AS MÃOS DO DESTINO

I

A tarde caía lentamente. Beira-mar. Uma mulher caminhava pela praia.

Possuía pele clara e incríveis olhos azuis.

A calça de pescador e uma blusa regata a vestiam muito bem. Uma bolsa a tira-colo.

Caminhava despreocupadamente olhando o horizonte. Os óculos de sol dependurados no decote.

Os pés estavam descalços e dependurados na mão esquerda ela trazia os chinelos de couro cru.

Não olhava as pessoas que cruzavam seu caminho. Na verdade nem os via. Estava tão compenetrada em seu mundo.

Uma brisa fazia seus cabelos esvoaçarem a fazendo parecer ainda mais bonita.

De vez em quando recolhia uma conchinha e a guardava na bolsa. O fazia mecanicamente e olhava o horizonte como quem busca alguma coisa inatingível. Algo que o tempo levou.

Gustavo a vira dias antes caminhando e o intrigara aquela mulher. Ele era um escritor de trinta anos e buscava na praia inspiração para um novo conto.

Vira aquela bela mulher caminhando e a acompanhara ao longe. Ela simplesmente estava dentro de um mundo que não era aquele que as pessoas vivem. Ele pôde sentir isso.

Sentia um desejo enorme de aproximar e tentar um diálogo. Ele tinha faro para grandes estórias e ali sentia que encontraria uma.

Mas como se aproximar de uma estranha? Poderia assustá-la. Precisava descobrir uma forma de chamar sua atenção.

Pôde observar que ela sempre aparecia na praia no mesmo horário. Felizmente coincidia com o seu de caminhar.

Naquela tarde resolveu se aproximar de alguma forma. Precisava chamar sua atenção.

─ Moça, não lhe pertence esta esteira?

Ela assustou-se e o fitou nos olhos negros.

─ Não me pertence jovem.

─ Desculpe então. Posso lhe falar um instante?

Laura sabia que não devia falar a um estranho. Mas tinha uns olhos tão felizes e tão esperançosos aquele jovem.

─ Já o vi antes?

─ Tenho vindo caminhar por aqui estes dias...

─ Não me recordo de tê-lo visto.

─ Posso lhe fazer uma pergunta?

─ Se eu puder responder...

─ Por que guarda todos os dias algumas conchinhas?

─ Gosto de artesanato, faço alguns trabalhos e as uso.

─ Entendo. Gosta do mar?

─ Adoro...

─ Eu também. Nasci num estado onde não tínhamos o mar para desfrutar e quando o conheci eu me encantei, então me mudei para cá.

─ Onde nasceu?

─ No Mato Grosso.

─ O Mato Grosso também tem suas belezas naturais.

─ Claro que tem, mas o mar me fascinou. Conhece Mato Grosso?

─ Conheço. Já morei lá um tempo.

Ela gostou daquele jovem instantaneamente. Seus olhos eram janelas abertas e ela as queria sempre assim. Escancaradas. Não suportava falar com pessoas que fugiam de olhares. Queria sempre que as almas se mostrassem como aquele rapaz de olhos negros se mostrava.

─ É artista?

─ Escritor.

─ Que maravilha! Logo notei...

Olhando-a ele pôde notar uma tristeza infinita naquele olhar. Precisava tornar-se seu amigo. Ela se abriria e ele teria seu conto. Aprofundando-se naqueles olhos ele descobriu que não era tanto a estória em si que buscava. Descobriu extasiado que estava mesmo desejando um encontro com aquela alma.

─ Eu me chamo Gustavo. Gustavo Parente.

─ Laura Medeiros.

─ Mora perto daqui Laura?

─ Sim, logo ali. ─ disse apontando uma ruazinha. ─ E você?

─ Não tão perto. Quinze minutos de carro.

Gustavo a ouvia falando e deliciava-se com aquela voz suave. Era tão tranqüila, tão serena. Não fossem os olhos angustiados diria que era uma mulher equilibrada.

Resolveu perguntar de chofre:

─ Vive só Laura?

─ Sim. Tenho uma gatinha e uma casa cheia de lembranças.

─ Um amor que acabou?

Ela o olhou de uma maneira que pedia que a conversa interrompesse ali e Gustavo entendeu de pronto.

─ Desculpe-me. Não tocarei mais no assunto. A menos que deseje.

─ O que escreve?

─ Contos. Adoro contar.

─ Escrevo alguns poemas. Desde menina tenho rabiscado alguns. Deseja ver?

─ Claro que sim!

─ Amanhã trarei alguns para que leia.

─ Vou adorar.

Laura diz que precisa se recolher. Despedem-se. Ela diz que já é muito tarde.

Tarde para quê? Pergunta-se o rapaz. Se vive só...

A verdade é que gostaria de ficar ouvindo aquela voz infinitamente.

Olha-a se afastando e diz a si mesmo: Cuide-se Gustavo. Não vá se apaixonar.

Quantos anos poderia ter? Não aparentava mais de trinta e cinco. Mas poderia ser pouco mais.

O corpo muito bem feito. Os olhos tão lindos, os cabelos bem cuidados. Um corte moderno. Belas mãos. Uma maneira de conversar deliciosamente feminina e natural.

Não poderia se envolver, mas aquela alma o atraía. Não era só a beleza física da mulher que o encantara, mas algo que ela trazia dentro de si.

II

No dia seguinte estava Laura vestida com um longo vestido estampado. Estava ainda mais bonita que de costume. Os cabelos ligeiramente molhados e a pele fresca.

Desprendia de seu corpo um suave perfume e Gustavo o aspirou imaginando estar em seus braços. Aquela mulher o deixaria louco. Sabia que ela era um perigo para sua alma sonhadora.

Laura estendeu a mão para um cumprimento e ele a beijou.

─ Romântico.

─ Eu sou. E você também?

─ Claro. Faço poemas. A propósito, quer vê-los?

─ Trouxe?

─ Sim.

Retirou da bolsa um maço de folhas.

─ Vamos procurar um lugar onde possamos nos sentar para que eu possa ler com calma?

─ Por que não aqui?

─ Mas você está vestida assim...

─ É tão longo. Não há problema.

─ Vai sujar-se toda.

─ É só lavar depois.

─ Acabou de sair de um banho.

─ Tomo outro mais tarde.

Sentaram-se de frente para o imenso mar e Gustavo pegou a primeira folha. Leu-o calmamente e a olhou.

─ É melhor do que poderia supor.

─ Gostou?

─ Adorei. É ardente, cheio de paixão...

─ É assim que escrevo. Com paixão.

Ele pegou outro e mais outro e a cada um que lia a olhava.

─ Já não posso ler. Está escurecendo e como pode ver uso óculos para leitura. Minha visão piora muito ao anoitecer.

─ Amanhã lerá o restante.

─ Posso levá-los comigo?

─ Sim.

─ Vamos conversar agora?

Ela concordou com a cabeça e ele pensou que corria grande perigo de se apaixonar por aquela mulher. A voz o atraía terrivelmente, a beleza e agora aqueles poemas quentes.

─ O que faz na vida Laura?

─ Nada e tanta coisa.

─ Como nada e tanta coisa? Como pode não fazer nada e tanta coisa ao mesmo tempo?

─ Há dias que fico o dia todo sem fazer nada. Há dias que faço meus trabalhos artesanais. Pinto também, escrevo poemas, penso e passo horas com minha gatinha no colo. Deito-me na rede da varanda e sinto a brisa. Fico falando com minha mãe ao telefone por horas inteiras, caminho pelas manhãs e ao entardecer.

─ E as noites?

─ Eu durmo oras...

Laura ri gostosamente e ele descobre que ela é ainda mais bela sorrindo.

─ Devia sorrir mais. É muito bonita quando sorri.

De repente ela fica séria e diz que já é tarde.

─ Amanhã?

─ Sim amanhã. ─ diz ele buscando a mão para beijar de novo.

Ela a estende num gesto e ri dizendo que está cheia de areia.

─ Não faz mal...

III

Laura veste um short e uma blusa de mangas três quartos. A blusa azul realça ainda mais seus olhos. O mesmo perfume suave desprende de seu corpo e Gustavo pode notar que as pernas são bonitas, firmes, longas.

Os brincos acompanham a cor da blusa e um colar adorna o pescoço delicado.

─ Leu? ─ pergunta ela olhando-o diretamente nos olhos.

─ Adorei tudo. Você é uma poetisa e tanto.

─ Sou só uma amadora.

─ Está apaixonada?

A mulher emudece e baixa os olhos.

─ Desculpe.

─ Está desculpado. Mas... conta algo de você.

─ Não tenho muito a contar. Sou solteiro. Não encontrei uma mulher que me amarrasse. Sou de poucos amigos, escrevo. Trabalho numa joalheria com um primo. Gosta de jóias?

─ Não tenho muitas, mas creio que toda mulher aprecie uma bela jóia.

Fica olhando-a falar e Laura pergunta se não tem namorada.

─ Não. No momento não. Estou livre como um passarinho. Sou como aquela gaivota. Veja como voa livre.

─ Gosta da liberdade?

─ Sim. Eu só me deixaria me prender por uma mulher como você.

Ela novamente baixa os olhos e ele pede desculpas.

─ Vai viver se desculpando todo o tempo?

Gustavo se aproxima e tenta um beijo, mas arrepende-se logo em seguida porque ela o olha com uns olhos tão angustiados que chega a machucá-lo.

Disfarça e mostra o vôo da gaivota solitária.

─ Gostaria de ler seus contos.

─ Vou lhe mostrar.

Ela aponta um navio no horizonte e ele se pergunta o que pode afligi-la tanto.

Sente um desejo enorme de lhe fazer perguntas, mas teme afastá-la mais de si agindo assim e resolve esperar que ela vá se mostrando aos poucos. Sente que ganhará sua confiança e ela se abrirá.

Começa a lhe contar sobre a infância, juventude. Conta da morte dos pais. Quando fora morar com uma tia ranzinza e mesquinha. Conhecera uma moça e até pensara em se casar. Depois compreendera que não seria fugindo da tia que encontraria a felicidade. Foi ficando e quando tinha vinte e três anos ela faleceu.

Era-lhe grato, apesar de tudo.

Viajou para conhecer o mar e reencontrou o primo Marcos que não via desde a infância. Era primo em segundo grau. Amou o mar e desejou ficar. Marcos o convidou para trabalharem juntos.

Marcos era casado com uma mulher encantadora e tinham dois filhos. Amava a pequena Sabrina e costumava bater uma bola de vez em quando com Leandro.

Morava só num pequeno apartamento e comia fora. Cuidava sozinho da limpeza do apartamento. Tinha poucos móveis. Um armário, a cama, um jogo de sofá, uma estante. E a roupa, mandava uma moça que morava no prédio lavar e passar. Era uma vidinha simples. Adorava ler, escrever, ouvir uma boa música.

─ Gosta de música Laura?

─ Adoro música. Esqueci de lhe contar que fico também ouvido música.

─ Sabia que gostava. E de dançar gosta?

─ Faz um bom tempo que não danço.

─ Quer sair uma noite destas comigo para dançar?

Ela o olha e nada responde.

IV

Com a mudança no tempo Gustavo até pensou que não a encontraria. Mais eis que Laura surge vestindo um agasalho.

─ Você está tão bonita! Pensei que não apareceria hoje.

─ Ainda bem que a chuva parou. Teremos tardes mais amenas agora.

─ Mora aqui há muito tempo?

─ Cinco anos.

─ E sua mãe?

─ Ela mora no sul. No Paraná. Mora com meu irmão e a esposa.

─ O que a trouxe ao Nordeste?

─ Estive a cada tempo morando num canto deste enorme Brasil e acabei ficando por aqui.

─ Sempre só?

Gustavo já se acostumava àquele baixar de olhos. Sabia que devia ir devagar. Ela já contava um pouco de si. Aos poucos ele saberia a razão de sua tristeza. Nem pensava mais no conto. Interessava-se sinceramente por ela. Não sabia como perguntar a sua idade. Temia parecer indelicado.

Surpreendeu-se quando ela mesma o contou de uma forma surpreendente.

─ Sei Gustavo que deseja saber minha idade. Olha-me perguntando quando anos terei. Pois bem, completo quarenta e dois anos amanhã.

─ Aparenta muito menos

─ Eu sei.

─ É uma mulher encantadora e deve ter sofrido muito. Mas não vamos falar sobre isto, se não deseja...

Ela o puxa para uma corrida.

─ Vamos nos aquecer. Como venta gelado!

Correm de mãos dadas e em determinado momento ele não resiste e a beija apaixonadamente.

Ela quer fugir do beijo, mas acaba cedendo e correspondendo com a mesma intensidade.

─ Do que tem medo?

─ De sofrer...

─ Já sofreu por amor?

─ Muito.

Ele a beija de novo e correm novamente.

Abraçam-se e ficam olhando um tímido sol que se esconde no horizonte.

─ Virá amanhã?

─ Vou lhe fazer uma surpresa amanhã.

─ Que surpresa?

─ Surpresa é surpresa.

Quando Laura se despede não é somente a mão delicada que ele beija. Beija-a nos lábios, nas orelhas, nos olhos e ela o olha com aqueles olhos encantadores que o entonteceram desde que a viu pela primeira vez.

Ela segue pela ruazinha estreita e ele fica sentindo todo seu ser a amando, a desejando.

Doze anos de diferença. Diz a si mesmo que doze anos não quer dizer nada quando se ama. E está apaixonado. Ela só precisa acertar contas com o passado. Qual será a surpresa?

Segue feliz em direção ao carro estacionado. Sente vontade de abraçar o mundo.

IV

Quando Laura chega ele pode notar que ela está um pouco tensa.

─ Aconteceu alguma coisa?

─ Nada demais.

─ Por que está nervosa?

─ Quem lhe disse que estou nervosa?

O rapaz fica a observá-la. Laura não deseja encará-lo e algo lhe diz que ela está com algum problema sério.

─ Eu posso ajudá-la.

─ Você é muito jovem Gustavo. Não é para mim. Veja, quantas garotas de sua idade passeiam por aí.

─ Não estou interessado em nenhuma delas. É em você que estou. ─ diz abraçando-a.

Ela foge do abraço e o rapaz sente que realmente há algo de muito sério acontecendo.

─ Eu não me importo com nossa diferença de idade. Sempre gostei de mulheres maduras.

─ Não se trata só disso Gustavo. Você me contou sua vida. Sofreu tanto, não merece sofrer mais. Vai sofrer envolvendo-se comigo.

─ Por quê?

─ Porque eu não sirvo para você. Porque minha vida está acabada.

─ Acabada? Você é uma linda mulher. Escreve com toda a paixão que eu pude conhecer. Você não sabe o que está dizendo. É uma mulher e tanto.

─ Não. Sou uma mulher destruída.

─ A machucaram?

─ Eu mesma me machuquei. Eu mesma me destruí. Perdoe-me por ter lhe dado esperanças. Pensei que ainda pudesse... mas não!

─ Laura. Por que não me conta tudo minha querida? Por que se machuca ainda mais fugindo das coisas?

─ Há dores que a só a nós mesmos podem pertencer. Ninguém deve conhecer. Esta dor é só minha.

Ele a puxa para si e a beija delicadamente nos olhos tentando acalmá-la.

Aos poucos ela parece estar mais calma e ele pergunta timidamente:

─ Não havia uma surpresa para hoje?

Ela tira da bolsa um pequeno pacote e o entrega.

Ele abre e pode ver um porta-retrato muito bem feito. Todo enfeitado de conchinhas muito pequeninas. O que o surpreende mais, no entanto, é a fotografia que ele contém em seu interior. No retrato os dois estão sorrindo. Ela vestida com um short preto e uma blusa laranja. Começa a recordar o dia que um fotógrafo passou por eles e os surpreendeu batendo uma foto.

─ Minha querida. Você é uma mulher surpreendente. Não pensei que pudesse fazer uma coisa destas. Como conseguiu?

─ Conheço o fotógrafo.

Ele a beija apaixonadamente.

─ Como pode dizer que não dará certo? Não vê que também está apaixonada por mim? É a diferença de idade? Diga-me o que a inquieta.

Laura o acaricia e lhe diz:

─ Vamos até minha casa. É uma longa conversa a que teremos. Pode se demorar um pouco mais?

─ Sou livre como um passarinho. A ninguém devo satisfações. Lembre-se.

Ela o enlaça pela cintura e os dois seguem pela ruazinha.

Ao chegar em frente a uma enorme casa branca, com janelas azuis e um belo jardim ela procura na bolsa a chave do portão. Na rede da varanda uma gatinha dorme e Laura a balança para acordá-la.

─ Sua preguiçosa. Este lugar não lhe pertence.

A gata levanta-se sonolenta e muito dengosa mia baixinho.

Laura o puxa para dentro e o pequeno animal os segue.

─ Vivo aqui. Este é o meu pequeno paraíso.

Ele olha a sala bonita, a parede coberta de quadros e não pode deixar de dizer:

─ É mesmo um pedaço de paraíso isto aqui. É muito luxuoso também. Não me contou que era uma mulher rica.

─ Há muito a contar Gustavo. Depois de ouvir o que vou dizer decida se ainda quer me ver de novo.

V

Gustavo se senta num sofá de veludo vermelho e espera que ela comece a falar. Ao invés disso ela vai até o aparelho de som e coloca um CD romântico para tocar num som bem baixo. Pega o celular e verifica se há alguma mensagem. Desliga o pequeno aparelho de novo e o coloca sobre o móvel. Ajeita umas flores num vaso e finalmente se senta ao seu lado. Não tão próximo.

─ Eu nasci num lar muito rico. Era uma milionária. Nasci no sul e lá vivi toda a infância e mocidade. Aos vinte e cinco anos conheci um homem que me virou a cabeça. Ele era cinco anos mais velho e estava só de passagem. Era um artista plástico. Era dos bons mesmo. Nos apaixonamos.

─ Meus pais foram contra o namoro. Consideravam Enrico um aventureiro. Eu não era mais uma menina e mesmo assim eles tentavam proibir que eu me encontrasse com ele. Não conseguiram destruir o sentimento que nascera entre nós. Abandonei minha família e segui com ele.

─ Enrico era um homem excêntrico e tinha espírito cigano. Não gostava de estar muito tempo em um só lugar. Viajávamos pelo Brasil afora. Ele vendia os quadros que fazia e vivíamos como hippies. Ele era lindo, risonho. Éramos felizes.

Gustavo a olha esperando.

─ Também comecei a pintar e vivíamos disso. Eu sempre gostara de artesanato e fazíamos algumas peças. Eu havia estudado odontologia, mas nunca me passou pela cabeça exercer. Daquela maneira que vivíamos eu nunca poderia pensar em me empregar, muito menos montar um consultório com o dinheiro que não tínhamos. Ele não queria nem que eu falasse de minha família, muito menos que os procurasse. Como o amava demais fui aceitando a vida nômade que ele me oferecia. Eu também me vestia como uma hippie e nunca cogitava sequer se era o caminho que havia sonhado para minha vida.

─ Parecia estar enfeitiçada por ele e o seguia sem analisar friamente minha vida. Eu sei que houve um tempo que ele usou droga e recusei-me a usar. Neste tempo ele se afastou um pouco de mim. Deixava-me só muito tempo e vivia pelas ruas. Depois me procurava. Fazíamos amor e tudo voltava a ser como antes. Costumávamos muitas vezes nos hospedar em pequenos hotéis de quarta ou quinta categoria. Coisa bem ralé mesmo.

Engasgando-se um pouco ela continuou:

─ O tempo foi passando. Quando já fazia doze anos que vivíamos juntos eu adoeci seriamente. Neste tempo estávamos aqui no nordeste. Aqui mesmo, nesta cidade. Ele me levou até o hospital e lá encontrei um amigo de infância que havia se formado médico. Fui examinada e descobriram que estava com anemia em grau muito avançado. O meu amigo penalizou-se de me ver naquele estado e entrou em contato com meus pais. Neste tempo eu contava trinta e sete anos.

Ele fica a olhá-la sem nada dizer, simplesmente esperando o relato.

─ Minha mãe e meu irmão vieram correndo. Digo voando. Pegaram o primeiro avião. Quando Enrico os viu revoltou-se e quis saber a razão de eu ter procurado minha família. Senti que ele os odiava. O meu amigo, o Álvaro, contou que fora ele que avisara e falou poucas e boas para o meu companheiro. Eu soube disso por ele mesmo, porque Enrico nunca teve a coragem de se abrir comigo.

─ Leonardo, o meu irmão, e a minha mãe choraram muito em nosso reencontro e fiquei muito emocionada. Também me desfiz em lágrimas e desejei estar ao lado deles na minha terra. Sabia que ele jamais aceitaria isso. Sabendo disso, minha mãe comprou-me, com o dinheiro que ela tinha numa conta particular, esta propriedade onde vivo ainda. Depois que melhorei um pouco lhe comuniquei que me mudaria para a casa que ganhara. Ele não queria aceitar nada que viesse de minha família e só acabou aceitando porque eu estava convalescendo.

─ Nos mudamos e a casa já se encontrava mobiliada. Minha mãe também tratou de deixar-me uma conta num banco da cidade e depositava todo mês uma alta quantia para que eu me tratasse. Arranjei uma pessoa para cuidar da casa e passava os dias tranqüilamente na varanda. Enrico nos primeiros tempos até tentou viver aqui. Gostava da varanda também. Aos poucos foi se distanciando e descobri que estava louco para seguir viagem. Eu havia me decidido a parar com as andanças e havia lhe dito que estava na hora de pararmos com a vida maluca que vivíamos. Minha saúde não permitia que eu ficasse viajando para todo canto. Ele se calava e um dia desapareceu de vez. Neste meio tempo descobri algo que me deixou maluca. Eu, aos trinta e sete anos, esperava um bebê. Eu o procurei como louca e nada dele aparecer. Em nenhum canto o haviam visto.

─ Fiquei alucinada com o desaparecimento dele. Como disse, parecia estar enfeitiçado por aquele homem. Um medo terrível se apoderou de mim. Achava que não poderia levar adiante aquela gravidez. Estivera anêmica e a minha idade não era apropriada para ter o primeiro filho. As circunstâncias me levaram a um gesto que me arrependerei todos os dias de minha vida. Eu abortei. Depois disso passei a me odiar.

─ Por que não voltou a morar com sua família?

─ Meu pai não me aceitava lá e acabou falecendo o ano passado. Nunca mais o vi desde que saí de casa com vinte e cinco anos.

─ Por que não voltou depois que ele morreu então?

─ Não sei, me apeguei a esta casa, ao lugar. Gosto da maneira que vivo. Minha mãe deposita uma boa quantia todo mês na minha conta. Nada me falta. Não me odeia pelo gesto horrível que tive?

─ Odiá-la? Está maluca? Só abortou porque estava desesperada. Porque a dor a matava.

─ Mas eu destruí uma vida. Não consigo me perdoar. Nada justifica o que fiz.

Gustavo a abraça e acaricia os cabelos macios.

─ Como deve ter sofrido. Você ainda o ama?

─ Não. Quando abortei eu matei junto com nosso filho o amor que sentia por ele. Acabou-se.

VI

─ Laura. Diga sinceramente. Você está apaixonada por mim, não está?

─ Estou... mas isto não muda nada. Acho que não sou para você. Trago uma bagagem muito pesada. O meu passado sempre vai estar entre nós.

─ Que passado sua boba! O que passou já acabou. Vamos começar uma nova estrada agora. Quer se casar comigo?

─ Casar? Você fala em casamento?

─ Não chegou a se casar com ele, chegou?

─ Não. Nunca nos casamos. Ele era separado. Só soube depois de muitos anos que vivíamos juntos.

─ Então...

─ Então o quê?

─ O que está esperando para me abraçar? Venha para meus braços menina.

─ Não sou uma menina.

─ É sim, a minha menina. Enxugue esta lágrima e vamos começar a caminhar por um longo caminho.

─ Não poderei ser mãe.

─ Adotamos um bebê.

Ele a pega no colo e pergunta:

─ Onde é o seu quarto nesta enorme casa?

Beijam-se e ela pode sentir que este caminho que lhe aparece a frente será um caminho de flores. Gustavo lhe trouxera o que a vida havia lhe roubado. A paz voltava ao seu coração. Um bebê nesta casa e um homem que a carregava nos braços. O que mais poderia desejar na vida?

Que bom que resolvera não voltar a morar no sul do país. Era no Nordeste que aquele homem especial a encontraria. Estava marcado um encontro para eles. Fora isto que a segurara naquela casa. As mãos do destino...

─ O quarto é este...

─ Princesa, mas é tão grande!

─ Grande é o meu amor por você.

─ E o meu por você é maior ainda do que você pode imaginar.

─ Como poderemos chamá-la?

─ Quem?

─ A nossa menina. Quero uma menina.

─ Vitória. Será Vitória o nome de nossa filha.

SONIA DELSIN
Enviado por SONIA DELSIN em 18/12/2007
Reeditado em 24/03/2011
Código do texto: T782948
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