Geb - Capítulo I
I
Dara despertou e se deparou com a janela do seu quarto aberta. O canto suave dos pássaros ressoava em seus ouvidos como um doce e alegre “bom dia”. A manhã estava linda: um céu azul e limpo, com apenas algumas nuvens alvas pairando no horizonte, além das serras. A garota se levantou e olhou para toda aquela paisagem deslumbrante através da janela. Uma brisa suave veio de encontro à sua face corada, farfalhando seus cabelos negros e cacheados. Ela olha para o céu e, no horizonte, as nuvens vão ganhando formas que, a um primeiro momento, assemelharam-lhe a coelhos correndo sobre as serras. Ela fecha os olhos e inicia sua oração matinal:
“Silfos,
Portadores das mensagens para toda a terra,
Eu deposito em vós a minha confiança.
Fazei de mim a imagem do esplendor da luz.
Fazei deste pensamento, meu milagre!
Mestres do ar, eu vos agradeço por mais esta manhã.
Amém”.
A brisa passa novamente pelo seu rosto, ao passo que, terminada a oração, Dara se levanta e se espreguiça, sua camisola branca como as nuvens em forma de coelhos.
— Bom dia minha ninfa?
— Bom dia vó.
— Está linda hoje. Dormiu bem?
— Sim...
Dara se serve de algumas torradas. Sua avó, Doralice, estava ao fogão de lenha, esperando que uma chaleira negra fervesse.
— Vó?
— Sim?...
A velha senhora pega a chaleira pela asa cuidadosamente.
— A senhora abriu a janela do meu quarto?
Doralice despeja a água fervente em uma xícara florida, à frente de sua neta.
— Não. Tem certeza que a deixou trancada? À noite, os ventos que vêm das serras se tornam mais violentos.
— Acho que pode ter sido isso.
A senhora ri docemente e se senta à mesa redonda, repleta de guloseimas.
— Vó?
— Sim, minha querida?
— É hoje?
— Não.
— Falta muito?
— Não seja apressada Dara, já lhe falei sobre isso, não?
— Sim vó, mas quantos anos eu tenho hoje, ainda?
Dara ri meigamente para a avó.
— Todas as manhãs você me faz essa mesma pergunta. Oh, minha ninfa, o seu chá vai esfriar...
— Por favor.
— Você sempre me convence com esse sorriso radiante como uma ondina... Hum... Deixe-me lembrar... Noventa e nove, minha querida, apenas isso.
***
O riacho límpido corria por detrás da casa de Doralice. Por vezes, Dara pensou em segui-lo até encontrar sua fonte, mas sua vó sempre a advertira para não ir muito longe na floresta, pois nem todos ali eram puros como ela. A velha senhora lhe contara algumas histórias de fatos que ocorreram no que ela chamava de "cidades"; locais que abrigavam números incríveis de seres humanos, mas que foram destruídos, por não conseguirem manter o equilíbrio com os elementais.
Dara sempre se perguntou como seria um ser humano. Sua avó lhe dissera, uma vez, que se pareciam muito com elas duas, mas que eles não tinham mais pureza de espírito, algo que se perde com muita facilidade, e que Dara deveria guardar a sua com muito cuidado, pois uma vez perdida, não se pode jamais recuperá-la e isso a condenaria à humanidade, algo banido por sua avó; “o fim”, de acordo com suas palavras.
Dara sentou-se à beira do riacho e deixou que a correnteza banhasse seus pés. Estava um dia verdadeiramente maravilhoso. Poderia ficar ali eternamente. A água era realmente límpida, os peixes deslizavam pelo fundo do riacho, onde pedras refletiam a luz do sol. De instante em instante, um ou outro peixe vinha à superfície calmamente e pegava de surpresa um descuidado inseto que insistisse em ficar mais tempo que o possível sobre as águas. Dara olhou para o outro lado do córrego. Uma floresta fechada estava bem ali, a sua frente. Não era escura. Era verde e exuberante, parecia ter vida própria e uma vida muito, mas muito pacífica. Em suma, esses não são elementos ameaçadores, contudo havia algo que impedia Dara de pensar em atravessar aquele riacho e chegar àquela floresta, que resplandecia de vida e, de fato, parecia convidar qualquer um a um passeio à sombra das copas de suas árvores.
— Não – disse a si mesma e tornou a olhar para as águas do riacho.
Na casa de Doralice, uma estranha figura batia à porta. Um homem, porte magro de adolescente, socialmente vestido. Um grande chapéu à cabeça, cobrindo metade de seu rosto imberbe.
— Já vai.
A anciã vai o mais rápido que pode atender às batidas compassadas na porta.
— Hum – ela funga ao ver sua visita. – O que aconteceu com o outro?
— O Senhor Telônios não pôde vir...
— Estou vendo isso – falou, interrompendo-o. – Trouxe a minha encomenda?
O visitante, que trazia consigo uma maleta negra, fez menção de abri-la.
— Não – impede-o, Doralice. – A minha neta está por perto. Entre.
O jovem adentra na aconchegante casa. Doralice acena, pedindo que ele se acomodasse numa poltrona a sua frente. Ela já se sentara numa rústica cadeira de balanço.
— Então – ela começa – você trouxe?
— Sim.
O jovem não tirara o chapéu, seus olhos não podiam ser vistos. Doralice tentou algumas vezes olhar por baixo daquela aba negra, mas não obteve sucesso.
— E o que está esperando, garoto? Vamos! Dê-me!
O jovem parece se assustar um pouco com aquela ordem.
— O Senhor...
Ele faz uma pausa, como se buscasse as palavras corretas.
— O Senhor Telônios me disse para que esperasse o pagamento antes.
Os olhos de Doralice, por trás das lentes dos óculos pareceram faiscar. Algo que só podia ser observado em seu olhar e em nenhum outro ponto de seu rosto enrugado, que mantinha a todo o momento uma certa ternura de avó.
— Hum – ela funga mais uma vez. – Aquele caixeiro caduco! Nunca deixei de pagá-lo por nenhum serviço solicitado. Mesmo assim nunca teve confiança em mim.
Ela se levanta da cadeira de balanço com uma agilidade um tanto incomum em senhoras daquela faixa etária. Doralice se dirige a uma estante de madeira rústica no mesmo cômodo, põe a mão dentro de seus seios caídos e tira de dentro de suas anáguas, uma chave negra. Com a esta, ela abre uma das portas superiores da estante, onde se via um bom número de papeis impressos, muitos mesmo. Pareciam com...
— Está aqui – a anciã retirara de dentro da estante um osso longo e meio simétrico, com algumas inscrições em sua extensão.
O jovem se levanta e pega o estranho objeto. Parecia meio temeroso em fazê-lo. Em seguida abriu a maleta, embrulhou o osso num pano, que estava ali dentro, guardou o “pagamento” e pegou a encomenda de Doralice: um folheto impresso, igual a tantos outros que estavam guardados à chave dentro da estante. Ele o entrega a Doralice.
— Ah – o jovem negociante parece lembrar-se de algo importante. – O Senhor Telônios me pediu para avisá-la de que já estamos no quinto dia do primeiro mês.
A velha consulta o papel que recebera, balbuciando algo incompreensível com sua boca murcha.
— Você já pode ir agora, garoto – ela fala bruscamente, sem desviar o olhar do calendário cristão que acabara de receber.
— Sim. Eu já estou de saída.
Ele se encaminha para a porta.
— Espere, garoto!
— Sim?
— Não passe por detrás de minha casa.
Ele a fitou por debaixo de seu chapelão, em seguida virou-se, abriu a porta e desapareceu por ela. Doralice pegou o papel e guardou-o dentro da estante, trancando-o junto com os outros segredos.
Continua...