AO SOM DE UMA MÚSICA CIGANA...

I

A manhã está silenciosa. Tão silenciosa. Sozinha Marcela revira-se na cama. Estivera a pensar em Elvio. Elvio com seus olhos negros.

Ela o deixara. Abandonara aquela casa e levara consigo seus pertences, mas ali deixara um pedaço de sua vida.

Quem lhe devolveria aqueles anos?

Quase dez.

Ela era pouco mais que uma menina quando se conheceram. Ainda não havia completado quinze anos.

O corpo tomava forma de mulher, os hormônios começavam a lhe cobrar atitudes. Um olhar, um rebolado. O corpo no espelho. Um batom. O olhar do pai de reprovação. A mão lhe dizendo não.

Ayrton, Luís, Fabrício... uns tolos que estavam sempre a lhe correr atrás. Ayrton não se enxergava. Aquele narigão de batata! Luís, o magricela de voz estridente. E Fabrício, aquele galinha! Dava em cima de toda menina bonita do colégio.

Não queria graça com nenhum dos três. Seus fãs! Que piada!

Elvio lhe aparecera quando atravessava esta fase. Começava a descobrir o universo feminino. Comportara-se sempre como um moleque. Brincara feito um, de repente ficara mocinha e isto fizera com que passasse a comportar-se de outra forma. Não usava mais roupa de garoto. Gostava de vestidos. Sempre vestia branco.

Adorava roupas brancas e muitas rendas.

A mãe lhe trançava os longos cabelos negros e a beijava na testa.

─ Vai ser uma linda moça, Marcela.

O espelho também lhe dizia que a beleza lhe chegava a cada dia.

Elvio se encantou com a filha do amigo. Ele tinha vinte e nove anos e estava chegando para passar uns dias na cidadezinha.

─ É linda sua filha, Zé Antonio.

─ É sim. Ela é linda, mas é só uma menina.

─ Ela não é mais uma menina. Tem reparado nela?

─ É uma menina...

Ela corou quando ele a elogiou. Era um amigo do pai. Tão mais velho. Devia até ser casado.

─ Pai, seu amigo é casado?

─ Não. Ele não se casou ainda. Nem sei se tem uma noiva.

Um abaixar de olhos encerrou a conversa.

A filha não iria se encantar com um homem tão mais velho. Quinze anos era uma grande diferença.

Todos os dias ele aparecia.

A olhava com uns olhos! Dulce começou a reparar nos olhares que o rapaz lançava à filha. Eram uns olhares suspeitos. Era ainda uma menina, mas nem tanto.

A mãe pôde notar que os dois trocavam olhares intensos e significativos. A menina não poderia cometer a bobagem de se apaixonar por aquele rapaz mais velho que ela. Tantos garotos estavam toda hora a lhe procurar, a lhe telefonar.

─ O Luís ligou filha...

─ Aquele magricela!

─ Pensei que gostasse dele.

─ Não, mamãe.

─ E dos outros?

─ São uns bobos...

─ Você é muito jovem...

─ Claro!

II

Dias depois.

─ Mamãe, estou apaixonada.

─ Apaixonada?

─ Pelo Elvio, e ele por mim.

─ Filha!

─ Estou, mamãe... que posso fazer?

─ Esqueça isto. Ele não é para você. É tão mais velho.

Ela tentou convencer a mãe que a idade não significava nada, que o importante mesmo eram os sentimentos. Que ele era tão bonito, cheio de qualidades. Não havia nada de mal em se apaixonar por um homem mais velho. Gostara daqueles olhos negros tão logo ele aparecera lá.

─ Mas, filha! Você é uma menina. Tem a vida pela frente. Ele já viveu tanta coisa. Já vai completar trinta anos e você ainda não sabe nada da vida.

─ Sei que o estou amando.

─ O que entende de amor?

─ Entendo que quero estar com ele. Estar nos braços dele. Nós vamos nos casar. Você e o papai vão permitir, não vão? Sempre foram amigos os dois...

─ Não sei o que seu pai dirá disto tudo. Eu por mim digo que deveria namorar um daqueles garotos que vivem telefonando...

─ Não consigo achar graça em nenhum deles.

─ Vai se arrepender, filha. Vai encontrar o homem certo e então será tarde. Terá estragado sua vida. O amor não tem hora para chegar.

─ Mas já chegou. Eu amo o Elvio.

─ É uma paixonite de menina. Uma paixonite... o amor é outra coisa. Não é desta forma.

─ Como sabe o que sinto?

─ Sei que é jovem e ele velho demais para você.

─ Não vai me ajudar?

─ Ajudar em quê?

─ A convencer papai.

─ Me deixe fora disso. Não sou a favor desta loucura que está querendo cometer. É tão linda, filha...

─ Mamãe, até parece que nunca se apaixonou.

─ Desta forma não. Pela pessoa errada não.

─ Como pode saber se ele não é a pessoa certa para mim?

─ Eu sinto isto. Eu sinto que devia aproveitar sua juventude. Namorar mais tarde um garoto de sua idade. Aproveitar a vida. Pensa que é fácil se casar nesta idade? Mesmo que seu pai venha a concordar com esta loucura eu sou completamente contra. Não conte comigo, Marcela.

─ Estou decepcionada com você, mamãe. Pensei que fosse minha amiga.

─ É por ser sua amiga que estou lhe dizendo para esquecer tudo isso. Ele não é para você.

─ Como sabe?

─ Esquece, filha. Nunca vai entender, mas as mães têm um sexto sentido. Uma intuição. Sinto que ele a fará sofrer.

─ Ele está apaixonado por mim.

─ Pode até ser verdade. Você é linda, encantadora mesmo. Mas a diferença de idade vai pesar.

─ Eu não deixarei que pese.

─ Pode ser que eu não esteja aqui quando se arrepender deste gesto maluco de querer casar-se tão jovem assim. Eu quero lhe dizer, minha filha, que tentei dissuadi-la disso. Para os pais só importa a felicidade dos filhos. Não quero sair fora com o simples gesto de lavar as mãos, mas também não irei criar uma guerra contra minha própria filha. Eu quis ajudá-la, tentei mesmo. Se acha que deve seguir seu coração siga-o. Persiga seus ideais, convença seu pai. Atire-se de cabeça no que deseja, mas saiba que não vai me fazer feliz agindo assim, porque eu sempre vou achar que cometeu uma insanidade.

─ Eu vou ser muito feliz. Vai ver...

─ Tomara! É só o que lhe desejo. Que seja feliz...

Marcela ficou a olhar a mãe se afastando. Destruía-se fumando tanto. Por que não era feliz, se havia se casado com o homem certo?

III

─ Está certa que deseja isto para sua vida, minha filha? Eu a acho tão menina para falar em casamento. O Elvio veio conversar comigo, mas eu disse a ele que devem dar um tempo. É uma ilusão. Vai passar. Você é muito jovem, minha querida.

─ Papai, ele vai partir e eu quero seguir com ele.

─ Está maluca? É muito cedo. O máximo que posso permitir é que namorem e descubram se é o que realmente querem.

─ Ele não ficará muito tempo aqui. Veio para ficar uns dias, esqueceu?

─ Não posso concordar com um casamento destes.

─ Por quê?

─ É muito jovem.

─ Estou dizendo que sei que ele é o que quero para minha vida.

─ Nunca gostei de discussões. Brigas nunca foram meu forte, Marcela. Sempre acreditei num bom diálogo, mas está difícil conversar com você. Ainda ontem era uma menina e agora fala em partir com um homem.

─ Seu amigo.

─ Não importa. Isto não muda nada. Ele é boa pessoa. Eu o conheço há muitos anos, mas a vida não é assim. Vai se machucar.

─ E se eu lhe disser que não?

─ Não vou acreditar, porque tudo indica que não dará certo. Vai chegar uma hora que você desejará nunca tê-lo conhecido e eu vou me odiar porque foi através de mim que você o conheceu.

Ele a abraça e pensa que gostaria que o tempo voltasse atrás. Aquelas tardes que os dois ficavam jogando pedrinhas no lago. A sua menina pescando, nadando, pulando. Um verdadeiro menino. Enquanto a olha pensa: por que os filhos crescem? Por que eles criam asas e querem voar sozinhos quando as asas ainda são tão frágeis? Ele pode negar-se a aceitar tal união. Pode romper para sempre a antiga amizade. Pode enfrentar toda a fúria da filha. Mas ganha o quê com tudo isso?

─ Filha, eu consinto que vocês sejam namorados. Ele poderá vê-la sempre que desejar. Se o sentimento for forte o bastante...

─ Eu quero me casar agora.

─ Você vai fazer quinze anos. Sabe o que é isso? É uma adolescente. Não está preparada para o casamento.

─ Estou, papai.

─ Não me faça perder a cabeça com você, Marcela. Não quero gritar. Vá para seu quarto e fique lá pensando. Não desejo que volte a falar neste assunto.

De cabeça baixa ela se afasta.

Chora no quarto e a mãe a chama baixinho:

─ Abra, querida.

─ Não quero falar com ninguém.

─ Precisamos falar...

─ Não quero conversar. Deixe-me sozinha.

A mãe preocupada. O pai irritado. Os dias subseqüentes foram dias infernais.

─ Esqueça esta loucura, filha.

─ Não esqueço, mamãe.

O pai cedendo por fim:

─ Case-se, filha. Jogue todo o seu futuro fora. Não vou lutar mais. Vou deixá-la fazer exatamente o que quer. Caso uma filha menina. Meu Deus! É uma desgraça.

─ Não é uma desgraça, papai. Um casamento deve ser uma benção.

IV

─ É aqui que moraremos, Elvio?

─ É, meu amor. Não tem o conforto de seu antigo lar, mas é o que este seu marido pode lhe oferecer.

─ É bonita.

─ Sei que merece coisa melhor. Não sou rico, como pode ver.

─ Está tudo ótimo.

Ele a abraça e em seus braços não importa a falta de conforto, a cidade distante, a falta dos pais. Tudo é esquecido quando está em seus braços.

Dias depois.

─ Não posso lhe oferecer uma festança de quinze anos. Seu pai sabia que eu não era rico.

─ Eu não estou lhe pedindo nada, querido.

─ Eu sei que as meninas se iludem com estas coisas.

─ Não sou uma menina.

─ Não... é uma mulher. A minha mulher. Como será que aquele teimoso do Zé Antonio autorizou o nosso casamento? Achei que ele iria bater o pé até o final.

─ Está feliz com o nosso casamento?

─ Estou, claro que estou. Você é tão bonita. Todos os homens me invejam. Tenho uma mulher tão jovem e bela. Não é para qualquer um uma proeza destas.

─ Diz de uma forma... nem parece estar apaixonado por mim. Parece que só queria me conquistar para se exibir.

Abraçando-a:

─ Que nada,minha linda. Estou amarrado em você.

─ Estou achando-o um tanto estranho.

─ Por quê?

─ Não parece o mesmo de antes.

─ Eu a estava conquistando.

─ E agora acha que já me conquistou...

─ Não vá fazer beicinho. Isto que dá casar com uma criança. Não vá dizer que quer voltar para a casa do papai.

─ Isto nunca.

─ Orgulhosa minha mulherzinha!

─ Você nem sabe do que sou capaz.

Ele a olha zombeteiramente e diz de uma maneira bem sarcástica:

─ Me diz, meu bem...

Marcela se afasta dele. A mãe estava certa. Mal havia se atirado nesta louca aventura e já podia ver que gesto insano cometera. O marido agora revelava o verdadeiro caráter. O pai o desconhecia, senão jamais teria permitido. Era pouco mais que uma menina e já podia perceber que o sofrimento estava lhe chegando. Pensara viver uma vida cor de rosa ao seu lado, e em vez disso já podia sentir as pedras de um caminho que não podia ainda avaliar o quanto seria doloroso.

Voltar para a casa dos pais jamais. Ela não admitiria uma derrota destas. Tocaria a vida em frente. Mas algo lhe dizia que haveria mais dor que amor.

V

─ Não se levantou, preguiçosa?

─ Estou toda dolorida, Elvio. As cólicas... sabe como é.

─ Você é uma dengosa. Trabalhei a noite toda. Trate de me fazer um café.

─ Estou com dores. Não dá para fazer?

─ Não dá. Se desejava uma vida de princesa devia ter ficado na casa de seus pais.

─ Ainda está em tempo de voltar atrás. Não temos filhos. Não tenho muito me prendendo aqui... ─ diz ela baixinho, mais para si mesma.

─ O quê? A princesa está reivindicando seus direitos. Olha que eu não respondo por mim. Levante-se já desta cama e me prepare uns ovos mexidos. Estou fraco, cansado. A casa está um horror. Trate da limpeza desta casa, lave a roupa suja, a louça. Eu não tolero mulher preguiçosa.

─ Eu não estou bem.

─ Que nada. Isto é manha. Vá correndo contar para o papai e para a mamãe. Ligue para eles. Conte que o imbecil do genro deles chega em casa e encontra tudo numa imundície só. Que a mulherzinha que ele arrumou gosta mesmo é duma cama, mas para dormir. Só pensa em dormir.

─ Quero voltar a estudar, Elvio.

─ Para quê? Precisa pensar em me dar um filho. Nem para isto presta.

─ Eu não quero ser mãe tão jovem.

─ Mas está na hora do tonto aqui ser pai.

─ Devia ter arranjado uma mulher mais velha.

─ Devia mesmo. Beleza não põe mesa. Eu cometi um grave erro me casando com uma princesinha. Como me arrependo! Não agüento esta sua cara descontente. Volte para a casa de seus pais.

─ Não quero voltar para lá.

─ Por orgulho, não é? Porque eu sei que não deseja ficar comigo por amor. Cometeu um grave erro, menina. Pensou que era amor e era tudo uma fantasia. Tarde demais descobriu que a vida não é uma brincadeira de faz de conta. E não admito lágrimas. Não as suporto. Nunca suportei. Não me casei para ficar vendo uma mulher chorar. Me dá nos nervos.

Marcela, como nas tantas outras discussões, resolve calar-se.

Cometeu sim um grande erro. A mãe a havia prevenido. Mas por que não pudera viver por alguns anos pelo menos a ilusão de uma história de amor? Por que a vida lhe fora tão dura? A realidade nua e crua lhe vinha diante dos olhos ainda nos primeiros meses do casamento.

Não desejava filhos com ele. Não os queria. Para quê? Para sofrer como estava sofrendo? Havia destruído a própria vida casando-se com um homem que vestia uma pele de cordeiro quando na verdade era um lobo mau.

Não o amava. Mal o tolerava e a vida lhe apresentava desta forma.

Se por um lado estava extremamente infeliz no casamento por outro havia em si um sentimento que sobressaia qualquer outro. Era orgulhosa demais e jamais voltaria ao antigo lar. Jamais diria aos pais o tormento que sua vida se transformara.

Estava disposta a enfrentar o casamento desastroso e desejava aos poucos se libertar do marido. Prometera a si mesma que iria estudar e sozinha trilhar um novo caminho. O caminho das conquistas, e já sabia que seria árduo, mas estava disposta a lutar com unhas e dentes por ele.

VI

─ Como está, Marcela?

─ Estou bem, mamãe. Muito bem.

─ E seu marido?

─ Trabalhando.

─ Está feliz, querida?

─ Sim, mamãe. Feliz...

A última conversa que tiveram. Uma ligação ruim. Dulce morreu no mesmo dia. Um atropelamento a levou.

Zé Antonio nem notou as olheiras da filha. Estava sofrendo tanto com a morte da esposa. A irmã o tentou alertar.

─ A nossa menina está abatida. Será que o casamento vai bem?

─ Por que não iria? Ela quis tanto se casar.

─ Não a achei bem.

─ Deixa de ser uma tia coruja.

─ Ela podia ficar uns dias aqui.

─ O marido precisa dela lá.

Alguns meses depois ele conhece Maíra e resolve se casar. Nada o prende. Dulce se fora mesmo. A filha já estava casada.

Marcela engravidou e acabou abortando.

─ Não digo que não presta para nada? Nem mesmo para me dar um filho. Eu sinto que não os deseja. Que não é feliz comigo. Que dorme comigo por obrigação. Não a levo de volta para o Zé Antonio porque tenho pena dele. Você também me dá pena. É vazia, oca. Não há nada neste coração. Nem um filho quer. Meu amigo não merecia uma filha destas. Era um cara legal. Por que fui conhecê-la? Acabou até com a amizade que eu tinha com ele...

Ela o olha silenciosa e não consegue crer que sua vida tenha se transformado tanto. A mãe a quis prevenir. Que sábia ela era. Pena que não a ouviu.

Chora a morte da mãe, das ilusões, do filho que não conseguira prender dentro de si.

É pouco mais que uma menina e a vida se apresentando de forma tão rude.

Mas a vitalidade e a juventude lhe dão a coragem para superar as adversidades. Com muito esforço consegue convencer o marido que precisa estudar. É uma forma de ajudar no orçamento doméstico no futuro, lhe diz.

Dedica-se como nunca antes o fizera aos estudos e em pouco tempo enquadra-se à nova vida de estudante.

Os garotos lhe dão em cima e ela sempre sabendo colocar-se no seu lugar de mulher casada. Mal casada, mas comprometida com um homem e lhe devendo respeito. Se não existe mais o amor, o respeito ela faz questão de preservar.

Os professores admiram aquela menina esforçada e os anos passam. Ela forma-se no ensino médio e o casamento em nada melhora. Piora a cada dia. O filho não lhe chega e Elvio piora ainda mais o gênio.

VII

─ Que bela porcaria de emprego arranjou! De que valeu estudar tanto?

─ O ensino foi gratuito e o emprego não é tão ruim. Temos que começar de baixo para cima.

─ Não vai fazer nem para o transporte. Notou que arranjou um serviço lá no fim do mundo? Não venha se queixar comigo que está cansada no final do dia.

Marcela engoliu uma lágrima. Há muito tempo não lhe dava mais o braço a torcer. Não derrubaria mais lágrimas por um homem que não lhe sabia valorizar. Mas no fundo de si lhe doía. Queria que tudo fosse diferente, bem diferente.

Casara-se tão iludida. Pensara estar amando e descobriu ser impossível amar alguém tão azedo. Na verdade tudo fora um equívoco. Aqueles olhos negros escondiam no negror da cor uma alma igualmente escura.

Não existiam gestos de carinho, palavras amáveis. Onde, em que canto ficara o homem dos primeiros tempos? Aquele que chegara em sua casa e a olhara cheio de desejos, que a agradara...

Ficara nos seus sonhos de menina.

Os dezoito anos se aproximavam. Não era o tempo de estar tão desiludida. As moças de sua idade viviam sonhando, suspirando...

Desencantada com o marido que a destratava, que a diminuía, ela sabia que um dia precisava partir de sua vida e preparava-se para isso.

O salário era realmente baixo e descobriu que não conseguiria sobreviver com ele. Guardava cada tostão que conseguia economizar e o tempo passava.

Assim mais três anos se passaram. Conseguiu voltar a estudar. Resolveu fazer um curso técnico.

Os filhos não lhe chegavam e o marido já nem mais lhe cobrava. Havia se conformado em ter uma mulher estéril.

Neste meio tempo, aos vinte e um anos conheceu Leonardo.

Leonardo seria seu professor nos próximos anos.

Era separado e a olhava com uns olhos cheios de ternura.

VIII

─ Do que tem medo, Marcela? Eu não mordo... quero ser seu amigo.

─ Sou uma mulher casada, Leo.

─ Mal casada, que eu saiba.

─ Quem lhe disse uma coisa destas?

─ Ouvi um comentários...

─ Por que cada um não cuida da própria vida?

─ Eu também penso assim. Desculpe-me. Quero ajudá-la.

─ Ninguém pode me ajudar. Só eu mesma posso fazer isso.

─ E por que não o faz?

─ Eu não tenho o hábito de me meter na vida das pessoas, professor. Com qual direito está fazendo isto comigo? Vou me afastar das aulas.

─ Não faça isto. Não digo mais nada. Eu me interesso muito por você. Quero ajudá-la. Eu me apaixonei por você tão logo a vi.

Ela sente a sinceridade na voz e nos olhos do rapaz. A vida lhe ensinara aos poucos em quem devia confiar e ali estava alguém que seria digno de toda sua confiança.

─ Sinto que está sendo verdadeiro, mas é minha vida.

─ É infeliz demais... por que não se separa?

─ Não tenho como me manter ainda...

─ Sua família.

─ Não tenho a quem recorrer.

─ Podemos...

─ É muito cedo. Eu não quero que diga mais nada.

─ Mas posso ter esperanças?

─ Não sei... é muito cedo...

Os olhares de Leo a queimando. Marcela achava em certas horas, que seria melhor se afastar das aulas, mas ao mesmo tempo sentia algo novo nascendo em si.

A mãe havia lhe dito que quando o amor chegasse iria se arrepender amargamente do gesto louco de ter se casado tão apressadamente. Já havia se arrependido. Já se maldissera mil vezes, mas agora entendia melhor o que a mãe estava querendo lhe mostrar. Desejava viver o amor e via as impossibilidades. Elvio a mataria, se soubesse. Guardaria os sentimentos dentro de si.

Mas quando o amor nasce ele não quer ficar guardado num canto. O amor quer falar ao mundo, quer gritar.

Separação. A única saída. Diria ao marido que queria separar-se. Ele colocaria empecilhos? Talvez não. Não a amava também...

─ Elvio, precisamos falar.

─ Sou todo ouvidos. Do que vai se queixar agora?

─ Eu nem me queixo...

─ Não com palavras, mas com estes olhos morteiros. Estes olhos dolorosos que se arrastam por esta casa, como se seu fardo pesasse demais.

─ Não é assim...

─ E como é então? Vive a rir? A cantarolar?

─ Nunca fui muito de rir. Meu jeito é este.

─ Um jeito horrível de ser. De quem comeu e não gostou. Que péssimo negócio fez hein, menina? Casou-se mal... não sei se me faz rir ou chorar. É uma piada? Uma menina tola se casa com um tolo e pensam que podem ser felizes... nós dois nos demos mal, esta é a verdade.

─ Vamos corrigir tudo isso. Quero me separar.

─ Por que separar? Arranjou outro besta?

Marcela empalideceu.

─ Arranjou é claro. Está escrito nos seus olhos. Vá, pode ir.

Dizendo isso o marido começou a passar mal.

E gritando:

─ Vá, mulher infiel!

─ Eu não traí você.

─ Nem em pensamento?

─ Não seja tolo, Elvio...

─ Eu a odeio. Vá, vá!

Ela pôde notar que ele estava mesmo passando muito mal.

─ O que está sentindo?

─ Ódio!

─ Falo sério. O que está sentindo?

De repente, com a mão apertando fortemente a cabeça, ele caiu no chão e ela saiu em busca de socorro. Uma ambulância o levou e ele esteve por alguns dias internado numa unidade de terapia intensiva. Um derrame cerebral quase o levou.

Depois de vários dias hospitalizado ele voltou para casa e os movimentos do lado esquerdo do corpo estavam totalmente perdidos. Dependia da mulher para tudo e ela foi ficando.

Abandonou as aulas e um dia Leo a procurou.

─ Não posso deixá-lo no estado em que está. Íamos nos separar, mas aconteceu isto.

─ Que pena! Poderíamos ser tão felizes...

─ É minha obrigação como mulher.

─ Eu a admiro e lhe digo que a espero. Ele vai ficar bom.

─ Eu espero que fique.

Leo voltou a procurá-la e os dois acabaram por ter um caso. Ela não podia abandonar o marido no estado em que estava, mas havia se apaixonado pelo homem que a tratava tão carinhosamente.

Conseguiu uma pessoa para cuidar do marido todas as quartas e sextas à tarde e ia se encontrar com Leo. Os dois ficavam ouvindo música, dançavam na sala da casa dele e faziam amor de uma forma que ela sempre havia desejado.

IX

Os dois sofriam com a situação e nas horas que passavam juntos procuravam viver de uma forma tal que suprisse as que passavam distante.

As carícias que trocavam, os olhares, as frases de amor preenchiam aquelas tardes e a música os envolvia completamente. Adoravam ouvir músicas ciganas e ao som delas muitas vezes fizeram amor ou passaram horas abraçadinhos pouco se importando com o mundo lá fora.

Um ano todo se passou assim, sem que Elvio manifestasse alguma melhora.

Depois de quase três anos naquele estado e a mulher mantendo um secreto romance ele começou a melhorar.

Os movimentos foram voltando e ele já não precisava mais da ajuda de Marcela. Ela voltou a trabalhar e pensava numa maneira de deixá-lo. Penalizava-se, mas não via sentido em continuar ali.

Leo a chamava para morarem juntos e ela vivia dizendo que esperasse mais um pouco.

Temia pelo momento de dizer novamente ao marido que desejava partir.

Ele não era nenhum bobo. Sabia que ela não o amava. Que ela só ficara aqueles anos por pena ao seu lado.

─ Elvio...

─ Já sei o que vai dizer. Que vai me deixar...

Marcela não pôde deixar de sentir uma pontada no peito. Afinal fora seu marido. Estivera tão fragilizado pela doença. Temia que ele novamente tivesse um derrame, um infarto, ou coisa parecida.

─ Não podemos mandar no coração, Elvio...

─ Não podemos mesmo. Eu fiz tudo errado. Foi com um sentimento de posse que a tratei. Eu não me julgava digno de você, esta é a mais pura verdade. Quantas vezes me amaldiçoei por tê-la tirada de casa para viver uma vida de cão ao meu lado! Eu a amei, mas nunca entendi muito de amor e coisas assim. Eu a queria. Mas queria que me amasse, queria que me admirasse. Na verdade nunca fui digno de você, princesa. Nunca mereci seu amor. Este cara é um cara de sorte, vai ter uma mulher maravilhosa. Vá, pode ir sossegada. Não vou passar mal como daquela vez. Eu agradeço por estes anos de renúncia, de sacrifício. Eu a abençôo. Vá. Seja feliz. E não se sinta culpada por aquelas tardes...

─ Você sabia?

─ Quando você voltava estava escrito nos seus olhos. Não precisa se envergonhar disso e nem sentir culpa. Você vinha com uns olhos tão felizes e ao mesmo tempo tão tristes. Seja feliz com ele e perdoe este cara que não lhe soube merecer, este cara que nunca entendeu direito as coisas do amor. Não olhe para trás. Não vá querer se transformar numa estátua de sal. Vá menina! Vá!

Ela juntou suas coisas e mudou-se para a casa de Leonardo.

Enquanto o aguardava chegar da padaria pensava em Elvio. Em seus olhos negros. Não haviam nascido um para o outro e passaram tantos anos juntos.

Precisara sofrer tanto tempo por ter tido um dia um gesto inconseqüente? Ou existem explicações muito maiores que esta?

─ Querida! Cheguei. O pão está tão quentinho. Não se levantou ainda?

─ Não. A cama está tão gostosa.

─ Então vou me deitar aí com você.

─ Venha, amor, e coloque aquela música cigana. Aquela que eu tanto gosto. É a nossa lua-de-mel... podemos nos dar ao luxo de atrasar um pouco nestes primeiros dias...

SONIA DELSIN
Enviado por SONIA DELSIN em 18/12/2007
Reeditado em 24/03/2011
Código do texto: T782947
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