COLECÃO SANGUE ESCRAVO - O CORRETOR
Como um camaleão que se camufla à vista de todos, eles seguem sem serem vistos em meio a multidão.
O jovem Ferret estava sempre à procura de novos imóveis para investir nos negócios da família. Apesar de sua aparência jovem e informal, ele tinha um tino comercial de causar inveja a qualquer empresário de sucesso. Mas ele tinha segredos, e eles eram mais velhos do que o mundo.
– Quanto?
– Cara, veja bem, o terreno é maneiro, mas...
– Sem mas, só diga quanto?
– Sério, cara? Você nem viu a outra propriedade! Garanto que irá gostar mais de lá. O dono deste terreno aqui quer te colocar em uma roubada, cara! Olhe só em volta e me fale se não estou certo?Aqui não tem nada, é fim de mundo, cara! É de difícil acesso e só tem mato. Quem quer morar aqui, hem? Só índio, cara! E você não é índio, é? Está na cara que você é bem urbano. Não vá me entender mal, mas... se vê logo que você não tem costume com a vida selvagem. Eu sei! Dá para ver na sua estampa, cara. Vem da cidade grande, não é? Surfista, aposto! Acertei?
– Certíssimo! – o rapaz disse com uma pitada de ironia.
Ele agachou em uma trilha, pegou um punhado de terra e a cheirou; um animal de pelo passou por aqui faz pouco tempo, pensou.
– Está bem, admito que posso ter me excedido, mas errei por pouco, não é mesmo? Mas com certeza o proprietário pensa que você é gringo. Por isso quer te empurrar esta porcaria.
– Na verdade, eu sou – o rapaz respondeu com descaso.
Levantou-se e foi verificar um rastro fresco de algumas pegadas; é de um felino com certeza, sorriu; estas terras têm que ser minhas, pensou.
– Gringo? Cara, nem parece! Não que eu tenha nada contra os gringos, percebe? Mas aí, como eu estava dizendo, o proprietário vai querer te meter a faca. E jogar em seu peito esta terra desvalorizada que ninguém mais quer. Vai por mim, deixa com o papai aqui e eu te mostro uma parada boa: perto do centro, onde tem comércio fácil, acesso fácil, por uma pechincha!
O rapaz o olhou meio enviesado.
– Eu quero esta aqui. Este terreno é perfeito para o negócio que quero montar –afirmou convicto. Esfregou entre os dedos um tufo de pelos que encontrou preso em um tronco caído e cheirou-o; onça pintada, perfeito! Pensou.
– Você só pode estar brincando ou não sabe o que quer. Você não disse que quer construir um hotel, motel ou algo assim?
– Resort – o rapaz respondeu, distraído. Saltou da primeira pegada a outra, fez um cálculo aproximado do tamanho da fera ; é grande, provavelmente um macho. Pode vir a ser um ótimo presente para o meu pai, para compensar a pantera dele que eu matei sem querer em minha última caçada. Pensou, satisfeito.
– Que seja! Agora me diga, quem vai se hospedar aqui no meio do nada? Você não vê, cara? A não ser, que você esteja pensando em fazer daqui um 'safári' – ele sorriu debochado – é isso, cara, um 'safári' no Amazonas?
– Quase isso. Uma colônia de caça – disse, fazendo pouco caso.
Os resort, por ele projetados, eram destinados ao turismo. E na maioria das vezes eram frequentados pelos amantes da natureza que desejavam um pouco de paz e os que procuravam aventuras na vida selvagem, ou ainda, os que se ariscavam em um esporte radical. E esses tipos de clientes vinham aumentando a cada ano. E a maior parte deles eram de jovens, a chamada geração saúde; para o deleite de Rafael e de seus outros clientes: os especiais.
No período de baixa estação eram esses clientes especiais que passam a frequentar os resort. Os que precisavam de muita ação, aventura, adrenalina e um pouco de derramamento de sangue. Nesses períodos, os resort passavam a se chamar Colônias de Caça.
– Colônia de que? Caça? – o corretor perguntou, surpreso. – Está brincando, não é? Você é piadista, acertei? Colônia de caça, cara! Sério? Daquelas que a gente entra na selva com armas de verdade, balas de verdade? Cara! Desista disso, não vai dar certo. O IBAMA vai cair em cima e você vai se ferrar, mané! Você não sabe que caçar silvestres aqui dá cana?
O rapaz jogou fora o tufo de pelo que ainda estava em sua mão, com raiva. E agarrou o corretor pelo colarinho.
– Não vou fazer nada ilegal, 'cara'. Vai por mim. E os 'animais' que serão caçados aqui, não estão na lista do IBAMA. Eu garanto – sorriu de uma maneira sinistra empurrando-o – vamos acabar logo com isso – falou ríspido – só diga quanto é que eu pago.
– Está bem, está bem! Não precisa ficar nervosinho, ok? Se é assim que quer, assim será. Procuro hoje mesmo o dono das terras e fechamos negócio.
– Aproveite e procure também um desses barcos fluviais – o rapaz completou, girando em seus calcanhares para ficar de frente para ele – e eu quero um dos grandes.
– Cara, não acredito! – disse o corretor e o rapaz olhou torto para ele – Sei que o acesso para vir aqui é difícil e só vai ser possível chegar aqui pelo rio. Mas chegar ao ponto de comprar uma embarcação desse porte, para a sua... 'colônia'! Os turistas que vêm por aqui, vêm e vão em grandes grupos, é verdade. Mas só em um período do ano, depois o movimento cai e cai muito. É melhor fazer parceria com os barqueiros locais, cara! Um investimento assim é quase como jogar dinheiro fora.
– Compre! – o rapaz falou já impaciente.
Olhou para cima em direção ao sol que estava a pino, mas só alguns raios conseguiam atravessar a copa das árvores frondosas; lugar perfeito para caçar, nenhum acesso para pessoas indesejadas. Pensou.
– Sei! O dinheiro é seu. Mas se está querendo joga-lo fora, dê ele para mim, cara, que eu faço melhor uso.
O rapaz olhou com raiva para aquele homem irritante. Puxou do bolso um celular via satélite e apertou um número de discagem rápida.
– Damião... achei as terras para o novo resort. Peça para mandarem Neguinho do Estaleiro, da doca do Terminal da França, de Salvador. Preciso dele para fazer uma avaliação e a possível reforma de uma embarcação fluvial que irei comprar.
– Precisa mesmo que seja ele, Rafael? - perguntou o irmão do rapaz do outro lado da ligação.
– Eu sei que poderíamos contratar alguém do local, mas ele é de confiança e sabe da nossa condição.
– Certo, entro em contato agora mesmo.
– Fechado! Espero-o amanhã no aeroporto e o levo ao estaleiro.
Guardou o telefone olhando fixamente para o irritante corretor, que ficou visivelmente incomodado com o seu modo de olhar. Sentiu as pontas de suas presas roçando levemente em seu lábio inferior; e esse ato foi involuntário. Mas o rapaz já tinha aturado o máximo que podia. E deus, se é que existia um, era testemunha de que ele tinha se esforçado para não perder o controle, mas já estava quase por um fio.
– Faça. A droga. Do seu. Trabalho. Sem me questionar. Ou você estará fora. Entendeu? – ele disse entredentes, com um dedo encostando no peito do corretor a cada frase. E era claro que ele tinha entendido, sua cara assustada não negava – Quero as terras e quero a embarcação. Compre-os pelo melhor preço que puder fazê-los vender. Faça o seu melhor para merecer o título de corretor. E fazendo uma boa compra, eu ganho e você ganha; continuará vivendo sem se preocupar se suas partes íntimas estão no mesmo lugar – o rapaz deu dois tapinhas no rosto do corretor, que ficou boquiaberto olhando as pontas dos caninos que surgiram. Ajustou o prumo do paletó no ombro do corretor; sério? Ele está de paletó e gravata, ao meio dia, em plena mata Amazônica e depois eu quem sou o mané? Pensou, debochado.
– Ah! E por sinal, meu nome não é "cara". É Rafael... só Rafael. Só para lembrar. – e deu um sorriso sinistro.
Uma poça se fez debaixo dos pés do homem.
– Bem! – Rafael afastou-se dele – parece que finalmente nós nos entendemos, e espero que tenha ficado tudo claro. E nem é necessário dizer que nossa transação é confidencial, não é mesmo?
– Claro... claríssimo! Não! Sem problema – ele gaguejou com os lábios retraídos e os olhos esbugalhados de medo, com a sútil aparição das presas de Rafael – não tenha dúvidas disso, minha boca é um túmulo – pós a mão na boca como se pudesse fazer a palavra voltar – quer dizer... não quis insinuar nada.
Rafael cerrou os olhos, fitando-o por um instante.
– Ora, eu entendi. Até mais!
Com um sorriso de desprezo, se dirigiu à lancha que o aguardava no atracadouro – na margem do Rio Juruá, um dos afluentes do Rio Solimões, no Amazonas – o qual não passava de uma pequena ponte caindo aos pedaços; deixando o homem em pânico.
– E eu? – suplicou o corretor, caminhando rápido em direção a lancha e desesperado com a possibilidade de ser deixado para trás – vou ficar aqui só, no meio da mata?
Ele com certeza não conhecia Rafael. Que o fez voltar e sorrir meio debochado, deixando perceber mais do que as pontas de suas presas; e desta vez foi voluntário. E o corretor ficou lívido com o ato. Engoliu seco e estancou como se tivesse se chocado contra uma barreira invisível. E o ar em volta de si ficou carregado de um fedor pútrido. Rafael torceu o nariz, recolhendo as presas. E não pôde conter o prazer que sentiu ao ver o pavor que causou ao homem. Puxou o celular e ligou para o Porto Fluvial do Gavião, em Carauari, onde tinha alugado a lancha.
– Juarez, aqui é Rafael.
– Sr. Rafael! Pois não, como posso ajudá-lo; a lancha quebrou ou algo assim? - perguntou Juarez do outro lado da linha, preocupado.
– Não. Está tudo bem, mas obrigado por perguntar. Porém, estou precisando de um favor seu. Pode enviar outra lancha para pegar o carona que veio comigo? Ele precisa de ajuda para voltar.
– Mas o que aconteceu? Ele está ferido, é uma emergência?
– Uma emergência... – Rafael olhou o corretor de cima a baixo, avaliando o estado lastimável em que se encontrava – digamos que sim, mas não é grave. Porém, vai ser necessário trazer-lhe algumas mudas de roupas para que ele possa voltar. Acho que comeu algo estragado.
– Ah! Isso acontece – Juarez não conteve o riso com a situação embaraçosa do carona de Rafael, mas não vai ser preciso aguardar muito. Há uma lancha patrulha da guarda-florestal, que ronda por essa redondeza e que pode dar uma assistência neste caso.
– Bem, se é assim! – Rafael deu as coordenadas exatas de onde estavam e guardou o celular. – Pronto! Temos um barco da guarda-florestal a dez minutos daqui, e eles têm recursos para atender a 'emergências'. – Rafael falou se referindo ao estado lastimável do corretor. –Viu? Não sou tão cruel assim.
Então, encarando-o sério disse: – só não me dê motivos.
– Suponho então que devo agradecer por isso? – o corretor disse, transbordando de ressentimento.
– É, deve. E aconselho a ficar de boca fechada. Sabe como é aquele velho ditado, da mosca e da boca e tudo mais... – disse, entrando na lancha e ligando o motor – aguardo seu contato na pousada de Dona Celeste. E espero que resolva logo os detalhes das compras. Preciso voltar para casa.
Rafael fez a manobra para voltar ao estaleiro, deixando o homem com olhos compridos na beira do cais. E enquanto a lancha não pegava velocidade, ele disse aos gritos: – e não precisa se preocupar por enquanto, pois nenhum bicho se arriscaria a chegar tão perto de você agora – e não conteve uma gargalhada enquanto a lancha ganhava velocidade.
Chegando em Carauari, Rafael ainda teria que avançar mais alguns quilômetros para chegar a cidade de Tefé, às margens do Rio Solimões; onde ficava a pensão de Dona Celeste, na qual ele estava hospedado. Mas logo após navegar alguns minutos, ele resolveu ligar para Joel, um de seus primos, o qual tinha lhe indicado o corretor.
– Joel, quanto ao corretor, ele é confiável?
– Ele não tem conhecimento da nossa existência, se é a isso que se refere - Joel respondeu de imediato.
– Droga, droga, droga!
– Algo errado, primo
– Nada para se preocupar. Eu resolvo. E entro em contato, se acaso houver alguma novidade. Adeus!
Existia um acervo histórico referente ao suposto surgimento dos primeiros ancestrais da Comunidade do Sangue Escravo; da qual eles faziam parte. Suposto, pois, ainda estavam em estudo sobre a autenticidade dos fatos. E nestes registros era citado que no início da evolução humana houvera uma ramificação com características tão semelhantes aos do homo sapiens e passara despercebida. Por isso, não houve uma investigação sobre essa outra espécie, que ficou camuflada durante todo o tempo em que foi estudada a evolução do homem .
Porém, essa espécie existia e com uma rara deficiência. Ocasionada talvez por um acidente genético, que provocou uma degeneração em seu sistema digestivo; não permitindo o processamento de certos nutrientes.
E como exclamava Bichat, "no modo de existência de seres vivos, tudo o que os rodeia tende incessantemente a destruí-los". Então, os que não tinham suas vidas interrompidas pela predominância do mais forte ou das agressões naturais da natureza, morriam por não terem a capacidade de absorver os nutrientes que os manteriam vivos. E isso quase os levou à extinção. Porém, alguns indivíduos dessa espécie conseguiram sobreviver ao encontrarem uma maneira de burlar sua deficiência; absorvendo o sangue de seus semelhantes com os nutrientes já processados para se manterem vivos.
E o resultado final foi surpreendente. O sangue humano não só repôs os nutrientes que eles necessitavam, como também retardou o envelhecimento. Tornando-os mais fortes, mais inteligentes e quase imortais. E naturalmente se tornaram o topo da cadeia alimentar. Os predadores dos predadores. Camuflados pela própria natureza. Graças a seleção natural, eles eram exatamente iguais as suas caças. Mas só na aparência, é claro!
E em tempos atuais, com o surgimento de tanta tecnologia, seria fácil de se acreditar que poderiam ser facilmente detectados. Porém, eles estavam à frente. Adquiriram muito mais conhecimento e estavam muito mais adiantados na ciência, na medicina, na tecnológica... Organizaram-se em grupos, criaram normas e utilizavam todas as vantagens em benefício próprio. Logo, constituíram uma complexa rede tecnológica e uma equipe de estrategistas. E estavam sempre preparados e alertas para dar fim a qualquer evidência que viesse provar a existência de sua espécie. Fosse por: filmes, fotos, sangue ou DNA... Com distorção de notícias, sumiço ou destruição de provas eram facilmente desacreditados os fatos.
Por isso, não cabia a Rafael deixar rastros para serem descobertos.
Oh, merda! Vou ter que apagar o 'cara', pensou.
Joel tinha garantido que o corretor Igor era o melhor da região. E, pela descrição que Joel lhe deu, ele era o 'cara'. Porém, o que ele não informou era que o corretor não era um dos colaboradores da família, como Rafael supôs que era. Por isso a cara de horror do corretor, quando minutos após Rafael ter partido, ao invés da guarda florestal lhe dar o socorro, foi o próprio quem atracou no Píer para lhe dar carona de volta para casa.
A princípio, Rafael pensou em apagar as memórias do corretor, através da hipnose, que era uma habilidade que eles tinham. Porém, resolveu mantê-lo como um dos seus colaboradores. Pois, estava precisando ter alguém naquela área para o serviço externo. Mas para isso precisava ter certeza de que o corretor não iria dar com a língua nos dentes.
– Em primeiro lugar, de agora em diante você trabalhará para mim. E para você, eu sou o Sr. Rafael – disse isso enquanto pisava fora da lancha – em segundo, tome um banho no rio e reze para que nenhum jacaré morda a sua bunda.
– Obrigado, car..!. Quer dizer, Rafael... Sr. Rafael, por ter voltado. Eu sabia que no fundo você era legal – ele falava tremendo muito, com os joelhos juntos, sem sair do lugar – Mas tomar banho no rio... e se essas águas estiverem infestadas de piranhas, cara?
– R-A-F-A-E-L. Lembre-se! – ele gritou, a dois centímetros do seu rosto. E avaliou um pouco o corretor e disse – apesar de ser quase impossível ter piranhas neste rio, se tiver, o mundo não vai perder lá grande coisa – e segurando-o pelo braço, jogou-o na água.
– Putz, cara! – ele xingou ao voltar à tona.
– Sr. Rafael... – corrigiu Rafael de novo, agachado em cima do pier – e ande logo, tenho pressa para ir embora.
Com muita raiva o corretor tirou as calças para lavar.
– Sinceramente, não sei o que é pior, se ficar aqui de bobeira para os bichos me morderem ou ser socorrido por você, car... Rafael – disse com sarcasmo, esfregando a roupa. E depois de uma breve pausa acrescentou: – Afinal, o que você é? Lobisomem ou vampiro? – e fez gestos com os dedos em sua própria boca, insinuando as presas salientes.
– Isso faz diferença? – Rafael perguntou, curioso.
– Bem! Na verdade, eu não acredito em nem um dos dois. Quer dizer... até hoje. Você me deu um senhor susto, cara... “Sr. Rafael” – ele olhou de esguelha ao se corrigir – Por um momento eu acreditei que fossem de verdade... pareciam reais, car... – fez o gesto de novo para elucidar as presas e sorriu debochado.
Limpou a garganta e mudou de assunto.
– Vou colocar em sua conta uma roupa nova. Sabe como é? Acidente de trabalho – riu gostoso, ainda esfregando a roupa com mais energia – e não faça essa cara, cara. A culpa é toda sua, por me meter medo com uma brincadeira maluca dessa.
Olhou de relance para Rafael que apenas o investigava. Ele estava intrigado com sua rapidez para se recuperar de um susto. Deu um tempo avaliando-o, antes de falar:
– Sou um... como é mesmo que vocês nos chamam? – perguntou com certa ironia, e completou sério: – Vampiro – por isso, 'cara', não abuse, costumamos beber sangue – enquanto sua voz saia profunda de dentro do peito, mostrou as presas por inteiro, dando o seu olhar mais demoníaco.
O sorrisinho cínico do corretor escorregou por sua cara, lívido, sem acreditar. Transpassando sinais de medo, incerteza e horror, enquanto as calças escorregava das mãos.
Não é preciso nem dizer o porquê de Rafael deixar bem claro para o corretor que, para ele continuar vivo, não poderia deixar dúvidas de sua lealdade; o homem tinha a língua solta e ainda por cima se recuperava muito rápido de um susto. Ou ele não acreditava, ou era capaz de conviver com a anomalia dos cidadãos da Comunidade do Sangue Escravo, sem medo. E sendo a segunda opção, Rafael optou por contratá-lo para ser o seu assistente particular. Era raro encontrar pessoas de confiança e capazes de lidar com sua espécie para trabalhar em serviços intermediários. Então, colocaria ele à frente das compras e vendas de sua empresa na América do Sul. E com um salário mais do que justo. Com as despesas de locomoção todas pagas, mais as comissões para cada trabalho realizado.
E não pensem que esses foram os motivos suficientes para subornar a lealdade do miserável do corretor. O que realmente deixou Rafael mais tranquilo foi a promessa dele de que manteria a boca fechada após a ameaça explícita de Rafael. Ele garantiu que iria pessoalmente encontrá-lo nos confins do inferno, se fosse preciso, caso desse um pio sobre qualquer coisa sobre seu segredo. Com certeza, esse foi o melhor trato feito com ele. E talvez, é claro, o fato de que ele estivesse coberto com nada mais do que uma folha de mamoeiro, em pé em um vão escuro, na entrada da pousada de dona Celeste, às cinco horas da tarde, no horário de maior movimento do estabelecimento; enquanto Rafael esclarecia detalhadamente as suas condições de trabalho. Foi mais um motivo para ele concordar o mais rápido possível com qualquer coisa que ele o impusesse.
Tudo começou no dia em que os três irmãos desembarcaram pela manhã no aeroporto de Manaus. Enquanto Damião e Samuel corriam aos arredores da capital, reconhecendo e avaliando as “iguarias nativas”. Rafael foi para o interior, em busca do local perfeito para assentar um novo resort. Isso foi no mesmo dia em que ele se revelou ao corretor no meio da mata. E quando ele estava explicando-lhe o que queria que fizesse como seu assistente pessoal, Damião chegou trazendo Samuel com ele.
Para o azar do corretor.
Quando Damião deu com a cena do corretor, que o primo Joel os indicou, de paletó e gravata e uma folhinha de mamoeiro cobrindo só a vergonha do homem, ele não quis nem saber o que tinha acontecido. Logicamente que ele teria que registrar a cena. E como sempre, ameaçou a colocar na internet.
O corretor não gostou da ideia, é claro! Praguejou e correu atrás dos irmãos, tentando pegar a máquina fotográfica para destruir a foto, que voava de mão em mão. Resultado? O corretor ficou amarrado, possuindo tão somente uma folha do mamoeiro colado, só Deus sabe como, nas partes íntimas e nada mais. Foi-se o paletó, foi-se a gravata. Bem! A gravata ficou. Era ela que amarrava as mãos do pobre coitado. E ele passou a noite toda de castigo, com os dois irmãos sentados a alguns metros, fustigando-o. E para o desespero dele, de tempos em tempos, o fazia repetir o quanto deveria respeitar a família Ferret.
Samuel sempre fora assim, um tanto persuasivo.
É, e parece que ele aprendeu. O assistente Igor estava menos nervoso e já não questionava mais as decisões de Rafael. Trabalhava com uma eficiência que dava gosto. Mas queria ver o diabo a ter que lidar com Damião e Samuel outra vez.
Viu, eu não disse, não sou mais o bicho papão da minha família? Pensou Rafael, com um sorrisinho irônico.