc sentia uma dor dilacerante na coxa, quando percebeu que estava com a mão sobre o cabo da faca.

- INVOQUE!! - Beorth gritou.

Snall-rogg verificou as paredes e viu uma crosta brilhante. Estavam repletas de magia. Os dois estavam selados do mundo exterior.

- Eu vou … invocar! - Se esticou até o cajado, gritando de dor, alcançando-o com uma das mãos.

Seu carrasco foi até ele puxando seus cabelos. Quando o pôs de joelhos percebeu, tardiamente que a faca não estava mais lá. O orc rugiu, despertando sua selvageria e cravando a faca nas costelas do mago. Que se afastou cambaleando, removendo-a.

- Você quer que eu invoque… - Ficou de pé cambaleando e recitou um feitiço de aprimoramento rápido.

O clérigo caiu desesperado. Precisava se curar e não iria conseguir atacar naquela situação.

- Beorth. Não deixe que ele saia dessa prisão! - O Orc alertou com gravidade e começou a recitar o feitiço de invocação mas desta vez, gritando cada palavra o mais alto possível. Consumindo cada gota de sua magia e energia do seu ser..

- Não faça isso… - O Clérigo que não tinha entendido o alerta até então, disse interrompendo sua magia de cura muito exaltado. Nunca imaginou que Orc seria capaz de violar o cerne de sua ordem.

Deitado, voltou a murmurar o feitiço de cura, se esforçando para ignorar o violento remoinho de sombras que se formava diante do necromante que seguia berrando.

Terminaram as magias ao mesmo tempo. O orc caiu quase sem vida. Pedia perdão a seu mestre pela irresponsabilidade que acabara de cometer.

O clérigo se levantou renovado, com cajado em punho e apenas uma mancha de sangue no lado. Diante dele, um espírito sombrio o encarava. Era diferente de todos que já vira. Este tinha forma humana quase completa, da cintura para baixo misturava-se numa nuvem escura. Seus olhos eram duas piscinas esverdeadas, luminosas, transbordavam uma fumaça da mesma cor.

O clérigo não se deixou intimidar. Atacou o cajado tosco rapidamente transformando-o em poeira. Retirou do bolso a runa única e a fez flutuar para o lado.

Apontou seu cajado para o espírito e a mão para a jóia. Começou a recitar seu feitiço. Tentando prendê-lo antes que ele tomasse o corpo de seu prisioneiro.

- Per...doe-me, mes...tre! - Foram as últimas palavras do orc. Acabara de quebrar o mandamento elementar de sua ordem. Invocara um espírito muito superior ao seu nível. A certeza que sua invocação ficaria presa naquela caverna foi o suficiente para ele morrer em paz.

O espírito superior olhou para trás sentindo a vida abandonando o Orc. Ao invés de possuí-lo, fez um gesto com uma das mãos e foi o suficiente para invocar a partir de seu corpo um espírito que deslizou até o Orc, tomando o corpo para si. Lentamente o corpo sem vida se pôs de pé, ignorando todos os seus ferimentos. Seus olhos transbordavam as sobras do espectro que o possuiu. Percebeu que estava com os tornozelos presos e disse alguma coisa para seu mestre, forçando as correntes dos pés. Mesmo com encantamento da fala o Clérigo não pode entender uma palavra. Sentiu um calafrio mas, não se desconcentrou de seu objetivo. Recitou as palavras pela segunda vez. E nada aconteceu. O espírito superior voltou a encará-lo.

- Ele está preso! E você não pode fazer nada contra mim. - O clérigo disse tentando mostrar confiança. Sabia que poderia acabar com o espírito a qualquer momento se usasse magia de luz. Isso o deixava seguro mas, nunca tinha visto uma invocação daquele nível e estava intimamente assustado. Voltou a recitar o feitiço.

Após algumas tentativas, lágrimas escaparam de seus olhos. “Eu não vou morrer”, tentou mais uma vez. “Eu não posso morrer!” Repetia mentalmente frustado. O espírito que até então olhava ao redor curioso, fixou seu olhar no mago e para onde ele apontava.

- Isto é magia antiga! - A voz gutural do espírito lhe causou arrepios.

Beorth perdeu a concentração e recuou um passo.

O espírito riu sinistramente.

- Magia antiga deve ser dita da maneira antiga! - Disse estendendo uma das mãos e um cajado de sombra se fez. O coração do clérigo disparou .

- Voce não pode fazer magia! É so um espectro. - Beorth disse trêmulo

- Aprisionamento de Alma exige um poder além do seu.

- Eu sou o mais poderoso … - Beorth parou quando o espírito apontou o cajado para ele e a outra mão para a joia.

Antes que tivesse tempo de pensar no que faria, ouviu o espírito falando as mesmas palavras que ele na língua antiga mas, com grandes entonações e pausas. O ar ao redor deles começou a girar violentamente já no primeiro verso.

- NÃO! - Beorth gritou desesperado intensificando a magia de luz até ofuscar seus olhos. Ouviu um riso gutural desdenhoso.

Quando recobrou a visão, no segundo seguinte, viu seu próprio braço apontando em sua direção e o corpo que dantes era seu, sendo possuído pelas trevas. Os olhos se enchendo de uma luz esverdeada e um manto fumacento sombrio cobrindo cada centímetro do que ele foi um dia.

A única fonte de luz se apagou, e só lhe restou o silêncio e a escuridão.

Marlon A A Souza
Enviado por Marlon A A Souza em 14/11/2023
Reeditado em 16/11/2023
Código do texto: T7931653
Classificação de conteúdo: seguro
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