O ANDARILHO

 

Léo (Leônidas Júnior de Albuquerque Neto – isso mesmo) tinha nas veias o verdadeiro sangue andarilho. Assim como Sindbad (ou Simbá), o Marinheiro, das sagas árabes, que portava uma compulsão por aventuras marítimas, trabalhando gratuitamente em navios que singravam mares indefinidos, em troca de aventurescas viagens, colocando-se em variados riscos de vida (mencione-se o fantástico Pássaro Roca), durante os quais prometia sossegar o rabo se voltasse a salvo, promessa nunca cumprida no devir; como Sindbad, repito, o nosso herói não tinha sossego itinerante.

Rapaz de família abastada o suficiente para o manter nos trilhos de uma trajetória de vida comum e próspera, havia estudado até o início do curso superior. Fora menino menos sociável, porém inquieto em andanças juvenis – tinha um prazer incomum em perambular pelos bairros de sua cidade natal, por horas tantas a preocupar Da. Diva, mãe da paciência, e a merecer promessas de castigo federal de “seu” Leônidas, na verdade não muito afeito ao lar. Todavia, estudante dedicado e proveitoso, acenando com perspectiva de vida bem polida por seu segundo e imenso prazer, os livros – ou lia e caminhava depois ou caminhava e lia depois.

Enfim, um jovem de muitas luzes, com prazer e ênfase em questões filosóficas, religiosas, psicológicas, cosmológicas, existenciais, tão herméticas quanto possível. Há um pequeno segredo, nada indiscreto: enquanto ele caminhava, o fazia pensando e pensando, revolvendo as entranhas do mundo e da vida, resolvendo as dissidências do mundo e da vida.

Ei-lo aqui, tarde de sol fotografável, caminhando por uma estrada (não rodovia) em uma região plana, campestre, sem muitos assomos na paisagem a distrair. Tratava-se, de fato, de estrada bem construída, com plena definição entre o que seja caminho e o que não seja caminho. Quem já se aventurou pelo mundo rural afora conheceu estradas assim, convidativas a um pacto com a beleza rude e ímpar da cercania e um momento privilegiado para sondar as coisas de Deus. Talvez por esse pacto, Léo não conhecia o cansaço, a ardência das horas de sol, a sede que não fosse a de saber. Nem era necessária a atenção na rota, tão bem definido era esse caminho, ainda que ignoto.

E ele pensava... olhando mais para o chão que para o horizonte. No momento, tinha em foco um dilema que lhe ocorrera sobre a criação do Homem por Deus. Era assim: Deus, o Criador, era incriado, portanto mais antigo que o próprio tempo – para Ele, não havia o antes e nem a figura de seu criador; Ele, entre tantas virtudes, desfrutava da Perfeição, a qual não é atribuída aos humanos; estes foram criados por Ele, no sexto dia da Criação, porém, repetia, não perfeitos. Pergunta digna de um tropeção: “Pode um Criador Perfeito criar uma criatura imperfeita?”. “Se a Criatura não é perfeita, o Ato Criador não foi perfeito e o Ente Criador não manifestou a sua perfeição”. “Pode o Perfeito contradizer-se e atuar com imperfeição; ou ser perfeito não é diferente de ser imperfeito?”. “A Imperfeição estaria a serviço dos misteres da Criação Perfeita?”. “’Olhai os lírios do campo; eles não fiam e nem tecem...’, já dizia Jesus durante o Sermão da Montanha, conforme se lê nos evangelhos de Mateus e Lucas”. “Até o quinto dia da Criação, o Criador atuou com exímia perfeição – por que razão de ser um lírio ou uma ostra ou um seixo rolado ou mesmo um vulcão em erupção não seriam perfeitos?”. “Um raio de sol da alvorada e um pingo de chuva que cai conhecem a perfeição, na insondável matemática do horizontal e do vertical”. “Por que outra razão de ser o humano foi tão privado dessa benesse?”. “Ou não foi?...”.

O entorno se tornava (oh, contradição!) sutilmente mais ermo, menos bem definido, como se se esvanecesse, sem que Léo se desse conta. No entanto, a sua atenção fora chamada por um elevado tronco de eucalipto, já morto e ressecado, que se destacava na paisagem à direita, contrastando com o efeito planície. Em traços gerais, ele parecia um obelisco dominando uma ampla praça. A visão afastou um tanto os questionamentos do herói com os vieses da perfeição e lhe trouxe a reflexão: “No dia em que construírem monumentos aos atributos humanos, sejam aos mais louváveis ou aos mais deploráveis, o mais alto deles, de longe o máximo, será o da crueldade humana – haverá uma cópia fiel dele em cada continente. Se fossem colocados nos polos, vistos de longe pareceriam o eixo de rotação da Terra ou a maiúscula grega φ”. Riu-se todo, como não era de seu feitio. “Ah, Ser Humano, ‘The Best and the Beast’: quanto falta para ele entender que a maior de todas as virtudes é a generosidade.”

Léo seguia em marcha decidida, numa obsessão por uma meta chamada “lá”. Sim, marchava e pensava nas coisas de Deus, do Céu, da Criação. Era-lhe intrigante como tudo haveria começado e, principalmente, como tudo culminaria. Ele tentava organizar em sua imaginação o cenário dos tempos anteriores ao próprio tempo. Fora-lhe ensinado que as entidades patronas da criação eram incriadas, as que desconheciam esse tal tempo; ou melhor, para elas não havia distinção entre passado, presente e futuro; incriadas, não só Deus, mas o seu séquito todo.

Quase uma hierarquia militar, com patentes bem estabelecidas: primeiramente, o alto escalão de serafins, querubins (entre estes, Lúcifer) e ofanins; daí, seguiam-nos as entidades da segunda tríade (dominações, virtudes e potestades) e, por fim, o terceiro escalão (principados, arcanjos e anjos).

Por razões que nos escapam, pois, como vimos, Ele não era um solitário, o Senhor resolveu criar um mundo material, com seres de todos os naipes. Ele fez o seu grande projeto e, com afinco, pôs-se a laborar. No sexto dia, sol no zênite, a empreitada estava conclusa, tendo atingido o seu clímax com uma Criatura singular, merecedora de atributos e virtudes que não haviam sido concedidas a todos os demais. Esse todo era merecedor de uma grande contemplação; o séquito celestial inteiro foi conclamado a conhecer e a admirar esse cenário amplo, designado Criação. Todos acorreram, até porque curiosos. Era uma tarde de extrema gala naquele orbe único e celestial.

Como em um cerimonial diplomático, as entidades engalanaram o evento. Os serafins piamente atenderam ao chamamento do Senhor e conheceram o conjunto da Obra e culminaram em reverência e louvor ao casal humano recém-criado. Na sequência, foram chamados os querubins. Foi quando Lúcifer, o predileto, o mais “artista” do bloco, olhando do alto de sua magnitude, se indispôs e disse:

– “Senhor, me pedis que eu louve essas criaturas toscas? Pois eu me recuso; eu sou mais que eles e eles, sim, deveriam vir a meu encontro, me conhecer e me louvar”.

Pasmo geral. Jamais a Eternidade conhecera a contradição. O Deus Impassível não se perturbou e foi categórico:

– “Lúcifer, não é à criatura que irás louvar, mas, através dela, ao seu criador”.

– “Senhor, mas há uma discrepância enorme. Vós fostes excelso em cada passo de vossa Criação – vede: cada flor que desabrocha ou cada pássaro que canta ou cada dia que amanhece em paz ilustra a marca de vossa exímia grandeza, de vossa perfeição como Criador. Acredito ter havido um equívoco; o que deveria ser a culminação de vossa glória está eivado de máculas e de defeitos, para não dizer vícios insanáveis. Por que claudicastes no ato final? Por que esse pastiche de criatura-Homem?”.

As altas patentes que já haviam louvado se entreolharam estupefatas, esperando, no mínimo, o mais coerente dos contra-argumentos. Um serafim suspirou, temeroso, dúbio com a sua fé.

– “Lúcifer, estás sendo injusto e inclemente. Vê: creditei à minha obra-prima um sem-número de virtudes; dei-lhe o dom da consciência e da distinção entre as essências das coisas; dei-lhe habilidades corporais e manuais; com essas, a criatura conceberá a Ciência e a Arte. Ela poderá organizar-se de modo amplo, desde pequenas comunidades até nações; ela será capaz de estabelecer as suas próprias leis e regulação; mais que o dom de viver, ela poderá conviver”.

– “Pois aí começa, Grande Arquiteto e Criador: esse ente traz na alma o germe da maldade, sendo capaz de fazer sofrer seja o seu mais próximo, seja toda a Humanidade. Vejo cravados nele vícios, já disse, como a ganância infinda, a insensibilidade ao sofrimento alheio, o dom de destruir onde deveria construir, a arrogância, o egoísmo, a insolência – esse será o autor de toda a Hybris”.

– “Lúcifer, meu dileto. Pondera melhor: eu implantei nessa “tosca criatura” um devir apoteótico, uma vez que ela será capaz de aprender com os seus erros e de se autorregular; o remorso e a angústia serão o seu moto, é certo. Dei-lhe capacidade de reflexão, de superação, e acesso à perfectibilidade: ela começa tosca, mas culminará sublime.”.

– “Se não se destruir antes...”.

– “Não foi assim que programei.”.

– “Mas haverá milênios de sangue, de barbárie e de inclemente sofrimento antes que seja possível haver essa redenção”.

– “Enviarei o meu filho, o Redentor.”.

– “Ela vai pregá-lo na cruz e matá-lo.”.

– “Isso estará no meio do processo; ao fim, a Serpente do Mal sucumbirá. Aliás, Lúcifer, tive uma ideia de como ajeitar esses desvios: colocarei essas minhas criaturas em uma gaiola dourada, a que chamarei de Éden, como doces pássaros; ali, cenário para a bem-aventurança, haverá apenas abundância e desfrute – nada faltará e irmão não precisará estropiar irmão.”.

– “Senhor! Vós que tendes a visão do que está por vir, pegai qualquer ano, 2023, por exemplo. O que vedes? Duas guerras atrozes – irmãos estropiando irmãos”.

– “Ô, criatura renitente!”.

– “Não sou criatura. Assim como vós, sou incriado.”.

– “Lúcifer, sinto em ti o bafo da insolência. Estamos em meio a todo o séquito celestial e jamais se viu uma insubordinação como essa tua. Vou ser taxativo: ou tu louvas a minha obra-prima ou terei que te banir deste orbe celestial.”.

– “Mais amigo da Verdade que do Senhor.”.

– “Pois ponha-te para fora e aguarda, que ainda conversaremos.”.

Lúcifer saiu, altivo. A cerimônia da louvação teve sequência, até que passasse o último anjo, e todos retornaram a seus tronos, cumpridores de seus misteres.

Léo, entretanto, não deixava de notar o declínio do sol, o romper das nuances que ocorrem entre as cores do dia e da noite. Sempre cabisbaixo, focou no solo, que perdia, por sua vez, o desenho de rota. O grande horizonte não se modificava.

Ainda naquele sexto dia, o Senhor foi ao encontro de Lúcifer, descumprindo um protocolo de hierarquia e desejoso de discrição. Ao encontro, ambos se entreolharam por um tempo que, na percepção deles foi apenas um átimo e que, na globalidade, foi toda uma História. Deus, num semblante compassivo; Lúcifer, jactante.

– “Meu querido Lúcifer, não te imaginava assim. Demonstraste hoje atitude bastante estranha a nossa Ordem, ou seja, prenúncio de Caos.”.

– “Senhor, eu sinto muito, mas não poderia curvar-me àquele bicho ignominioso. Nada pessoal, mas vamos e venhamos e convenhamos pela mesma via: a ‘coisinha’ é porca mesmo.”.

– “Lúcifer, tu estás sendo muito imediatista. Onde está a tua fé no princípio de que tudo busca pela Ordem Final e que isto é bom?”.

– “Senhor, ainda não está definitivo se a Ordem nasce do Caos ou se este nasce daquela. Sou de mais crença que as coisas caminhem do menos provável para o mais provável e, no caso do Homem, o horizonte é extremamente sombrio, uma calamidade”.

– “Muito bem. Mas, hoje, tu me afrontaste perante todo o meu séquito e engendraste um cenário de desafio e de insubordinação. Em nome da Ordem, todos esperam uma punição exemplar. Terei que o fazer.”.

– “Seja feita a vossa vontade.”.

– “Primeiro, terei que te banir da Ordem Celestial, principalmente para que tal exemplo não se alastre. Solicitei a um dos arcanjos, Miguel, o portador da espada de minha Justiça, que te precipite nas trevas. Ele o fará, com a minha chancela. Mas não deixo de reconhecer a tua razão e não te quero no ostracismo, amado que és. Vou dar-te uma compensação; a dimensão em que cairás será um Reino para a expiação dos Homens que infringirem esses teus sábios princípios e se enquadrarem em teus prognósticos de vileza e de pecado – suas almas, após a vida terrena, serão ali conduzidas e serão os teus súditos; caberá a ti dar-lhes o devido corretivo. Chamarei a essa dimensão de Reino Inferior, Infemum, e ali tu serás o Príncipe Regente; tu poderás impor-lhes os castigos e expiações que te parecerem cabíveis. Apenas a minha misericórdia poderá livrá-las de tal condenação, se merecedoras, num dia a ser chamado de Juízo Final. Enquanto isso, exerça sobre elas toda a tua indignação e rancor, que agora vejo em teu coração.”. Deus contava que o Infemum seria despovoado.

– “Enganai-vos, Senhor. Não serei eu um agente do Mal. Não vagarei pela Terra, tentando os desatentos e criando-lhes armadilhas para a prática dos horrores; não serei eu a incitar a prática da ignomínia desse molambo que chamais de obra-prima. Em meu reino não haverá fogo ou tridentes. Não imporei cruel sofrimento a esses decaídos. Já me ocorre uma forma de ensinamento e de redenção. Aos condenados, dentro desse meu reino, imporei apenas duas condições para a sua regeneração: cada um deles receberá uma não muito grande ilha, com benesses e confortos; a condição primária é que não poderão deixar sua ilha; a condição segunda é que eles terão que conviver, todo o tempo, cada qual em sua ilha, com dez mil outros humanos de jaez em tudo igual ao de si próprios: violentos com violentos, gananciosos com gananciosos, insensíveis com insensíveis, soberbos e egoístas com soberbos e egoístas.”.

– “Credo!”.

Léo se divertia com as suas elucubrações; tanto, que demorou a se aperceber que a anterior estrada era agora um traço já não definido no terreno, ainda que sem alterações gerais na planura da paisagem, que seguia bucólica. A vegetação se tornara mais esparsa e árida, nos moldes de um cerrado. O sol parecia curvar-se mais e mais, reverente. O andarilho retornou ao diálogo facundo:

– “Lúcifer, meu mui querido, meu confidente de tantas vezes, não te tenho mágoa. De certa forma, tens razão: essa semente do Mal resultou enxertada nessa derradeira criatura; mas eu laborei na dimensão da Dialética, em que somente a partir do contrassenso se chega ao bom senso – eu fiz um ensaio, dando discernimento à criatura; a ela caberá a escolha do caminho que a traz até nós e creio que assim será a sua escolha e o desfecho. Eu laborei na dimensão da Apoteose...”.

– “E criastes o ‘non-sense’.”.

– “Lúcifer!”.

Dizem que se há um limite em Deus é o da paciência, conjecturou Léo. O herói foi adiante: o Senhor se recompôs em sua persona de Impassível e tornou bem mais suave:

– “Lúcifer, antes que te faça defenestrar, tens uma última chance. Tu me colocaste num impasse perante os demais entes celestes, num feito de insubordinação e de soberba. Mais, verdadeira Hybris, filha da noite. Se te retratares e...”

– “Louvar a criatura. Nem pensar! Estou gostando da ideia de meu reino. Não voltareis atrás, não é?”.

– “Não. Sinto que assim o queres; pois que assim seja.”.

– “Estaremos distantes?”.

– “Sim. Mas, por minha imensurável bondade, quando te convenceres de teu julgamento equivocado, busca-me, clama por meu perdão, e eu o darei a meu querubim predileto e te acolherei em meu lar, qual filho pródigo, ou melhor, pedante, que torna ao Pai”.

– “Quando chegarmos ao desfecho de vosso ensaio e vossa criatura se tiver mostrado o equívoco do magnífico Arquiteto, retornarei, despido da pedância e submisso ao Senhor, mas, aí, sem ter que louvar a Criatura.”.

Todavia um algo, um vago algo, trouxe Léo para um plano mais terreno. Começava a se fazer um céu vespertino, límpido, desprovido de nuvens; as primeiras estrelas despontavam e começavam as suas petizes traquinagens, invisíveis a nosso senso. A abóbada superior parecia a quintessência da paz e da beleza.

O herói tentou localizar-se no caminho, para projetar o seu pernoite, mas não havia mais caminho. Nada! Nada... Ele estivera peregrinando desatento e pensativo, pensativo e desatento, e agora se via a esmo, ao ermo.

Andarilho “master”, ele desfrutava de bom senso de direção e de localização; porém, isso agora era surpresa: ele não se apercebera do descaminho. Ele estava em plagas virgens de pegadas, desconhecedoras de caminhantes; nada a significar por aqui, não por aí. Não havendo qualquer indício no chão de um rumo a seguir, nem um vislumbre de resolução imediata, ele se valeu de sua intuição: quem chega a um beco sem saída, volta atrás. Pois virou-se e viu... nada. Nem mesmo o socorro de suas pegadas, a lhe indicar por onde viera. “Eis-me plantado em um deserto.”, concluiu.

Mas ele era homem da lida e da vida. Não se apoquentou. Buscou por qualquer coisa a chamar de abrigo; nada... “Eis-me sob as tendas d’amplidão.”, lembrando Castro Alves. “Pois que seja; dormirei ao relento. Tenho alguma comida e água em minha matula. Amanhã verei o que faça – grande problema para amanhã!”

Comeu, bebeu, fez as necessidades, deitou-se na matula-travesseiro, olhos para cima, apreciando a noite já amadurecida. Seguiu introspectivo, confrontando as inúmeras modalidades de solidão: as das florestas tropicais, quase intransponíveis, as dos desertos arenosos, sem horizontes que não dunas, as vastidões polares exultantes de brancura, repuxando para dentro pelo frio, a solidão do mar aberto e enjoativo das ondas incessantes, a dos contrafortes inalcançáveis e santos do Himalaia. “Nem menos, nem mais.”.

Voltou à questão celestial e primeva de Lúcifer, o contraventor (quem não adere a uma convenção); “Eu teria feito o mesmo.”, ousou pensar. “Mas Lúcifer não conheceu a solidão – quando ejetado e despencado, pela força da espada de Miguel, para o seu reino abaixo, que, pelo tanto, disseram inferior/infernal, para a sua surpresa ele foi acompanhado de um séquito formidando de anjos de menor patente, digamos assim, e que assobiavam e aplaudiam em insuspeita solidariedade. Verdadeira conjuração.

O reino doado, todavia, não estava concluso: no sétimo dia, enquanto o Criador descansava, Lúcifer, descobrindo o espírito cooperativo e fiel a ele desse elenco portentoso, trabalhou para transformar o continente em um britado de ilhas, erigir edifícios majestosos com cúpulas de ouro, decorar cômodos com almofadas de cetim e com flores sempre vivas, preparar banquetes luxentos, etc., na expectativa inequívoca da primeira miríade de hóspedes.

 

 

UMA CHAVE PARA O ENTENDIMENTO DO CONTO

“O ANDARILHO”

 

Primeiro que tudo, esse conto pertence a uma categoria “conto dentro do conto” (isso fica bem claro na leitura) – são duas dimensões e tempos e personagens distintos. Do ponto de vista do estilo, ele tem grande similaridade com o gênero “realismo mágico ou fantástico”, do qual Gabriel García Márquez é a nossa maior referência, sem detrimento de tantos outros grandes, como José Saramago, ambos Prêmio Nobel de Literatura (1982 e 1998, respectivamente).

O ponto central na narrativa está no primeiro plano, com Léo e a estrada. Esta assume uma dimensão arquetípica, em que representa o saber humano e a sua evolução, não no tempo, mas na profundidade. O ser humano tende a apreciar o “saber já sabido”, como uma estrada que se inicia toda implementada e de fácil percorrer. Seguir adiante, rumo ao ainda não desvendado, desbravar novos horizontes, atingir vastidões por onde ninguém ainda tenha ousado, é tarefa para poucos heróis-pensadores destemidos. O pensamento coletivo é comodista e garantista, prestando-se mesmo à servidão ideológica – gosta de estradas implantadas, sem deslises desde a partida, imaginando chegar a uma erudição inquestionável via “queima de neurônios” alheia.

Vale a analogia com o paradoxo do queijo suíço: “Quanto mais queijo suíço, mais furos; quanto menos massa, mais furos; quanto mais furos, menos massa e mais queijo suíço”.

O desvanecimento da estrada de que Léo pouco e lentamente se apercebe, representa a sua libertação do pensamento coletivo, da estrada traçada com rigor. Ao fim, sem mais poder vislumbrar a estrada por onde viera tão introspectivo e chegado a local tão ermo, ele não se apavora, não se vê perdido  – antes, se prepara para nova empreitada, que o levará aonde... só Deus sabe.