O Jogo.

Bela noite. A lua brilha redonda pela janela de vitrais, as árvores dançam docemente ao som do vento cortando tudo lá por fora. E aqui dentro, uma música clássica invade o ambiente. Cadeiras de madeira-de-lei com desenhos rebuscados, estofado de veludo azul. Uma mesa grande com um feltro verde a minha frente. Cartas e fichas. Poker, o jogo que todos dizem que depende de sorte, mas só os entendidos sabem que não tem nada a ver com isso. É concentração, perspicácia, uma junção de coisas que requerem uma calma e um foco fora do comum. O cheiro de cigarro invade minhas narinas, isso me traz de volta ao mundo real e eu vejo minhas cartas jogadas na minha frente pelo crupiê. Suspiro. Pego elas e as olho com desdém. É tudo sobre dissimulação. Se eu conseguir manter a mesma cara de “Dane-se” durante o jogo todo. É difícil me pegarem no blefe. Mas algo me nocauteia. Forte. Mais forte que um coice de um cavalo dado nas bolas. Ouço aquela doce voz.

- Eu aumento.

O tempo para. Não tinha percebido. Todos os adversários sumiram da mesa. Só estávamos eu, o crupiê e ela. Paro de respirar. Ela linda. Com seus cabelos arrumados e deslizantes, cobrindo parte do seu olho esquerdo. Lábios lindos com um batom vibrante e vermelho. Um vestido ousado que modela seu corpo como se fosse a imagem de uma Deusa, sentada na minha frente a jogar poker comigo. Tremo. O tempo volta a se mover. Ela me olha, eu olho nos olhos dela, e os vejo. Lindos. Um deles olhando diretamente pra mim. O outro passa por alguns fios de cabelo, dando um quê de “Olhar fatal”. Engulo seco. Ela molha os lábios, uma gota de suor escorre pelo meu rosto.

- Passo!

Olho para o lado, solto um suspiro pesado. Finjo estar coçando o rosto para tirar o suor que escorreu. Ela não pode ver que eu estou vacilando. Olho para ela. Solto um leve sorriso cortês e um aceno com a cabeça. Ela sorri com um dos cantos da boca, vira o rosto me olhando de lado. Não posso evitar franzir o cenho. Meus olhos deslizam pelas formas exuberantes e perfeitas. Rosto de perfil. O cabelo e suas ondas de incertezas, pescoço, tórax. Meus olhos travam de leve. Seria atrevimento olhar para dos “dotes” de uma Deusa? Ora bolas, uma olhadinha não mataria. Meus olhos descem devagar, quando minha atenção é desviada pelo crupiê.

-Sr? É a sua vez?

Pego de surpresa, olho para mesa tentando entender o que aconteceu

- A Srta. Aumentou de novo

Me explica o crupiê percebendo minha confusão. Olho para ela, desacreditado. Ela sorri de maneira marota, mostrando um pouco dos seus dentes.

- Pa... Passo!

Ela ri de leve. Pisca para mim. Meu coração dispara. Droga, essa mulher está acabando com o meu jogo. Eu preciso fazer algo. Fecho os olhos, respiro fundo. Vou tentar não olhar para ela. Essa é a única solução. Olho diretamente para a mesa, fixo, vejo as cartas chegarem uma por uma, arremessadas pelo homem que testemunha minha queda. Pego as cartas e as levanto até meus olhos. Antes que o crupiê pudesse falar algo eu brado em voz grossa e firme.

- Aumento.

E ouço aquele doce som que parece me puxar.

- Eu cubro.

Rosto franzido. Tensão. O suor não é mais uma coisa que eu possa disfarçar. Meus olhos foram mais fortes e escapam. Diretamente para o decote. Pelos Deuses. Que formas, que curvas. Simétricas, sem exageros para mais ou para menos. A perfeição. Jogo as cartas na mesa com raiva, alargo a minha gravata. A tensão me domina.

- Passo.

Os olhares dos curiosos começam a nos rodear. Todos querendo saber o que acontecia na única mesa que ainda tinha pessoas jogando. Claramente algo afeta minha calma. Mas ela? Ela continua impassível. Sentada meio de lado com seu estonteante vestido vermelho. Quando as cartas não estão em jogo ela não tira os olhos de mim. Isso me deixa nervoso. Droga essa gravata me sufoca. Puxo-a com mais força, quase a arranco. Enrolo ela rapidamente e coloco no bolso interno do paletó. As cartas pulam na minha frente mais uma vez. As pego, olho o jogo que eu tenho em mãos. Olhou para ela. Ela solta mais um daqueles sorrisos. Eu não posso evitar de rir, irônico. Ela abaixa a cabeça e solta um risinho também. Acho que estamos nos entendendo. Olho meu jogo. Pago o necessário. Troco algumas cartas. Ela faz o mesmo. Presto atenção nos movimentos dela. Ela parece tão segura. Não treme, não sua, não vacila. Eu por minha vez, me sinto uma vara-verde ao vento. Mas na verdade acho que não passo isso tudo. Consigo me controlar minimamente. Hora da verdade. Minha vez. Peço mesa. Vou deixar ela conduzir essa. Meu jogo não é mal. Confesso que não sei dizer se é melhor ou pior dos que os das rodadas anteriores, ainda sim, nesse eu consegui finalmente prestar o mínimo de atenção. Ela aposta. Eu roço os dentes de cima nos de baixo. O jogo finalmente fica interessante. Ela tem uma das mãos segurando as cartas e a outra passando a ponta da unha longa no feltro verde. O que isso quer dizer? Ou melhor, isso quer dizer alguma coisa? Cubro a aposta. As mãos baixam. Ela ganha. Algumas pessoas batem palmas. Eu sorrio. Ela pisca. Meu coração dispara.

- Garçom...?

Levanto o braço chamando a atenção do homem que serve.

- Água... Com MUITO gelo.

O homem apenas concorda com a cabeça e se afasta para realizar o meu pedido. Antes que ele pudesse ir embora, a mulher pede algo também.

- Um Bloody Mary.

O garçom mais uma vez concorda com a cabeça. O jogo prossegue. Mais uma vez olho minhas cartas, sorrio de leve. Sei que ele me olha. Aposto. Firme, convicto. Ela mais uma vez molha os lábios enquanto me olha. Eu permaneço uma rocha. Ela passa. O garçom traz as bebidas. Para mim, uma jarra com água, um copo e um balde de gelo. Para ela, um copo com um drink vermelho, com um canudinho. Por que eu tenho a impressão de que não é mera coincidência? O jogo continua. Equilibrado, tenso. Ela tira minha concentração com caras, boca, poses. Nada exagerado, fútil. Mas coisas singelas. Charmes femininos. Aquele canudo foi de grande ajuda para ela tirar minha concentração. Passeou pelos lábios, recebeu leves mordidas acompanhadas de sorrisos provocantes. Ao final da noite, meu paletó já estava jogando na cadeira ao lado, meus cabelos bagunçados. O primeiro botão da minha camisa social de marca aberto. Ambos com o numero de fichas quase iguais. Eu, intrigado, achando tudo aquilo no mínimo interessante. E ela, quem sabe? Apenas brincava comigo. Se divertia com a minha luta contra o charme dela. Me atrevo a dizer que o jogo que ela jogava ali não era poker. Era Sedução. E ela estava me dando uma lavada. As cartas vêm. As pego, levanto até os olhos. Ela pega as dela. Sorri. Molha os lábios e faz uma aposta alta. Eu tremo. Olho para minha mão. Dois Ases, uma Dama, um três de copas e um seis de ouros. Suspirei e cobri a aposta dela. Já era final de noite. Eu já tinha decidido que aquela seria a minha última mão. Não me importava em apostar um pouco mais, só para passar alguns últimos momentos olhando para aquela mulher. Resolvi arriscar. Troquei o Três e o Seis. O Crupiê me passa duas cartas. Ela trocou Três cartas. Estou na vantagem. Puxo as cartas, um Ás e uma Dama. Full Hand. Comemoro mentalmente. Vou ter um bom lucro hoje. Porém aquela doce voz mais uma vez me golpeia com força.

- Eu aposto tudo.

Meu olhar se levanta devagar, procurando o dela. Assim que o encontro, fico um tempo olhando. Não é possível. Ela não pode ter uma mão tão boa. Suspiro, preparado para desistir quando meus olhos vão até os lábios dela. Percebo que apesar deles fechados, ela morde devagar a parte interna da boca. É nervosismo. Ela blefa. Te peguei. Até mesmo as Deusas falham.

- Eu cubro!

As pessoas envolta começam a murmurar algo. Um alvoroço se faz em torno da mesa. Ela fica me olhando séria. O crupiê olha um pouco sem jeito enquanto eu abaixo meu jogo. Me recosto, respiro aliviado e levo uma das mãos ao queixo. Abaixo meu Full Hand. Três Ases e duas Damas. Junto as duas mãos em cima da mesa, com o olhar triunfante sobre a Deusa. Ela pende a cabeça para um dos lados. Os cabelos acompanham o movimento e balançam com a mesma perfeição de sempre. Ela me olha. Sorri. Eu retribuo o sorriso. Ela coloca gentilmente as cartas na mesa, viradas pra cima. E eu ouço um palavrão vindo dos que estavam assistindo. Olho para trás e vejo a platéia começar a aplaudir. Viro o rosto devagar para a mesa e vejo as cartas que saíram da mão dela. Dois de Ouros, Dois de Copas, Dois de Paus, Dois de Espadas e um Sete de copas. Um Four. Um Four de Dois. Fecho os olhos, me recusando acreditar. Suspiro. Repito mentalmente pra mim mesmo. “Mantenha a calma... Mantenha a calma...” Abro os olhos e solto um sorriso para ela. Ela sorri pra mim, e mostra de leve os dentes, prendendo parte do lábio inferior. Fui enganado. Ela blefava sobre estar blefando. Abaixo a cabeça rindo. Me levanto, tomo um ultimo gole da água, pego meu paletó. Me despeço dela com um leve maneio de cabeça e uma piscada de olho. O mesmo maneio para o crupiê. Saio andando. Entro no banheiro, apoio o paletó na pia, as duas mãos no mármore frio e olho para o espelho. Fui enganado. Perdi. Nos dois jogos. Ainda sim. Estou rindo.

- Que noite... Que noite...

Repito pra mim mesmo enquanto olho no espelho e passo uma água no rosto. Seco o rosto, as mãos. Visto o paletó e saio andando, para a saída do cassino. Abro a carteira. Lembro que todo o dinheiro vivo que eu tinha estavam naquelas fichas. Não tenho grana para o táxi. Que se dane. Vou andar. Depois de hoje, é bom que eu penso um pouco na vida e revivo os momentos. Saio do cassino, me coloco a caminhar pela calçada. É madrugada, o tempo está frio. Mas a lua continua lá. Linda, cheia, iluminando o que podia. Não haveria noite melhor para uma Deusa ter descido a terra para se divertir do que essa. Espero ter sido diversão o suficiente para aquela entidade. Abaixo o olhar, olhando pra frente. Caminhando com as mãos nos bolsos. Quando menos espero, um táxi para ao meu lado, ouço o som de janela abrindo. E quando tomo ar para falar que não preciso de um táxi, tomo mais um golpe. É aquela doce voz. Dela, da Deusa, se dirigindo à minha pessoa.

- Aceitar rachar um táxi?

Paro. Demoro alguns segundos para assimilar aquilo. Viro o rosto devagar e lá está ela. Linda, sentada no banco de trás sorrindo abertamente enquanto me convida para rachar um táxi. Ela faz um movimento com a cabeça como quem me chama para dentro do carro e pisca o olho esquerdo. Eu solto um sorriso. Abro a porta do carro, entro e o taxista se põe a dirigir.

É como dizem: Azar no jogo, sorte no amor...