THEODORO, O VAQUEIRO
Theodoro, O Vaqueiro
Naquela paragem, Theodoro repousava sobre a antiga rede de tucum, gasta e sombria, beirando o negro, marcada pelo suor do velho patriarca. A rede oscilava como pêndulo, enquanto com o calcanhar o ancião a impulsionava na parede do casebre, fazendo perdurar o movimento. Ele inalava a fumaça do pau-ronca, soltando-a com a boca em círculos ascendentes, como um pajé ancestral a evocar o espírito da floresta garapense.
Tempo, a Theodoro não se impunha, pois relógio não possuía. Dinheiro lhe era estranho, o tempo como um camarada lhe acompanhava. A leitura lhe era vedada, pela lei da ignorância o que o poupava de agitação ou insurgência. Sem apegos, não tinha nome definido, para tal o chamavam de Theodoro por força da inexistência de outro. Dizem até que Sinhá, não encontrando homenagem para seu antecessor, o batizou com o nome do ancestral coronel, em batismo sem água e sem pranto.
No Tabuleiro Grande, nos anos 20, enquanto alguns acomodavam-se em confortáveis casas de adobes, com fornos de lenha, mesas robustas, chão de tijolos cozidos e casas talhadas e cobertas por folhas de carnaúba, Theodoro vivia recluso em um prati-banda. Ele partilhava companhia com um pilão desgastado, um bule esverdeado de esmalte já desvanecido, bacias entalhadas na madeira, uma gamela e três fiéis cães. Cada cão, um nome: Namais, preguiçoso, que só latia; Rompe-ferro, cuja origem o vento desconheceu; e Bataia, rápida de olfato e fala silente.
Theodoro era hábil em suas empreitadas, mas não se dava com a roça ou engenho, o som das prensas o exauria, os “caninos” do caititu na ceva o infundiam pavor. Amante do labor, porém avesso à pesca e caça, que lhe desencadeavam ronquidos no peito, piados e chiados por longos dias. Theodoro, incansável, ansiava por todo tipo de trabalho. No entanto, o campo evitava, pois era fanho, destituído de aboio. Outros ofícios ansiavam por ele, sonhava ser mestre pedreiro ou maquinista, nunca tendo visto um Trem ou uma casa de alvenaria. Theodoro fantasiava-se até de chofer na capital São Luís, num carro que desconhecia, tidos como bestas perigosas.
Assim o homem dotado de talentos, vez por outra, se sentia submisso. E como homens assim, sua criatividade antecipava o tempo, fazendo do impossível uma realidade.
No instante que nos detemos sobre a vida desse homem, ele se balançava na rede de tucum, impregnada de seu suor, agora uma fibra negra que a deixara suave e acolhedora. Entre tragos de pau-ronca, refletia sobre a vida e o fosso para tatús que armara na noite passada.
Interrompe o balançar da rede, dirige-se ao pote, pega a meia-cabaça e bebe a salobra água da cacimba. Extrai um pedaço de cebo da cumeeira e fricciona na impigem em sua perna, aliviando a coceira. Tenta o cachimbo, mas o fumo esgotara. Seu olhar pelo buraco da porta frontal revela desinteresse pelo que vê. No enchimento de taipa, encontra o espelho, encarando sua própria velhice, as marcas do sol na pele, os dentes perdidos, os olhos envelhecidos. Retorna ao casebre, que carece de fotos, amigos e calendários. Com chão molhado, o massapê retarda a secagem após o inverno. Dispensa o sono na esteira nova, repousando no velho pilão de presente de Sinhá. Sua origem, sua identidade, lhe inquietam, mas sem quem recorrer ou reclamar, decide obliterar o emaranhado de pensamentos.
Na segunda abertura do pilão, agarra um punhado de arroz remanescente. O sabor o anima, e seus olhos repousam sobre seu terno de couro, estimado e agradecido. Veste-se apropriadamente, soltando o cordão do calção, vestindo a perneira e o terno, ornamentando-se de vaqueiro. Com o chapéu erguido, sente-se como um menino nas trilhas catingueiras, enfrentando matos, aboiando com paixão na busca pelo boi Trovão, nos cocais, nas margens do Parnaíba, sua montaria, o cavalo Rosie, uma visão majestosa.
E assim, Theodoro, envolto em sua recriação, deita-se e adormece no crepúsculo.
A aurora o desperta revigorado. Chá de erva cidreira aquece a manhã, farinha de puba com banana sacia a fome. Colhe ovos das galinhas a contragosto, cozinha-os e os degusta. Um trago da "tiquira", fruto de seu próprio labor com a mandioca, aquece o peito. Sua cela antiga de jornadas, perfeita e honrada, envelheceu sem muito uso, carregando consigo o peso dos anos. Theodoro a renova, costurando, remendando, substituindo, até realçar sua forma original. Uma vez concluída, ele a encaixa em uma palmeira caída, observa-a de longe e declara: 'Minha cela está como nova, boa 'prefeita'!' Em resposta, o eco da sua voz percorre a mata. Ele a monta, entoando ao vento, explorando e encontrando alegria na vastidão da caatinga do Garapa.
Frederico ARebeloT, 12-2020
Academia de Letras do Vale do Longá- ALVAL"