Monstro sob a cama
Eu já tinha ouvido falar do monstro que mora debaixo da cama. Quem nunca ouviu? Nasci antes do filme Monstros SA, então meu monstro não era como os desse desenho. Tinha grandes olhos que brilhavam no escuro e, apesar de parecer uma sombra, era sólido. Mas nunca cheguei a realmente vê-lo quando pequena. Debaixo da minha cama tinham tantas caixas, brinquedos, jogos, organizadores, que ele não cabia direito. Se chegou a morar realmente ali algum dia, deve ter sido breve e sofrida estadia. Mas isso não quer dizer que escapei de ter monstros noturnos.
Naquela época eu tinha mais medo do Monstro do Cabide. Ele vinha de madrugada ao quarto da minha mãe e ficava parado no mesmo lugar onde de dia ficava o cabideiro dela. De blusão e chapéu na cabeça, ele me encarava e perturbava por toda a noite. Minha certeza de que era real, e não o cabideiro, é porque já o vi se mexer. Eu tinha várias rotas de fuga para a cama da minha mãe caso ele se aproximasse. Claro que debaixo da minha própria cama não era uma opção. Se nem meu monstro da cama cabia ali, que dirá uma menina de 6 anos. Eu já era uma mocinha, sabe?
Com o tempo minha irmã mais nova saiu do berço e eu fui promovida. Agora, eu teria uma cama perto do teto, um canto para poder ficar sozinha. Na cama de cima da beliche, tive mais certeza ainda de que o monstro de debaixo da cama nunca viria. Seria muito complicado para ele escalar, passar pela minha irmãzinha e chegar em mim. Ensinei a ela a como não ter medo também. Mostrei o espaço que tinha debaixo da cama. Nunca caberia um monstro, eu a tranquilizei.
Porém, nessa época, eu já prestava mais atenção nas rotinas da casa do que quando mais nova. Meu pai, sempre muito cuidadoso, sempre conferia e se atentava às trancas. Passei a ser atormentada então por um novo monstro da noite. Tinha a certeza de que alguém invadia nossa pequena vila todo dia, e me vigiava, assim como o monstro do cabideiro fazia antes. Eu, sempre com um plano de escape, agora tinha um plano para fugir de casa quando acontecesse, afinal já era grandinha e tinha que me virar. Ele entraria pelo primeiro andar, ou pelo segundo, onde dormiam meus pais. Eu e meus irmãos estávamos agora no terceiro, então sairíamos pela varanda do andar, e colados na parede iríamos pelos canos para a varanda do vizinho, até o telhado mais baixo da outra casa. Não quebraríamos a perna na descida, porque eu já tinha estudado quais as janelas confiáveis e a distância entre elas. E então chegaríamos ao grande corredor de entrada da vila, e ao seu fim, o portão. Dali seria gritar ou ficar com minha irmã no colo, no escuro, até chegar alguém, porque eu ainda não tinha idade suficiente para ter uma chave então não conseguiria abrir.
Na adolescência, ainda dormia na beliche, mas tinha uma cama de suporte embaixo, uma triliche. Concretaram o espaço do monstro sob a cama. E agora estávamos em um apartamento e não em uma casa de vila. Meu monstro noturno novo era agora mais silencioso. Ele morava no espelho da porta do armário que ficava de frente pra cama. Eu só o via se arrastar quando eu mudava de posição. Mas algumas vezes de madrugada, eu me sentava virada pro espelho, o desafiando a vir me atormentar, cansada dos planos de fuga. E ele vinha. Mas era tão covarde que esperava que antes eu cedesse ao cansaço. Quando eu pegava no sono ele me sacudia e eu acordei por vezes molhada de suor, de tanto lutar com ele em meus sonhos. Tinha menos medo dele do que do monstro do cabide, mas com certeza ele era mais perigoso.
Quando me mudei dos meus pais pela primeira vez, me certifiquei de não dormir do lado da cama que ficava perto do armário. Eu não teria espelhos ou cabideiros no quarto onde pudessem morar monstros e eu moraria perto de delegacias, ou em apartamentos, para não precisar esperar no corredor escuro o monstro da rua sair da minha casa. Me preocupei tanto com os monstros que me atrapalharam por toda a vida, que esqueci daquele que nunca tinha tido espaço para crescer. Me esqueci do monstro debaixo da cama. Não sei quando foi que ele se mudou para lá, se na cama de casal comum ou na época da cama box. Mas sei que agora ele voltou preparado e até numa cama box meu monstro da cama cabia, bem esticado, quase como um lençol entre o chão e meu colchão.
De tantos anos desejando morar comigo e sendo afastado por onde eu ia, ele já não queria me assustar. Queria ficar perto. Foi vindo de mansinho. A verdade é que nos lugares por onde ele passava pelo mundo, ele pensava em mim e foi criando um amor genuíno. E possessivo. E sufocante. No começo ele ficou tão feliz que começou a me abraçar de noite enquanto eu dormia. Se misturava ao meu lençol e me abraçava forte. Mas tão forte que eu lembro de acordar sufocando. Eu me sentava na cama e não conseguia respirar. Saíam lágrimas dos meus olhos e eu, suando, tentava lembrar onde estava. O maldito quase tinha me apagado com seu carinho. Logo ele ficava tímido e se escondia. Eu ainda não fazia ideia de quem era meu novo, ou nesse caso, velho novo monstro noturno. Eu até olhei debaixo da cama, mas ele se prendeu ao colchão, torcendo para que eu não o visse e o expulsasse, e realmente eu não o vi. Tirei tudo da mesa de cabeceira achando que era algo que se escondia ali. Podia ser o remédio para dor de cabeça que eu tomava pelas brigas do dia. Podia ser algum livro me julgando. Na dúvida, tirava tudo.
Todas as noites ele vinha, e eu fui ficando cada vez mais cansada, porque ele não me deixava dormir. Fui ficando irritada com meu monstro noturno e exigindo que o covarde se mostrasse. Ele percebeu então que precisava ser mais gentil se quisesse se aproximar. Não é comum dos monstros, sabe? Mas ele realmente queria que eu ficasse na cama com ele, depois de tantos e tantos anos sendo deixado de lado por outros medos.
Um dia, então, eu estava exausta e tudo parecia ruir, olhei para a minha cama e ela estava mais bonita do que parecia antes. Deitei nela, e enquanto chorava com meus olhos fechados e as lágrimas escorrendo no travesseiro, meu monstro viu a sua oportunidade. Lentamente ele começou a me fazer um carinho e me embalar. Era tão bom. Eu senti que estava segura. O mundo era tão mau, fazia tempo que eu não me sentia assim. Segura nos braços de um monstro.
Claro que eu percebi agora a origem dele. Ele vinha da cama. Mas nunca tinha o visto realmente, lembra? Eu sabia no fundo que ele não devia estar ali, mas eu estava precisando tanto daquele afago. Estava tão cansada de tudo. Já tinha percebido que meu relacionamento estava fadado. Ia me demitir por conta dos problemas no trabalho. Andava tão cansada que já não sonhava, então queria só dormir. E ele me ajudou.
E eu dormi. Dormi mais do que nunca. Em algum momento eu pensei que precisava levantar. Minha barriga estava vazia e reclamava. Eu levantei, mas senti todo o peso de novo, e chorei. E ele, que também não queria que eu fosse, me abraçou. Começou a cutucar minhas pernas, e elas tremendo cederam e voltei a deitar. Isso aconteceu mais vezes. Por meses.
O engraçado do meu monstro de debaixo da cama, é que por mais que ele tenha se apegado e por isso não pareça assustador, ele ainda é um monstro. É monstruoso e mortal e agora muito possessivo, o que o torna ainda mais perigoso. Ele não foge de quem eu sou. Mas ainda é um monstro, mesmo que quentinho e com toque de seda. E eu o subestimei. Admito. Só com o tempo de ajuda fui criando forças para exigir que ele saísse dali.
Mesmo depois de o ter expulsado, ele ainda vem me ver. Nunca mais dei espaço pra ele na minha cama, mas ele vem visitar. Começa com seus toques suaves em meu rosto enquanto durmo, esperando que eu o deixe ficar. Às vezes vem com raiva e já me sacode e sufoca em meus pesadelos. Eu luto contra ele. Passo a noite vigilante, como passava com o Monstro do Cabide. Como fiz com o Monstro da Rua e com o Monstro do Espelho. Mas já estou cansada de tanto lutar a noite, admito.
Por isso estou escrevendo esse anúncio. Queria me livrar do meu monstro e sei que não adiantam armas comuns. Já tentei vários métodos, orações, meditações, remédios e higienes do sono. Eles o deixam longe, mas ele sempre volta com saudade. Gostaria de contratar então um vigia de monstros para garantir algumas noites de paz. Contrataria um matador de monstros, mas acho que agora já me apeguei à existência da infame criatura.