Departamento das Interferências Mundanas - Parte 1
Valério desligou a televisão e, olhando para os próprios pés, com a cabeça apoiada nas mãos, soltou um sonoro suspiro. A quantidade de bobagens que ele acabara de ver esgotaram completamente seu humor. Traição, mentiras, brigas... Nada parecido com a vida que ele sempre gostou e lutou por fazer melhor. Era filantropo de carterinha, ajudava os carentes e buscava sempre estar disponível, mesmo quando as variáveis iam de encontro com o seu próprio conforto. Pois nada lhe importava mais do que equalizar a grande equação da humanidade. Dar felicidade para os que não tinham - ou coisas mais básicas, como alimento e atenção. Ninguém passava despercebido por ele.
Mas naquela noite, o barco virou. Suas emoções corriam como dezenas de Jaguares prontos para rasgar a próxima caça; como água fervente que escalda a pele e faz-se lembrada por bolhas que tardam em sarar. Valério sentia a sua impotência perante cenários que julgava inexistentes, resolvidos, discutidos - e que ele não podia controlar. Seus dedos tremiam, como se buscasse qualquer solução palpável ao seu alcance.
Ele precisava fazer algo sobre isso.
Chamou seu mentor, Gabriel, que costumava ajudar todas as pobres almas que estivessem aborrecidas por algum problema. Tamanha era sua sabedoria que fazia chorar lágrimas de felicidade com apenas alguma palavras, diziam as pessoas que já passaram por seu cuidado. Valério o conhecia bem: só chegou onde está graças a Gabriel, seu guia, que lhe estendeu a mão em momentos temerosos e certificou-se de que tudo terminaria bem. E terminou, Valério era agradecido pela ajuda que recebera, e até mesmo por isso, andava um pouco preocupado até os aposentos de seu mentor, ciente de que faria um pedido que poderia ser mal interpretado.
Após duas batidas na porta, alguns segundos e ruídos vindo do outro lado, Gabriel apresentou-se com um semblante confuso.
- Olá Valério, meu amigo, que a paz de nosso senhor esteja convosco.
- Olá Gabriel, que a paz de nosso senhor esteja convosco. Desculpe vir tão tarde, mas meu coração está em chamas.
- Acalme-se! Entre, sente-se e aguarde um momento.
Valério entrou e sentou-se numa cadeira qualquer, que fazia conjunto com as outras peças da sala de jantar. Nada era extravagante, mas também não era completamente descartável. Na realidade, era exatamente igual ao seus móveis, apenas um pouco mais... cuidados? Novos?
Gabriel retorna e rasga o raciocínio consumista oferecendo uma xícara de chá, ao mesmo tempo que puxa uma cadeira para si, a frente de Valério.
- Diga-me, o que te traz aqui?
- Veja, eu sucumbi mais uma vez à televisão. Fiquei horas grudado naquela porcaria e agora estou enfezado com o que vi.
- É por isso que sempre aviso: evitem. Nada ali vale a pena, o passado tem este nome por um motivo. Você está em outro lugar agora.
- Sim, eu sei. Mas alguns dias eu sinto saudades deles; das coisas mundanas. Aqui, de fato, é maravilhoso e perfeito, mas ainda é muito difícil desconectar por completo. Minha... eh, mudança, ainda é algo recente, e outros sabores ainda me vem a mente.
- Certo. Isso é perfeitamente normal. Eu jamais recomendo, mas entendo o porque vocês optariam por dar uma olhada de vez em quando. Enfim, como eu posso te ajudar?
Chegou o momento que Valério temia. Ele sabia exatamente o que queria pedir, mas sabia que não seria um pedido muito fácil. Apenas a ideia que lhe cruzava a mente já parecia absurda; formular as palavras em voz alta, então, seria basicamente um despautério. Gabriel notava sua ansiedade, suas mãos trêmulas, seu medo inerente que formava a sombra de seu inquérito.
Alguns segundos de meias palavras e sons de quase - aqueles que são o nascer das palavras; o começo grutural de toda comunicação - e Valério tomou coragem suficiente para exclamar o que seria provavelmente a sentença mais absurda de toda esta etapa de sua existência:
''Eu. Quero. VINGANÇA!''
Gabriel arregalou os olhos e cuspiu duplamente, pela boca e pelo nariz, seu chá de alecrim. Tossiu algumas vezes e afastou as pifias tentativas de assistência por parte de Valério, que agora suava frio e se perguntava se toda pressão imediata exercida sobre sua região traseira era uma manifestação fétida do pavor que lhe acometia naquele momento.
Foram necessários alguns minutos nos seus aposentos para que Gabriel se recompusesse. Após voltar com outra roupa e cara de quem sofreu um bocado, soltou um suspiro e sentou-se na mesma cadeira de antes. Olhou fundo nos olhos de Valério e lhe disse:
- Primeiro, muito cuidado com essa palavra. Você sabe que existem certos sentimentos que não são bem vindos em lugares como este. Segundo, perdão pela cena, isso foi um pouco constrangedor, mas você me pegou desprevenido. Não é todo dia que escutamos algo tão... diferente.
- Sim, Gabriel, me perdoe. Eu sei que talvez tenha cruzado algumas linhas, e temo muito um castigo por sequer ter considerado isto, mas espero que você me entenda.
Gabriel levantou as sobrancelhas e, com semblante sério, disse:
- Bom, dependendo da sua explicação, talvez haja algum castigo, mesmo.
- Então deixa para lá! Vamos esquecer isto - disse Valério, como se tentasse fingir que nada havia acontecido.
- Eu... Eu não posso. Você sabe bem que tudo por aqui é acompanhado, e isto com certeza gerará perguntas. Eu preciso que você explique o que quer dizer com ''vingança''.
Sabendo das circustâncias, Valério precisava falar alguma coisa. Pensou em mentir, mas imediatamente entendeu que, se pego em uma mentira, seria muito pior. Respirou fundo, olhou para frente e abriu seu coração.
- A televisão aqui é... diferente, você sabe. E eu me pego vendo meus parentes, meus amigos, meus conhecidos em suas vidas pessoais... E isto não é bom. Eu sinto saudades deles...
- Sim, eu imagino...
- ... e eu acabo assistindo para reviver um pouco daquilo. Me sentir em casa, em lugares que eu já passei... que eu já vivi.
- Sim, eu entendo. Mas e a parte da vingança? Do que isso se trata?
- Bem... eu só queria fazer alguma coisa sobre isso. Queria poder interromper as brigas, ou conversar com os culpados, acalmar as vítimas... Queria fazer o que faria antigamente, se ainda estivesse lá.
Gabriel suspirou aliviado.
- Eu pensei que era algo mais sério, mas o seu objetivo é bom! Aleluia! - Dizia enquanto erguia as mãos para o alto
- ...s-sim, SIM! É BOM!! - Exclamava Valério, com os ombros muito, muito mais leves.
- Por um momento achei que você queria, não sei, matança, porrada ou outras coisas dos humanos.
- Não, de forma alguma, eu só queria poder ajudar, apenas isso.
Depois de um pouco de contemplação, Gabriel se levantou e olhou misteriosamente pela sua janela, buscando um ponto específico. Após encontrá-lo, chamou Valério e apontou pelo vidro.
- Vê aquela esquina, com a grande árvore?
- Que tem a loja de Harpas?
- Sim, isso, com a fonte e os pássaros.
- Sim sim.
- Lá você encontrará uma pessoa que pode te ajudar. Esteja lá pontualmente as 9 da manhã, e ele te procurará. Enviarei uma mensagem a ele para garantir que isto aconteça.
As conversas depois disso eram irrelevantes. Valério vivia uma mistura de gratidão por tudo ter acabado bem, e satisfação por conseguir algo que seja suficiente para sanar sua vontade de ajudar.
Despediu-se, voltou, deitou-se e dormiu.
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Nove horas da manhã, pontualmente, Valério se escorava na fonte enquanto os pássaros banhavam e cantavam alegres ao sol. Após alguns minutos, um senhor chamou sua atenção. Assim que acenou com a cabeça, o velho fez com o dedo para que fosse acompanhado, e Valério seguiu. Entraram pela porta lateral da loja de Harpas, desceram uma escada e chegaram no que parecia um porão, mas bem limpo e organizado.
As luzes se acenderam para mostrar dezenas de telas, todas apagadas. Um pequeno teclado, um mouse comum e uma cadeira de encosto marrom compunham a porção esquerda da sala, enquanto a direita era um compilado de arquivos de ferro e caixas lotadas com papel e cordas de aço. Alguns cartazes pedindo silêncio e outros com escritos bíblicos terminavam esse ambiente diferente.
- Bom dia, Valério. Meu nome é Joquias. Recebi a mensagem de Gabriel.
- Olá Joquias, prazer em te conhecer. Sim, eu contatei ele ontem a noite.
- Perfeitamente. E você - se entendi bem - gostaria de interferir de alguma forma na vida humana, correto?
- Bem, sim, minhas intenções são boas, gostaria de poder aconselhar, ajudar ou dizer coisas para as pessoas que precisam ouvi-las.
- Certo!!! - Exclamava Joquias enquanto pigarreava para limpar a garganta. - Você veio falar com a pessoa certa. Eu posso te ajudar, mas não do jeito que você espera. Vê estas telas?
- Sim, vejo, são muitas.
- De fato! Eu posso te ajudar a interferir com pequenas coisas. Seja como uma metáfora em um sonho, seja como um inseto que voa na direção certa. Nada de contato direto! Isso é impossível. E se fosse possível, com certeza seria proibido.
Valério tombou a cabeça para o lado e tentou racionalizar um pouco.
- Então, digamos, se minha sobrinha estiver triste sobre o namoradinho dela, eu não posso dar nenhum conselho direto, como se, não sei, implantasse uma mensagem no cérebro dela?
- Sim, isso seria impossível.
- Eu apareceria como um besouro que fala em seu sonho, e falaria algo remotamente semelhante com o que eu diria, mas sem dar pistas que sou eu?
- Exatamente! Você já entendeu o ''espírito'' da coisa, heheh.
Valério ficou satisfeito. Já era um começo para quem não tinha nada.
- E quando podemos começar?
- Não agora. Eu estou muito velho, preciso agendar este tipo de coisa. Pode ser amanhã, por volta das dezoito horas? Assim tenho tempo de cuidar dos meus afazeres.
- Sim, claro, sem problemas. - Dizia Valério, enquanto subia a escada e se despedia acenando as mãos.
No último degrau antes de perder vista de Joquias, Valério virou e perguntou:
- Como é o nome desse lugar?
- Ah! Este lugar não tem um nome oficial, mas eu sempre gostei de chamar de ''Departamento das interferências mundanas''. Me parece elegante.
- Departamento das Interferências mundanas... é, de fato, parece elegante - cochichava com si mesmo, enquanto terminava o lance de escadas.
Amanhã seria um dia interessante.