Expresso 333
Expresso 333
— Crianças, crianças, não se esqueçam de chupar as doze uvas, pe-guem-nas ali na fruteira em cima da cristaleira. Vamos, andem depres-sa tragam elas para cá, já está quase na hora. Peguem-nas rápido, rápi-do! — assim se manifestava a mãe com tremenda aflição, mas ao mesmo tempo com efêmero entusiasmo, ávida à espera do término do velho século e a chegada do novo.
— Nas doze badaladas do relógio cuco. . . — resmungava a autori-dade ímpar a matriarca da família —, doze, onze, dez, nove, oito. Querido o champanhe, esqueceu-se dele? — disse ela ao marido sor-rindo-lhe ao olhá-lo com ternura de olhinhos apertados, para depois, solicitar festivamente. — Dá-me cá um beijo! — os olhos começaram a ficar marejados sem deixar de serem alegres e joviais.
— Não, não! Ah, sim, sim, oh! — na euforia, o marido não sabia o que dizer ou fazer, parecia um João-bobo em mãos infantis. — Não, não, o champanhe, oh. . . não, não me esqueci dele não.
— É o beijo?
— Ah, Meu Deus, desculpe-me, toma. . . — ponderou todo atrapa-lhado antes de dar-lhe o beijo tão almejado por ela. E, de olhar estupe-fato, encarou-o firmemente: nunca o havia visto agir de maneira tão estranha e estabanada. Só que ela sem o perceber, também se encon-trava do mesmíssimo jeitinho: atrapalhada.
— Feliz Ano Novo!
Disse o pai.
— Feliz Ano Novo!
Respondeu a mãe cheia de graça.
— Feliz 1900! Viva, viva!
Disseram todos os de casa se abraçando, beijando-se, pulando e dançando de alegria.
Dessa maneira começava o século XX para a família Gomes reuni-dos em torno da enfeitada mesa abarrotada de requintadas iguarias, de bebidas e montanhas de guloseimas na espaçosa sala de jantar do se-cular casarão de dois pavimentos. Três candelabros de prata com cin-co velas em cada um, dois em cima da mesa e outro na cristaleira, ilu-minava o ambiente deixando a cor da velha mobília de mogno fulgu-rante, contudo um pouco soturna. Os lampiões pendentes nos cantos das quatro paredes não tinham sido acesos; sua esposa quis dar um ar mais romântico à primeira ceia do novo ano que iria pespontar como realmente acontecera.
Em um acanhado espaço da parede entre uma porta e outra divisor dos ambientes, havia um espelho enorme onde uma pessoa podia ver-se de corpo inteiro, que naquela hora refletia, mas também aprisionava ao mesmo tempo as imagens, assim como os sabores e os dissabores de todas as pessoas que ali se encontravam. Os movimentos de todos, coadjuvando com a alegria devido à comemoração, de veras era esfu-ziante por quatro motivos: primeiro por mais um feliz ano de vida em convívio familiar: segundo pelo aniversário da filha; quinze aninhos: terceiro pela promoção do patriarca no seu emprego: quarto pelas fé-rias que fez jus com louvor e merecimento após o longo ano de traba-lho árduo. E lá estavam todos reunidos; o Dr. João Gomes, a esposa Rebeca, a filha Marília e também o caçula da prole, o pequeno e bir-rento Bartolomeu. Ah! Não podemos nos esquecer de que também estavam os serviçais da casa, cinco ao todo, mais a negra Sebastiana, a ama de leite e governanta ao mesmo tempo. Ela fazia parte da família desde o tempo dos avôs do Dr. João Gomes. Nascida e criada na fa-zenda, desde há muito não mais escrava.
A mansão onde moram era a única coisa que lhes restara da enorme fazenda herdada dos avôs e depois dos pais. Os últimos anos do sécu-lo dezenove, anos duríssimos para os fazendeiros de café e de chá, em moda na época foram penosíssimos. A atual família Gomes, sem con-dições de cuidarem de tanta terra, a maioria já infrutífera devido às doenças dos cafezais e a das não menos terríveis, as pragas de gafa-nhotos que atacavam frequentemente as lavouras de chá nos últimos anos destruindo quase tudo, fora o motivo; a fazenda era o ganha-pão da família Gomes. A tecnologia química da época não era capaz de remediar a desgraceira que assolava com frequência toda a região, por-tanto, sem uma solução plausível num curto prazo tiveram de lotear as terras e vende-las as companhias imobiliárias que surgiam às pencas na cidade. O dinheiro decorrente foi usado para saciar a ganância dos avarentos agiotas e, os não muito menos “salafrários”, os banqueiros devido às dívidas decorrentes das tentativas de solucionarem os pro-blemas vindos do. . . sabe-se lá de quem? A explosão demográfica no final da década do século começava a ficar em franca expansão. Atu-almente viviam bastante bem. Não eram mais tão ricos, porém graças ao seu bom emprego, engenheiro arquiteto, a vida em comum e finan-ceira era bastante estável e agradável, e ainda o melhor: livre de os problemas e das preocupações de tão vasta terra a cuidarem.
— Querida tenho que ir até à cidade — disse o Dr. João na manhã seguinte depois do ano novo ao levantar-se da cama: bem entendido, depois do feriado do dia primeiro de janeiro.
— Ah, não vá, amor! Fica mais um pouco na cama, está tão gosto-so!
Aquele começo de manhã apresentava-se magnífica e de calor mo-derado devido aos dias anteriores a aquele terem sido chuvosos. O Sol de dourados raios penetrava pela veneziana e iluminava a cama do casal montada artesanalmente em ferro de formas lanceoladas pintada em vermelho. A luz do dia vinda através da veneziana deixava os len-çóis imaculadamente brancos numa cor levemente alaranjada.
— Rebeca eu sinto muito, mas agora não é possível, realmente gostaria muito de ficar um pouco mais, ter você em meus braços me é muito reconfortante e delicioso, mas, realmente tenho que ir até a ci-dade. O assunto é muito importante, acredite em mim!
— Sim, sim amor, eu acredito piamente nisso, mas você não está de férias? — perguntou a esposa com incredulidade.
— Estou sim, querida, desde o dia trinta e um, mas falando since-ramente, necessito mesmo ir até empresa, só pode ser pela parte da manhã e têm de ser ainda hoje — em partes ele dizia a verdade, mas também havia uma intençãozinha escondida por detrás das suas pala-vras. — Preciso entregar os acertos finais dos trabalhos realizados, você sabe muito bem disso. Assim como as contas da obra da ponte para a diretoria da empresa. Trabalho que fiquei de terminar aqui em casa para poder entrar de férias.
— Ah! Fica amor, anda querido, fica só mais um pouquinho, vem coração, fica. . . — a insistência foi tanta que o Dr. João não conse-guindo resistir aos apelos fervorosos da esposa, sem jeito, acabou no-vamente deitando-se junto a ela.
— Amor. . . — discorreu Rebeca entre chios, abraçando-o com afeto.
— O que foi agora? — fez-lhe a pergunta de fisionomia carrancuda devido à interferência dela nos assuntos profissionais deitados na ca-ma entre seus braços.
— Gostaria tanto de tentar ter outra menina!
— Mas que porra! — disse de arroubo pela surpresa das palavras da esposa. — Desculpe Rebeca, eu não quis dizer-lhe exatamente isso, o palavrão foi sem querer, seria ótimo ter mais um filho.
— Um filho. . . não. . . — retrucou Rebeca, intencionalmente —, uma filha!
— Está bem, está bem! Não vamos brigar agora por causa do sexo da criança. Que seja o que Deus quiser, chega mais para cá, sabe que você ainda é bem gostosa!
— Está me chamando de velha!
— De jeito algum!
E a calou com um ardente beijo.
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— Então Dr. João, como foi seu Ano-Novo? — indagou um dos cole-gas do escritório de engenharia. Um bonachão com as pernas em cima da escrivaninha de trabalho enquanto tentava puxar um cigarro do maço incrivelmente amarrotado.
Sentara-se em cima dele sem querer.
— Para mim foi ótimo, sim, sim, tive um bom início de século. E você como passou as festas de fim-de-ano?
Fez-lhe a pergunta sem fitá-lo nos olhos enquanto remexia nas ga-vetas da sua mesa de trabalho para retirar alguns pertences seus, fe-chando-a a chave.
— Perfeito amigão! Mais do que perfeito, arrumei duas donzelas pansexuais para lá de. . .
Não terminara a frase, mas o Dr. João entendera muito bem o que quis dizer o mal-acabado amigo. Sabia que era mentira, era só panto-mima. Quem em sã consciência se fosse mulher direita iria querer sair com alguém como ele. Baixinho, barrigudo, um tanto corcunda, panta-façudo para lá de safado e feio de dar medo e dó ao mesmo tempo e, ainda por cima, com apenas um tufo de cabelo plantado na frente da cabeça.
— Que legal né, mas você não as engravidou? Engravidou? — to-cava no assunto no ridículo.
O Dr. João tirava o sarro da cara dele. O amigo que não entendera a jogada continuou com sua arenga.
— Eu não engravidei ninguém — respondeu aparvalhado, continu-ava um tanto sem jeito, pois não conseguia acender o cigarro torto e enrugado, contudo, mesmo assim fez-lhe outra pergunta: — escuta aqui amigão, você não está de férias? E essas flores, para quem são?
— Com certeza meu amigo, nestas flores de jeito nenhum porás as mãos, pois não são para ti! — Respondeu irado por papo tão imperti-nente. — Estou em férias sim, porém tenho que deixar em dia algumas coisas pendentes para que a contabilidade da construtora possa dar fim às contas dos últimos gastos da ponte sobre o rio dos Tucumãs. Quero dizer, as contas do último lance da ponte e as do final da obra.
Soltando uma bela baforada de fumaça para o ar, finalmente o sa-cana do amigo conseguira acender o seu cigarro, o folgado bonachão o cumprimentou de bocarra escancarada, abrindo seus braços balofos fingindo dar-lhe um abraço.
— Meus parabéns camaradinha, você só não conseguiu terminar aquela complicada obra, como a entregou prontinha bem antes do prazo previsto. Muito bom, meus parabéns mais uma vez. E depois, o que fará?
— Depois de o que?
— Ora meu caro e nobre amigo — exagerou bastante ao dizer caro e nobre amigo. — Depois de terminar o que aqui você veio fazer já em férias — observou o bonachão levantando-se de onde estava sentado, pois havia se sentado de novo depois da imitação do fingido abraço.
— Ah, sim, desculpe por não ter entendido a pergunta, estava en-tretido com a papelada. Vou comprar duas passagens para aquela ci-dade que você tanto tem me empanturrado os ouvidos o ano todo.
— Camarada, não estou acreditando nisso! — obtemperou fingindo entusiasmo o amigo panaca. — Sinceramente eu não acredito que vo-cê está se preparando para ir para lá?
— Vou sim, serão vinte e tantos dias de um sossego total, Sol, mar, comidas diferentes das nossas e muito ar puro, não é que aqui não. . .
— E de sexo! De muito e muito. . . sexo! — disse o amigo panaca esfuziante interrompendo a explicação do Dr. João à malcriada.
— Sexo sim, muito sexo, mas com só com a minha esposa, seu canastrão. Não com as rameiras que você costuma alugar com fre-quência. E isto é para o seu governo, entendeu! Diz-me uma coisinha, a senhorita Ester já se encontra na empresa? — perquiriu atrapalhado pela excessiva pressa, tentando desviar-se da conversa fiada do chatís-simo colega, nervoso as pampas.
— Chegou sim, ela está na sua sala. Muito cuidado garotão — dis-se rindo gostosamente, para em seguida —, cuidado com essa potran-ca, ela está a fim de te agarrar, está caidinha por você e já faz algum tempinho.
— Sai para lá, seu mal-acabado. Vê se manca, está bem, sou um homem casado e de respeito.
— Ah, tá, me engana que eu gosto — alegrara-se ao lembra-se do passado na casa do amigo à sua frente —, chupa aqui o meu, cara, como se eu não te conhecesse tão bem assim, desde quando mesmo? Hã, sim, sim, desde os nossos quinze aninhos ou coisa que o valha, lá na fazenda com aquelas lindas raparigas, as filhas gostosas dos empre-gados e peões do seu pai. Já se esqueceu disso? Ah, que saudades meu amigo, quanta e quanta saudade. . . Oh, tempo “bão” quando se é adolescente!
— Vê se me esquece, palhaço — respondeu o Dr. João com rancor e, virando-lhe as costas dirigiu-se rapidamente na direção da porta da sala da secretária Ester.
Pum, pum, pum!
Bateu com delicadeza na porta. . .
— Pode entrar Dr. João, a porta não está trancada, já ouvi a sua voz aí fora desde aqui.
— Feliz Ano-Novo senhorita Ester.
— Pro senhor também, Dr. João, deixe a senhorita para lá, pode me chamar apenas de Ester, mas. . . e então, porque a visita, e as suas férias? — quis saber levantando-se rapidinho d’onde estava sentada.
A seguir, depois de desligar o telefone que estava na sua mão, foi para junto dele encarando-o alegremente, porém com uma vontade louca de abraçá-lo e de beijá-lo naquela hora ali mesmo na sala.
— Estou sim, entretanto tive que vir para trazer os relatórios finais e apresentar as planilhas da mão de obra, a dos materiais usados no final da construção da ponte e os detalhes financeiros dos dois últimos meses. Assim como os organogramas, os fluxogramas e de tudo o mais disposto no projeto, além do custo final da obra e etc., e etc., — apro-ximando-se um pouco mais para perto dela, disse-lhe um tanto sem jeito:
— Ah, senhorita Ester, estava me esquecendo, as flores e os bom-bons são para você: feliz Ano Novo — disse e os mostrou. Estavam escondidos em uma de suas mãos por detrás das costas. — Ah, sim aqui está a relação dos nomes dos homens e mulheres que trabalharam direta ou indiretamente por três meses até o encerramento da constru-ção da ponte. O canteiro de obras e as acomodações dos peões já de-vem estar sendo desmontados. Logo mais os trabalhadores começarão a vir para receber o último mês de salário deles — enquanto descrevia a questão entregava-lhe os papéis com a outra mão.
— Elas são lindas, fico agradecida por tanta gentileza, muito obri-gada! E pelos bombons, também. . . — observou na maior candura.
— Cultivo essas flores no meu jardim climatizado. Ou melhor, na minha estufa de plantas exóticas — contara-lhe de o tal cultivo das flores um tanto arredio; talvez sem jeito.
Envergonhado.
— Excelente Dr. João, fiquei contentíssima — respondeu Ester a sorriso franco. — Quero dar-lhe os meus cincerros parabéns pelo tér-mino da construção da ponte, mas também agradeço novamente pelas flores, são realmente muito bonitas. Vou pedir para que alguém me arranje um vaso com água para que durem mais tempo. Depois provi-denciarei o relatório para entrega-lo à diretoria, mas saiba de antemão de que todos estão satisfeitíssimos com o seu belo trabalho de enge-nharia, e com sua pessoa também, é claro, mas principalmente pela sua extraordinária dedicação a corporação — arremetendo em seguida: — pois, e então, Dr. João? — perguntou encarando-o com sua delica-da carinha de criança mimada.
Ela esperava que o Dr. João lhe dissesse alguma coisa a mais, não queria ouvir somente assuntos referentes ao trabalho, não mesmo, ela queria que ele lhe desse um motivo, algum alento: de que promulgasse algumas palavras carinhosas ou atinentes a isso; queria tão-somente uma deixa para que ela pudesse atirar-se nos seus braços. Permanecia em pé quase tocando o peito do homem à sua frente com as pontas dos seus seios àquela altura pululando freneticamente de desejos para ela proibidos, tremendo ridiculamente os lábios. Ela o amava em si-lêncio desde sua chegada a empresa. Entretanto, sabedor era ele de que não poderia dar-lhe o menor fio de esperança. Não podia e não devia, a final de contas ele era casado, e muito bem casado por sinal, além disso, ele amava a sua mulher e os seus filhos. Fazendo-se de desentendido, despediu-se dela e saiu deixando-a choramingando sem reparar no olhar de ódio a ele oferecido ao retirar-se da sala.
Por suas costas.
— Tchau companheiros, até mais ver, trabalhem com bastante afinco.
— Ora vai-te catar seu desalmado filho da mãe — reclamou o ami-go mal-acabado.
— Até mais ver, e boa viagem de férias — disseram enciumados todos os presentes no escritório.
Ao sair, o Dr. João atravessou a rua para dirigir-se a agência de viagens da cidade; a única que havia. Enquanto isso, no escritório, depois de ele desaparecer da frente da Ester, a apaixonada senhorita saia da sala enxugando as lágrimas com o seu lencinho de seda florido.
— E então, dona Ester. . .? — perguntou o bonachão com um sor-riso alegre mostrando sua ridícula dentadura amarelada devido aos tantos cigarros fumados sem nenhuma pena no olhar.
Ela nunca havia se engraçado com ele, mas ele sim, aquele mulhe-rengo incorrigível a desejou ardentemente desde seu primeiro dia no emprego.
— Ele não me ama. . . — reclamou esfregando os olhos com o seu lencinho florido empapado de lágrimas, remoendo-se de ciúmes da esposa do Dr. João. — Ele não gosta nem um pouquinho de mim! Faço o quê da minha compadecida vida?
Ester queixava-se aos prantos deixando o pessoal do escritório um tanto sem jeito pela maneira exacerbada de revelar o seu amor pelo Dr. João de forma tão aberta e descarada diante dos colegas de traba-lho menos para um deles:
Para o tal relaxado e mal-acabado gozador.
— Vamos lá “chula”, para com isso, ele é casado, arruma outro amor para lhe aporrinhar a vida. Alguém que te ame tanto ou mais do que eu!
— Cala essa boca infeliz pervertido, deixa de ser asqueroso. Você não entende o coração das mulheres.
— Escuta aqui belezoca. . . — explodiu o safado destilando ódio por todos os poros, para em seguida tirar um belo sarro da cara da Es-ter —, do coração de mulher eu não entendo nada não, mas. . . hum, de mulheres. . . — ao arremessar-lhe uma risada larga e sem graça, contudo debochadora, continuou com o sarcasmo: — e quer saber mais do que, “coisinha” linda do papai?
Ainda chorando a nervosismo ímpar, Ester respondeu de forma irada ao mal-acabado companheiro de trabalho.
— Eu já disse para você fechar essa boca pervertida e suja e, vê se não me diz mais nada! — contudo, o injuriado mal-acabado todo cheio de graças não parou por aí.
— Ele vai passar vinte e tantos dias fodendo sua linda mulherzinha na praia, no mar, na areia, no meio mato, no quarto do hotel, em todos os lugares que desejarem, e você, queridinha, o seu consolo vai ser de outro modo, amoreco! Quem sabe até mesmo chupando. . . — o bo-nachão gostaria de ter-lhe dito “chupando” o meu pau, mas não disse, havia muita gente em torno dele, contudo, achou por bem continuar o fuxico sem muita apelação sexualista. A donzela estava à beira do his-terismo —, chupando os teus próprios dedos, sua boboca! — de sorri-so sarcástico e malicioso, enfiou três dos seus dedos na boca e os chu-pou demoradamente para que ela bem os visse.
— Paspalhão, vê se cala essa tua boca e para de dizer idiotices. Eu te odeio, eu te odeio. . . eu quero mais e que ele morra e vá para o mais desprezível dos infernos! E, de que. . . você também vá junto com ele, seu feioso! Seu, seu, seu idiota bisbilhoteiro mais do que des-prezível. Seu, seu horroroso!
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— Querida cheguei. Alô! Já estou em casa. Tem alguém por aqui?
— Oi papai — disse o pirralho do Bartolomeu ao vê-lo, para em seguida fixar os olhos no seu trenzinho de madeira, brinquedo da épo-ca que fora um dos presentes de Natal. O pirralho estava sentado no chão entre a poltrona e a enorme mesa de mogno da sala olhando seus próprios movimentos no grande espelho da parede entre os ambientes —, você trouxe algum presente pra mim?
— Não meu filho o Natal já passou — tentou explicar-lhe o pai com bastante calma enquanto punha o chapéu e a sobreveste no cabi-de de madeira que se encontrava à esquerda da porta do corredor de entrada, acomodando-o com muito cuidado para que não ficasse amassado.
— Mas a Marília ganhou outro presente além do presente de Natal hoje de manhã — falou soluçando para em seguida abrir um berreiro para lá de desbocado.
— Mas hoje é o aniversário dela, filho — e continuou tentando explicar-lhe a situação:
Pegando-o no colo afagou-o carinhosamente.
— Eu quero, eu quero, eu quero um presente também!
— Mas você como ela mesma, ganhou muitos presentes no Natal.
— Não, não e não! Eu quero outro! Eu quero um grande caminhão de bombeiros vermelho!
Como o pirralho não parava mais de chorar e de espernear:
— Me dá ele aqui — disse a mãe ao sair de dentro da cozinha de-pois de ouvir o esgoelamento do pimpolho.
— Quando voltarmos da viagem eu trago um presente bem bonito para você — assentiu o pai.
— Que viagem?
Perguntou a mãe confusa com a notícia para ela mais do que sur-preendente.
— É papai que viagem?
Explodiu a filha Marília que também estava na sala entretida lendo um livro; contentara-se com a revelação.
— Calma gente, calma que eu já esclareço tudo.
— Eu quero o meu caminhão de bombeiros vermelho agora, eu quero, buááá. . .!!! Buááá!!! . . . — Bartolomeu não parava de chorar e de espernear no colo da mãe.
— Venham comigo, vamos sentar-nos ali na poltrona onde Marília está lendo o seu livro — disse o pai para a esposa ainda com o pirralho berrando no seu colo, para em seguida: — Sebaaastiaaaaana!!! . . . — berrou o pai para a ama de leite, exagerando um pouco na voz pelo nervosismo que o Bartolomeu consegui deixa-lo.
— Sim patrão.
— Leve agora mesmo este moleque chorão daqui.
— Para onde?
— Ora Sebastiana, tem dó de mim! Para qualquer lugar contanto que ele se cale!
— Vem cá meu anjinho — disse e o pegou no colo. Daí, como por encanto, na mesma hora o moleque parou de chorar.
— Viu só, pai — reclamou à irmã. — Esse moleque chato só faz pirraça com a gente. Viu o safadinho que ele é. Com ela não chora e não faz birra.
— Querida me escuta, não fica chateada com ele não, você era exatamente assim quando pequenininha — tentou explicar o Dr. João.
— Mas, e a viagem? — insistiu a esposa quando acomodada junto a ele torcendo as mãos nervosamente ao encarara-lo com seriedade.
— Ah. . . sim, a viagem, desculpe amor, tinha me esquecido desse assunto — respondeu ele com euforia —, aonde é que estão nossas passagens, mesmo?
O sacana do doutor João fingia procura-las por todos os bolsos do paletó insistindo em não saber onde as tinha colocado. Tateava um pouco aqui um pouco ali fazendo o maior suspense; um verdadeiro teatro amadorístico.
— Ah, que bom, aqui estão, achei-as — comentou, tirando-as do bolso interno do paletó; como se ele não soubesse de antemão onde elas estavam guardadas.
— Papai fala logo e deixa de tanta onda. Fala papai, aonde é que nós vamos?
— Nós não, você fica aqui em casa junto com o teu irmão e a Se-bastiana.
— Ah, mas que chato! — reclamou encolhendo o corpo na hora, afundando-se na poltrona amarrotando algumas páginas do livro que estava lendo.
— Escuta aqui, Marília. . .
— Já sei o que você vai dizer papai. . . — comentou, interrompen-do o que ele tinha para falar —, você vai dizer de que nós já não so-mos tão pequenos e, de que, você e a mamãe não saem sozinhos desde a vossa Lua-de-mel, e de que, nós já somos bem espertinhos para sa-bermos nos cuidar. . . — Atravancando por momentos a fala para me-lhor poder respirar, continuou: — não é isso mesmo, papai?
— Puxa vida menina, você a cada dia que passa me surpreende mais e mais. Muito espertinha a senhorita, né!
— Eu não sou mais uma menininha, papai — contestou sem se incomodar com a carranca azeda do pai —, eu já estou crescidinha, uma moça, não está vendo, não! — levantando-se às pressas da pol-trona girou o corpo com candura. Queria que o pai reparasse que ela não era mais uma criancinha.
— Desculpe filha, mas, mas é que, para nós os pais, vocês sempre serão as nossas pequeninas crianças mimadas e travessas — comenta-ra carregando a palavra, “travessas”.
A mãe ouvia tudo atentíssima esperando que o Dr. João lhe dirigis-se a palavra para que então, pudesse se manifestar.
— Querida nós vamos ver o mar — disse finalmente entusiasmado, fitando com firmeza a esposa nos olhos, a essa altura esbugalhados pela surpreendente revelação.
— O oceano! Como, isso se ele fica tão longe daqui — observou a matriarca um tanto confusa.
— Na cidade de Águas Claras, e nós iremos de trem.
— Mas é muito longe, fica do outro lado da cordilheira. De trem são três dias ou mais.
— Dois dias e um pouco mais, amor; vá lá, três — disse cheio de contentamento —, é uma beleza de cidade simples pacata e hospitalei-ra, e fica ao lado do majestoso Oceano Pacífico.
— Porque nós não vamos com o nosso novo automóvel? — per-guntou ela com humildade. — Nós o comparamos nos últimos dias de dezembro, um modelo 1900 de seis lugares de capota dobrável de cou-ro e bagageiro exageradamente grande.
— De automóvel não dá querida, são seis dias ou mais para ir e mais uns tantos para voltar, e eu só tenho vinte e oito dias de férias. Não aproveitaríamos quase nada da viagem, além dos perigos da es-trada, mas, principalmente pelo frio intenso que teríamos de suportar ao atravessarmos a cordilheira no alto de tudo. De trem é mais seguro, confortável e, sabe como é, né. O sossego da viagem propicia um relax reconfortante e saudável. Que por sinal, são os atrativos primordiais para um bom relacionamento.
— Safadinho o senhor, né, você pensou mesmo em tudo, acertei?
O Dr. João, ao oferecer-lhe uma cara bem safadinha calou-se.
— Quase um mês, papai, nós vamos ficar sozinhos por vinte e tan-tos dias? — discursou a filha mostrando-se chateada pela surpreenden-te viagem dos pais.
— Parece que sim — respondeu a mãe de imediato, já se imagina-va de maiô na praia ao calor do Sol.
— Para quando, papai?
— Para amanhã às seis horas.
— Mas assim tão rápido — perguntou Rebeca, surpresa.
— Sim, não podemos perder nem mais um dia. Partiremos no Ex-presso 333 que zune da cidade pela parte da manhã, e será bem cedo. Portanto Marília vá com a sua mãe ajudá-la a preparar as malas.
Naquela noite ninguém da família Gomes pregou um olho. Os dois filhos ficaram rondando em volta da cama do casal quase que por toda a noite. Perguntas e mais perguntas eram disparadas ao pai. Pergunta-ram de como era o mar. Se era verdade de que a água era salgada e o que havia na praia, se a areia era fina. Se havia casas e se morava gen-te, se dava para entrar na água.
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— Papai eu quero subir na máquina — berrava Bartolomeu desespe-rado esperneando furiosamente feito cachorro bravo.
— Fica quieto menino — clamou a mãe assustada pelos gritos alu-cinados do rebento —, a locomotiva não é lugar de crianças. Só quem guia o trem é que pode subir nela.
— Eu quero, eu quero, eu quero ir pra lá mamãe!
— Posso levar a sua bagagem para a cabine, agora, madama? — ofereceu seus préstimos um idoso maleiro bastante apresentável.
— Sim, pode, aqui está o ticket de embarque com o número da cabine.
— Pois não madama, são apenas estas as malas?
— Sim, sim, são somente estas duas aqui ao meu lado. De a baga-gem de mão nós mesmos nos encarregamos.
— Pois não madama.
— Sebastiana, tome conta das crianças, e direitinho, hein! Não as deixe abusar muito de você, mas principalmente não as mime demais.
— Não patroa, eu sei lidar com elas do meu jeito. Tenho as minhas artimanhas. A patroa já tá sabendo que é por isso que eles me obede-cem, e direitinho.
— Sei que sabe Sebastiana, sei que você sabe — respondeu Rebeca chateada por ter que deixar os filhos sozinhos por tantos dias. Mas ao mesmo tempo. . .
— Todos para dentro, o trem já vai partir — clamava o cabineiro antes de assoprar seu estriduloso apito inúmeras e inúmeras vezes para o embarque dos passageiros.
Ao fim e ao cabo quando o apito já em silêncio ouviu-se então o rugido grave e alto da caldeira da máquina a vapor ao deixa-lo escapar pela chaminé a grande bulha. Conforme a pressão da caldeira ia au-mentando, as rodas com seus gigantescos eixos nas rodas de válvulas de escape fumacentas, iam se movendo e, por conseguinte, aos pou-cos, levava os numerosos vagões de carga e passageiros ao arrasto.
— Tchau papai, tchau mamãe, voltem logo — os berros dos filhos mal podiam ser ouvidos no primeiro vagão de passageiros tamanho era o ruído do vapor expelido pela chaminé e pelas válvulas de escape por debaixo da locomotiva banhando as pessoas da estação d’um vapor fervente.
— Tchau meus filhos, sejam bonzinhos e tenham muito juízo. Obedeçam e respeitem a Sebastiana — manifestava-se o pai desde dentro do vagão leito, com a metade do corpo para fora janela.
Na frente da locomotiva de um vermelho vibrante dentro do círcu-lo em alto-relevo dourado, encontrava-se o número daquela máquina; 333, com duas bandeirolas com as cores dos países que atravessaria durante a viagem, uma em cada lateral deixava a locomotiva mais vis-tosa ainda. Todos os vagões eram de madeira. O Expresso 333 come-çava a perseguir o seu caminho ganhando velocidade aos poucos até desaparecer da vista dos que ficaram gritando, chorando ou acenando em pé na plataforma da estação.
— Pôr fim sozinhos amor!
Disse o Dr. João a largos sorrisos, sendo retribuído de pronto com um abraço caloroso e um beijo apaixonado, ardente e duradouro.
Um pouco mais tarde:
— Ei, benzinho, você está com fome? Quer comer alguma coisa? — Quis a esposa saber depois de ajeitados confortavelmente na cabi-ne leito na hora do almoço.
— Sim, quero comer, você! — respondeu ele esfregando as mãos de satisfação de olhos arregalados.
— Safado!
— Eu, safado? De quem foi à ideia do outro filho?
— Filha!
— Vá lá, vá lá, que assim seja!
A primeira noite da viagem passou despercebida para eles cheios de amor e felicidade. Na manhã seguinte bem cedo rumaram para o vagão restaurante, saborearam um belo café da manhã, conversaram bastante com um casal que estava em outra mesa frente a eles e retornaram para a cabine leito, permanecendo por lá até a noitinha, quando então, saíram novamente para cear. De mãos dadas repetiram o trajeto feito na parte da manhã. Jantaram, ouviram música e dançaram muito. De-pois de um café forte e alguns cálices de licores de cacau e de menta, foram deitar-se.
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Um dia e mais um pouco durante a noite:
— Querida, amanhã vamos nos levantar bem cedo para ver desde o alto da cordilheira o oceano e apreciar a decida da montanha do trem pelas cremalheiras. É o último dia de nossa viagem.
— Cremalheira, o que é uma cremalheira? — tentou descobrir o que aquele nome fosse, sobressaltada; alguma coisa de tenebroso sen-tiu na palavra “cremalheira”, veio-lhe à cabeça como um aviso.
Como uma bombástica premonição.
— São ganchos presos às correntes e ao trem, que servem para ajuda-lo descer ou a subir quando o declive da linha férrea é muito íngreme. Que é o nosso caso. A máquina sozinha por Si só não teria nenhuma condição de desacelerar ou, para na subida, força suficiente para tal façanha, entendeu?
— Não! — disse e, rapidamente emendou: — É seguro?
— E como, amor! Não precisa temer nada.
— Não sei não, mas vou confiar em você. Vamos dormir por que já é bastante tarde.
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Na frente da composição, na locomotiva propriamente dita, tudo ia mal deixando o maquinista e o foguista preocupados.
— Alfredo!
— Fala Jô. . . desembucha.
— Você está de ouvidos nisso?
— Ouvidos no quê, camarada?
— Presta atenção, são estalos, muito, mas muito fortes. . . eles começaram não faz nem cinco minutos.
A sombria conversa carregada de medo dava-se entre o maquinista e o foguista quase na metade da inclinada descida da cordilheira.
— Não estou escutando nadica de nada — respondeu o foguista, incrédulo.
— Caralho, presta mais atenção seu bosta! Não estou gostando nada disso. Parece que as correntes ou os ganchos que nos prendem a cremalheira estão se soltando ou se rompendo.
— Para com isso porque que estás me deixando com medo — res-pondeu o foguista cabreiro com a insistência do colega.
Todavia ele tinha razão, os ganchos e as correntes não estavam aguentando o excesso de peso da carga posta nos dez vagões a eles destinados.
— Aciona os freios de toda a composição — ordenou Jô ao Alfre-do.
— Estou fazendo isso já faz um tempão, mas não está adiantando nada. Há muito peso nos vagões de carga lá traz.
— Caralho! — proferiu o palavrão com afoiteza o maquinista. — Quem foi o idiota que fez isso?
— Fez o quê?
— Abarrotar os vagões com tanta carga!
— Agora isso não interessa mais. Temos que fazer alguma coisa se não vamos todos morrer.
— Eu posso colocar mais carvão na caldeira para produzir mais pressão a fim de inverter o sentido das rodas — disse o foguista.
— Acho isso uma besteira — respondeu Alfredo, o maquinista —, a pressão já está no máximo, veja! — indicando o manômetro a sua frente com a mão desocupada. — É de bom grado pensarmos em ou-tra coisa, é bem rápido!
— Tenta reverter ao sentido contrário do giro das rodas quando na sua instantânea inércia ao travar todos os freios dos vagões de uma só vez. — disse quem houvera imaginado aquela desbaratada besteira.
— Para fazer isso, antes tenho que soltar os freios.
— Que merda! Então solta os freios, não estão adiantando nada mesmo! Apenas estão desgastando o metal das rodas:
— As correntes, as correntes quebraram! As correntes. . . as corren-tes quebraram! . . . — os homens da locomotiva, os responsáveis pela composição gritavam apavorados olhando-se descrentes pelo que es-tava por acontecer. — Estamos despencando serra abaixo, meu Deus! Socorro! Socooorro!!! . . . vamos morrer, nós vamos morrer!!! . . . os vagões estão se desengatando um por um. . . todos. . .todos.!!! . . .
Fim da linha para o Expresso 333.
Tudo acabado.
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— Querida acorda, nós já estamos chegando à estação de Águas Cla-ras.
— Nossa, amor, que pesadelo mais horrível eu tive esta noite — comentou Rebeca apavorada, e continuou com os costumeiros boche-chos da higiene matinal depois de ter escovado seus dentes —, sonhei que o trem havia descarrilado na descida da serra.
— Engraçado, eu também sonhei algo parecido com isso! Que coi-sa mais gozada, não achas?
— Você também sonhou com o descarrilamento?
— Sim, sim, e foi um sonho muito estranho. Foi de arrepiar mes-mo. Morreu todo mundo que estava no trem!
— Tem certeza disso? — perguntou Rebeca tremendo dos pés à cabeça segurando com força as mãos do marido de olhar vítreo fixo nos olhos.
Fora pega de surpresa.
— Tenho sim, poso afirmar com sinceridade de que também sonhei isso!
— Será que foi aquela comida gordurosa que ingerimos ontem à noite que nos fez ter esses pesadelos?
— Pode até ser, é bem possível de que sim! Ou então foram os licores que tomamos em excesso — respondeu o Dr. João sem ter ple-na consciência no que dizia.
— Dormimos tanto que nem vimos o mar desde o alto da serra. Bem, isto agora já é passado, vamos arrumar nossas malas e preparar-nos para desembarcar. Estamos quase chegando à estação de Águas Claras.
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— Muito bom-dia senhora, senhor? — o gerente do hotel os cumpri-mentou educadamente.
— Dr. João Gomes e esposa, a reserva foi feita e paga no dia dois.
— Por certo senhor; quero dizer. . . Dr. Gomes — observou o ge-rente enquanto procurava a papeleta do comprovante de pagamento da reserva no arquivo giratório no canto do balcão de atendimento.
— Ah, aqui está ela! Quarto quinhentos e cinco: maleiro, por favor, acompanhe a senhora e o cavalheiro até o quarto: aqui estão as cha-ves!
— Senhor, o quarto fica de frente para o mar? — Rebeca quis sa-ber.
— Sim senhora Gomes. Não só dá vista para a orla marítima, como também para quase toda a cidade de Águas Claras. A suíte executiva por se encontrar no último andar é a que apresenta a melhor vista de todas. Tenham uma ótima estada aqui em Águas Claras, nós do Hotel Del Mar, desejamos-lhes isso.
— Agradecemos a sua gentileza e total atenção — respondeu Re-beca feliz da vida.
Os dias passaram voando, Rebeca de tanto tomar sol, já estava na cor morena. Estava irradiando beleza e jovialidade. Parecia que reju-venescera anos em poucos dias. Mas o Dr. João não ficava para trás, também parecia mais jovem e bem mais disposto.
— Que pena amor que amanhã será nosso último dia nesta bonita cidade praiana. Gostei tanto daqui que até poderia ficar por esta cida-de para sempre: por toda a vida.
Disse cheia de zelo.
— Sozinha?
— Não, não, também junto com você, viu só, seu bobo!
— E as crianças?
— Teríamos de ir buscá-las, é claro — comentou afoita.
— Do que foi que mais gostou desta cidadezinha? — perguntou o marido com bisbilhotice.
— De tudo, de tudo mesmo querido. Dos passeios de barco até aquela ilha maravilhosa, da vibrante vida noturna, das músicas alegres, dos deliciosos pratos tradicionais, da verde mata e dos altos morros de rochas branquinhas, da água de coco, das palmeiras gigantes. Ah! Isto é que é vida! Que delícia de comidas e que peixes maravilhosos. Os peixes que há nos rios onde nós moramos não são tão gostosos como os da água salgada: e os frutos do mar, oh, meu amor, nem me pergun-te mais nada! Gostei também das roupas que usam aqui, são tão leves e coloridas. E do Sol! E do calor! E do mar! E do amor que você me proporcionou! Gostei de tudo, de tudo, de tudo mesmo!
— Eu também — concordou o marido.
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— Amor, me escuta. . . — comentou Rebeca já na estação da sua ci-dade, assombrada por tudo ao desembarcarem do trem.
— O que foi querida?
— Percebes algo de estranho aqui na estação?
— Olhando bem, digo-te de que sim. Engraçado, tudo está tão diferente, não o lugar as coisas nem a estação em Si; são as pessoas. Estou vendo-as como se existisse um finíssimo véu transparente ante os meus olhos, como se minha visão começasse a sofrer de catarata ou de doença parecida, e você?
— Eu também as vejo assim! Onde estão as crianças? E a Sebasti-ana? Estou ficando com medo! A gente cumprimenta as pessoas e elas não nos respondem. Fingem que não nos veem: porque será? — Veja ali na nossa frente — disse Rebeca apontando com o dedo para fora da estação onde havia um enorme bebedouro d’água para servir os animais das famílias ou de os prestadores de serviço da estação.
— É a carroça do Dr. Álvaro, nosso dentista — exclamou o Dr. João, abestalhado —, a onde será que ele está que não o estou vendo.
— Nem eu — respondeu Rebeca, assustada.
— Vamos tomá-la emprestada para ir para casa.
— Ele vai pensar que foi roubada!
— Que pense depois a devolvemos e pedimos as devidas descul-pas.
— Vamos, então!
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— Mamãe, mamãe, olhe, veja, veja, uma carroça fantasma em dispa-rada lá no alto da estrada, para onde ela vai sozinha?
Disse um guri meio estrábico à mãe ao vê-la voando em louca de-sembestada pela estrada de terra no alto do morro sem ninguém a guiá-la, deixando enormes rastros de nuvens de poeira de um verme-lho-fogo na sua passagem.
— Para de dizer essas bobagens menino, fantasmas nunca existi-ram. Pode ser que os cavalos tenham se assustado por um motivo qualquer e saíram em disparada. O dono irá buscá-la depois, não se preocupe. Vamos rápido para a escola fazer a tua matrícula, nós já estamos bastante atrasados. Em marcha seu guri magricelo, seu esper-tinho, acelerando o passo, vamos rápido. . . vamos. . . andando. . .
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— Pronto, chegamos querida, desce da carroça. Cuidado com o de-grau, eu te ajudo, segura a minha mão; assim mesmo.
— Crianças, crianças! Sebastiana. . . — Rebeca chamava-as apavo-rada por não conseguir notar vivalma na casa nem ao seu redor. — A onde está todo mundo que não os vejo, porque não nos respondem? — a matriarca apregoava tudo ao marido, confusa. — Marília, Barto-lomeu! Sebastiana. . . — continuava chamando-os, agora aos gritos. — Meu Deus! O que será que aconteceu com eles?
— Fica calma querida, não aconteceu nada com eles, sossega um pouco. Só estão por aí brincando.
— Mas é a Sebastiana e os outros empregados, porque não vem ajudar-nos a descarregar a bagagem e, porque na estação também nin-guém nos ajudou?
— Calma doçura, ela deve ter ido às compras na cidade e os outros empregados estão nos seus afazeres diários na estufa das frutas ou nas hortas, vamos entrar, vem, isso mesmo, devagar, cuidado com o de-grau. Vou preparar-te um copo de água com açúcar para que te acal-mes um pouco.
O Dr. João foi até a cozinha para preparar a solução açucarada e na volta viu Rebeca na sala ao lado da mesa petrificada e pálida bem pior do que quando desceram da carroça e entraram na casa.
— O que foi Rebeca?
Assustou-se.
— Vem até aqui amor, veja isto — disse de mãos trêmulas, apon-tando para alguns jornais que estavam jogados ao relaxo em cima da enorme mesa de mogno da sala de jantar.
— “O que será que ela viu agora? ”, ia perguntando-se enquanto se dirigia pensativo para perto da esposa levando o copo com a água açu-carada.
— Leia, leia as manchetes, leia! Leeeia!!! . . . — chocada falando alto, apontava para vários jornais espalhados desordenadamente por cima da mesa.
. . . não escapou ninguém com vida no Expresso 333 que se dirigia para a cidade de Águas Claras. . .
E noutra manchete:
. . . não escapou ninguém dos quatrocentos e oitenta e três passageiros do Expresso 333, incluindo os vinte e oito empregados dos serviços gerais da ferro-via. Todos morreram em um terrível desastre na descida da serra de. . .
E mais uma:
. . . A cremalheira não aguenta o peso do comboio e trem despenca do alto da serra. Dão-nos conta de que não houve nenhum sobrevivente. . .
— Então tudo aquilo que dissemos um ao outro àquela manhã não foi um sonho! Nós, nós. . . — Rebeca ao tentar expressar-se foi subi-tamente interrompida pelo marido.
— Nós, nós. . . nós estamos mortos! — expôs ele, também aturdi-do com o fato, àquela hora, mais do que indiscutível.
— Não, não, não!!! . . .
Rebeca desesperada e aos berros, atirou-se nos braços do marido sem parar de martelar seu peito a punhos cerrados. Ele sem forças para reagir, não tendo alternativa, aguentava calado o aterrador desa-bafo da derruída esposa. Por fim, ela aos poucos ia se acalmando. En-tão, raciocinando melhor, Rebeca tentou atinar.
— Se nós estamos mortos, o que estamos fazendo aqui? E por quê?
— Eu sei tanto quanto você Rebeca! Também não estou enten-dendo nada do que está acontecendo conosco.
— E todos aqueles dias felizes que nós passamos na praia; será que os passamos, mesmo? — indagou a esposa falando rápido, apressada ao extremo.
— Não sei meu amor, juro de que também não sei explicar nada disso!
Comentou exasperado o Dr. João.
De repente do lado de fora da casa uma cantoria que mais se pare-cia à reza de um coro bem afinado ouvia-se alto e claro. Rebeca saiu correndo gritando e clamando por atenção num desengonço só.
Ele também:
Ambos agitavam os braços e pulavam para que, quem por lá passa-va os vissem e soubessem de que eles estavam na soleira da porta do casarão da família agitando os braços aos gritos.
— Hei, hei, nós estamos aqui, aqui! . . . — berrava Rebeca ao de-sespero. . .
Nada, não os viram.
O cortejo triste e lento seguia o seu caminho atrás do coche fúne-bre. E nele, dois caixões adornados por miríade de lindas flores repou-savam inertes sobre eles.
— Querida, vamos segui-los — disse o esposo.
— Vamos, vamos. . . — respondeu Rebeca apressada, demons-trando exagerada aflição.
O séquito dirigia-se até a morada final, tal qual como quando saíra da casa funerária, lento e triste, entoando cânticos de lamúria até o pequeno cemitério da cidade. E ali estava o padre, e estavam os ami-gos do casal que não tinham acompanhado o cortejo fúnebre. E ali estavam todos os colegas de trabalho do Dr. João, e ali estava Ester, a que quisera dias antes vê-lo morto, arrependida, consumindo-se em arrependimentos por ter desejado tamanha infâmia.
A carruagem com duas parelhas de corcéis negros de cabeças ador-nadas por tufos de penas vermelhas, pretas e brancas, parou perto do jazigo da família e, as pessoas se ajeitaram por lá como puderam. Os funcionários do cemitério da municipalidade apanharam as corbelhas de flores com muito jeito deixando-as encostadas na parede bem atrás deles. De imediato, retirando os caixões mortuários do coche, puse-ram-nos em dois carrinhos de rodas próprios para a ocasião e os leva-ram até a capela do cemitério para que pudessem receber em seguida, através do clérigo da igreja matriz, um dos sete sacramentos da igreja, a extrema-unção. Terminada a celebração da missa, os coveiros em-purrando os carrinhos lentamente, levaram o casal até seus jazigos e, muitos ajudaram a empurrá-los, e muitos tocaram com mãos trêmulas os caixões em prantos de dor, e todos se benzeram e todos rezaram. O casal ia ser enterrado lado a lado:
Ele e ela.
O Dr. João e Rebeca, apatetados, observavam a margem o respei-toso ritual fúnebre com certa fixação em estado de alheamento do espírito com bastante aflição. Eles ainda não conseguiam entender direito de o porquê de tudo aquilo. De o porquê suas almas ainda es-tavam ligadas fisicamente a frágil estrutura humana. Depois da prédica do padre, Rebeca e João, uma a uma, examinavam as pessoas presen-tes ao lado do jazigo. E lá estavam todos os conhecidos, e estavam todos os amigos, e estavam todos os parentes e muitos curiosos, tam-bém. Todos mesmo sem nenhuma exceção e, aquilo os reconfortou bastante.
— Amor, todas as pessoas que nós conhecemos estão aqui para ver o nosso funeral — observou Rebeca, tristonha.
— Sim querida, isto é sinal de que nós não fomos uns meros passa-geiros neste mundo. Isto significa que. . . — parou para suspirar, aflito —, de que deixamos algo de bom para o próximo. Espero que os nos-sos filhos sigam a nossa trilha e, de que façam do nosso exemplo, ou pelo menos que procurem fazer dele um mundo bem maior e melhor.
No instante que os ataúdes iam se abaixando na cova dentro do jazigo da família aos poucos o casal ia transformando-se numa espécie de névoa multicolorida parecida as brumas espectrais do Arco-íris e, sem mais nem menos, como que por encanto, o céu se fechou sobre o cemitério de repente. Em cima dos presentes, o céu carrancudo ofere-ceu-lhes uma chuva rala e tépida que, para as pessoas presentes no funeral, sem nenhuma sombra dúvida não passava de um fenômeno climático natural, mas em verdade “verdadeira” eram às lágrimas de o casal sendo borrifadas aos quatro ventos ao despedirem-se de todos os entes queridos e dos amigos desaparecendo para todo o sempre com a tépida garoa que aos poucos ia dissipando-se sob as cabeças dos visi-tantes, subindo ao Céu.
Expresso 333
Frank P Andrew
fpandrew@msn.com