Talvez um livro
Em qual mundo vivemos hoje? Após uma guerra mundial sobraram poucos de nós. A tecnologia não faz mais sentido. O que sobrou do mundo é lixo, lugares destruídos que a natureza aos poucos vai tomando conta. Há uma beleza nisso. Caminhar pelas grandes avenidas e perceber que as plantas estão voltando. E há muita, muita tristeza. O mundo de hoje é um quebra cabeças. Não sabemos mais onde é o deserto, os oceanos mudaram seu ritmo. A geografia é totalmente nova. Não há mais governos. E muito menos países. Hoje somente alguns territórios são passíveis de se viver. Há gelo em lugares onde não existia antes. Devemos isso a ganância e aos homens que se guiavam pela falta de princípios. Países foram dizimados. Com um simples clique em algum maldito painel dos supercomputadores. O dia virou noite. Os sobreviventes escreveram algumas histórias para a posteridade. Que somos nós. Alguns antigos nos chamam de crianças do Armagedom.
Acontece que não somos mais crianças. Alguns de nós se arriscam fora dos pequenos núcleos de convivência. Sou um deles. Estou encarregada de descobrir se fora de nosso núcleo há mais pessoas. E para isso viajo o que sobrou do mundo. Não sabemos em que ano estamos. Não seguimos o calendário de antes da guerra. Criamos um novo, mantendo os nomes dos meses por pura comodidade. Buscamos estabelecer uma linguagem única de fácil entendimento para todos. Várias línguas não são mais necessárias. Ainda temos várias tonalidades de pele. Graças aos deuses. Senão aqueles que nos jogaram uns contra os outros, teriam ganho a guerra mesmo estando todos mortos. Já faz um século que a guerra exterminou tudo o que viu pela frente. Milhares de pessoas, animais, plantas, rios morreram. Os sobreviventes que estavam espalhados pelo globo aos poucos foram encontrando meios de se aproximarem.
Há histórias sobre assassinato, sobre estupros e sobre superações. Os mais velhos e sábios começaram a escrever códices para a próxima geração. Uma forma de orientação. Alguns trouxeram seus deuses, outros seus conhecimentos e outros ainda suas poesias, contos. Assim pudemos ir reestruturando nossas vidas.
Agora é hora de desbravar os territórios que ficaram vetados por meio século. Foi a forma que a Assembleia encontrou para proteger a todos nós. Afinal tudo estava envenenado. A Assembleia escolheu cinco de nós. A minha escolha foi uma enorme surpresa para todos, menos para mim. Minha intuição já havia me avisado. Três eram pessoas conhecidas só o quarto não. E aí a porca torce o rabo. Não sou alguém fácil de confiar. Talvez por conta de tudo que passei até chegar ao nosso núcleo de convivência. Será que já devo me apresentar? Ou será melhor apresentar os outros companheiros primeiros? Pensarei enquanto bebo um café e fumo um cigarro. Sim ainda temos essas coisas por aqui e contarei como as conseguimos mais para frente. Agora é hora de me recolher ao silêncio.
Todos estão no grande salão da Assembleia esperando que sejamos apresentados e para nos darem suas bênçãos e seu avisos. É um lugar rústico, que provavelmente já foi uma igreja ou algo do tipo. Há cadeiras, bancos e até poltronas que fomos trazendo para o lugar. Ao fundo fica um tipo de bar e onde ficaria o altar ficam as poltronas dos membros da Assembleia, que é formada por 10 pessoas, cinco de cada sexo, sem levar em conta o gênero. A mais velha de todos, Anna, começa seu discurso assim:
“Após um século ainda estamos aqui. Muitos perderam tudo. Aprendemos como não se deve levar a vida. Aprendemos a respeitar as diferenças. A cuidar da natureza pelo menos do que sobrou dela. Agora devemos ir à procura de novos horizontes e quem sabe teremos a sorte de encontrar outros sobreviventes. Não é nosso objetivo mudar qualquer forma de entendimento sobre vida, morte, deuses ou a falta deles. O que queremos é expandir nossas consciências e torcemos para que os desbravadores, nossas Crianças do Armagedom, encontrem mais seres humanos, como nós ou não. Passarei a palavra ao líder deles.”
Nesse momento um homem alto se levanta e se aproxima de Anna lhe dando a mão e beijando seu rosto.
— Boa noite meu nome é Andrei. Serei o líder da expedição. Embora talvez não seja uma das Crianças do Armagedom. Escolhi entre vários candidatos os que pensei terem maior probabilidade de êxito nessa empreitada. Não por serem habilidosos ou fortes e sim por serem empáticos. Apresentarei cada um deles e dar uma breve descrição dos mesmos. Devo admitir que os membros da expedição me surpreenderam quanto as suas características. Sem mais delongas vamos as apresentações. O primeiro que chamo até aqui é Rafael. Perito em línguas mortas ou não, muito curioso quanto a biologia e botânica.
Enquanto Andrei falava Rafael, um homem sorridente, de cabelos curtos e olhos castanhos se aproxima dele.
— Olá a todos. Sou um tipo divertido e por vezes muito crítico.
— Agora é a vez de Adriano. Um tipo esquivo mas sempre pronto a ajudar. - Adriano se levanta, vai até Andrei e virando-se para nós diz:
— Não sou esquivo só não gosto de ser surpreendido. Se posso dizer algo sobre minha especialidade é sobrevivência no mundo de hoje. - Ele não deve ter mais que 1.70, cabelos crespos, olhos e pela escura. Um sorriso estonteante. Andrei novamente fala se dirigindo a próxima pessoa.
— Começamos agora com ela a sempre delicada e dedicada Luana. Professora e médica nas horas vagas, ótima com poções e afins. Incisiva e quase sempre de poucas palavras. - Luana se levanta, faz uma pequena curvatura e nos sorri. Ela é mesmo sensacional e muito competente. Comenta sobre si:
— Sou alguém em constante busca por remédios naturais, por entender como lidamos ou não com a dor. Não sou especialista, mas, sim alguém que necessita entender o outro como a si mesma.
Agora vem chegando a minha vez. Já sei de antemão que o nosso líder não vai muito com a minha e a recíproca é verdadeira. Algo nele me incomoda. E ainda não sei o que possa ser. No meu canto espero ser anunciada. Então ele começa:
— Devo deixar claro que essa indicação não foi ideia minha. E sim da Assembleia. Nada tenho contra ou a favor dessa mulher geniosa que todos conhecem Sarah. - Eu me levanto e vou até ale estendendo a mão que ele pega, num aperto férreo. Rivalizo de altura com ele. Ele tem 1.90, eu 1.80. Anna para quebrar o clima pesado diz:
— Sim a Assembleia decidiu que Sarah deveria se juntar aos outros. Ela conhece todo o nosso território. Conhece história, plantas, comidas e nossos códices fora a leitora voraz que ela é. Nada mais justo que ela siga com os outros. Andrei ficou meio ressabiado por conta dela ser filha de um dos nossos fundadores. Mas, essa mulher já superou muitas coisas e não abriria mão nunca de seguir com os outros.
Agora era minha vez de falar. E não me fiz de rogada embora, não goste muito de falar em público:
— Já que desbravaremos novos horizontes, por que eu ficaria aqui sentada, tricotando ou crochetando? Minhas habilidades são conhecidas por todos, mas, só para deixar claro para o Senhor Andrei, direi algumas: Intuição. Conhecimento da flora e fauna. Reconhecimento de solo e espaços. Conheço um enorme variedade de plantas venenosas. Como das que podem curar. Então estou apta a seguir com a Expedição. E eu sou uma das Crianças do Armagedom!!!!
Há risadas pelo recinto e sinto os olhos de Andrei cravados em mim, quando me viro e sorrio para ele, um sorriso zombeteiro. Terminada a apresentação ele diz;
— Agora vamos delinear os próximos passos. Iremos para o norte, descobrir o que restou por lá. Nessa primeira parte da Expedição ficou acertado que estaremos em busca dos que vivem por lá. Sabemos que há, pelo menos, dois núcleos de convivência. Nosso objetivo é entabular conversações e intercâmbio com eles. Para isso precisamos descobrir se ao menos essas pessoas são amigáveis. Após essa constatação decidiremos os passos seguintes. Há relatos de animosidade. Por isso usaremos de cautela.
Todos concordamos com essa postura. Se faz necessária cautela. Ao longo desses cinquenta anos recebemos relatos dos que vinham do norte, fugindo das guerras e da escravidão. Pelo que chegou ao nosso conhecimento os nortistas não eram muito sociáveis.
Após as apresentações Anna se aproximou de nós. Ela tinha alguns conselhos e diretrizes para o grupo. Falou sobre a dificuldade da empreitada e também sobre como deveríamos apoiar um ao outro. Não pude resistir e disse;
— Diga isso ao seu queridinho. Porque me parece que na primeira oportunidade serei jogada fora do caminhão…
Todos rimos menos é claro o líder que me olhava de modo mortal. Então se aproxima mais de nós e diz;
— Há lugares melhores onde posso descartar você Sarah…
Nosso olhos se encontram e sinto uma vontade quase irresistível de arrancar os dele. Anna vem em socorro do grupo dizendo:
— Vocês dois até parecem um casal após alguns anos de convivência.
Todos riem menos nós, quando me viro para responder Rafael ainda sorrindo comenta:
— Sarah pode se envolver comigo. Meu amigo é frio. Tipo iceberg. - Todos relaxam e
Luana emenda;
— Ela é mais um vulcão. Melhor mantermos os dois um longe do outro.
— Oras vamos parar com isso. - Digo eu enquanto Rafael se acerca de mim e Anna diz seriamente:
— Espero que vocês se acertem de alguma forma. Para o bem da Expedição. - Andrei responde:
— Não se preocupem. Gelo e fogo de alguma forma se entendem sempre.
— Sim! De alguma forma. - Digo eu sustentando aquele olhar.
— Sairemos em poucas horas. Então vamos terminar nossas mochilas e nossas despedidas. Quero todos na garagem em quatro horas. - Ele se aproxima de Anna toma seu braço, acena com a cabeça para nós e sai.
Os outros seguem seus caminhos. Permaneço por ali. Minhas mochilas já estavam prontas. Só precisava me preparar para as despedidas. O que nunca é fácil. Sabemos quando saímos, nunca se voltaremos….
Não sei se continua...