ASAS LITERÁRIAS

Aparentemente, chego bem ao final de mais um dia. Em verdade, todos eles são iguais: monótonos, rotineiros, e desprovidos de aventuras ou emoções. Até mesmo a expectativa gerada por situações novas no ambiente de trabalho deu lugar à mesmice: o tédio por fazer sempre a mesma coisa, fruto de muitas décadas de atividades rotineiras. Espero por uma folga inútil, já que a mesma vem fadada a terminar como começa: enfadonha! Aos olhos alheios, devo parecer invisível, sem graça, tipo uma cor pastel a passar incólume em meio ao burburinho de matizes vibrantes que a vida oferece. Contudo, nem sempre fui assim, devo ressaltar. Como todo menino, também sonhei com viagens espaciais, jogos de futebol, aventuras inesquecíveis e solos de guitarra. James Bond, Capitão Kirk, Jacques Costeau, Pink Floyd, Júlio Verne. Pergunto-me quando deixei de lado a bondade da vida, o verdadeiro sentido da existência, ou seja, o desfrutar de bons momentos, uma vez que nossa estadia por aqui é efêmera, como todos dizem. Talvez quando passei a contribuir para o INSS, ou ao me tornar um eterno devedor do sistema de financiamento habitacional, aquela velha história de tabela Price, a qual nunca fui capaz de entender. Desconfio ser portador daquele problema psicológico muito em voga atualmente, o tal de transtorno obsessivo ou compulsivo, pois sempre faço as mesmas coisas, mesmo sem querer. A questão, porém, é que não obtenho alívio com estas atitudes. Para dizer a verdade, sinto-me como um idiota ansioso, com minhas preocupações mundanas e a velha mania de tentar corrigir os comportamentos alheios. Seria redundante demonstrar, caros leitores, a inutilidade deste meu estilo de vida, certo? Todos vocês já se deram conta do fato. Bem, hoje torturei-me com mais uma torrente de preocupações. Cumpro meu ritual antes de deitar-me. Os pensamentos em borbotões, como gêiseres eclodindo sobre as rochas vulcânicas outrora adormecidas de minha estrada. Agitado, relutante, sobressaltado... finalmente, adormeço.

Acordo inquieto como de costume. Estranhamente, porém, percebo algo inusitado:

 

─ Uai, de onde está vindo esta brisa quente?

─ Olá, meu caro amigo! Seja bem-vindo. Podemos começar nossa viagem?

 

Só, então, me dou conta. Vejo meu corpo dormindo, mas... flutuo a esmo, sem amarras! Tão surpreso quanto embevecido pela sensação agradável, sou sustentado por uma coluna de ar morno, vindo lá debaixo, bem debaixo, não sei de onde.

 

─ Estou sonhando, é isso! Já ouvi falar dessas viagens astrais, mas não sabia como eram. Então, é assim que os pássaros se sentem? Meu Deus, como é bom! Que paz! Não quero acordar, não quero...

─ Você precisa disso, Júlio César! Há tempos esqueceu-se de sua essência.

─ Quem é? Quem está falando? Como sabe meu nome? Não consigo te ver!

─ Quem sou eu não importa! Mas, você já me conhece desde que nasceu, só não se lembra. Agora vamos, Júlio, não temos tempo a perder antes de seu despertar. Venha, não tenha medo; é só planar mais um pouco. Olhe, lá está o nosso transporte!

 

De repente, não me vejo mais dormindo. O ambiente descortinou um horizonte muito azul, tipo céu de outono, sem nuvens. Lá no alto uma visão maravilhosa: um enorme balão multicolorido refletindo os raios solares, irresistível. Sou irremediavelmente atraído. Não há como escapar. Eis que estou dentro do cesto. A visão é maravilhosa, quase incompreensível: enxergo muito mais. Tenho olhos de águia. O horizonte multiplicou-se. Diviso a curva da Terra, de maneira tão natural como antevejo minhas mãos, embora elas pareçam estranhas, meio etéreas agora.

 

─ Não se assuste, Júlio César! Este é seu espírito, do qual você não tem cuidado muito, não é mesmo?

─ Olha, cara, se não me disser seu nome eu...

─ Pode chamar-me de Juca.

─ Mas, este é meu apelido de criança!

─ É mesmo? Que coincidência! Mas... ninguém tem te chamado assim, né?

─ Agora que você falou... verdade! Não tinha percebido...

─ Olha Júlio César, a vida, infelizmente, é assim. Sem notarmos, deixamos pouco-a-pouco de dar valor às coisas realmente importantes. Bom, chega de conversa, está na hora de partir. Vamos, Júlio, nos resta pouco tempo!

 

O fluxo vertical de ar aquecido transformou-se como por encanto em horizontal, e vi-me impulsionado à frente, em velocidade indescritível rumo àquele horizonte infinito, tão imenso como a sensação de liberdade a tomar-me de assalto. De todos os lados, vindos não se sabe de onde, bandos de pássaros os mais diversos: cegonhas brancas como a neve, patos de asas azuis e pescoços esverdeados, urubus-rei em tons de preto, branco e cinza, majestosas águias marrons com caudas claras, gralhas da cor da noite. Aves de grande altitude, acompanhando, fascinadas, meu voo rumo ao desconhecido. O astro-rei reinava soberano, emprestando seu brilho dourado ao nosso cortejo e iluminando nosso percurso. Lembrei-me de Ícaro.

 

─ Juca, não estamos perto demais?

 

No instante seguinte, de forma inexplicável, o céu de brigadeiro foi tomado por densas nuvens cumulus. Mergulhamos às cegas, subitamente, em ambiente carregado de trovões e relâmpagos. A sensação de pavor, porém, findou-se tão rapidamente como começou, já que logo estávamos novamente livres e ilesos, acima daquele campo turbulento. Meus companheiros alados saudaram-me grasnando e sacudindo suas belas asas. Ao longe, surpreendi-me com uma grande área de penumbra em gigantesca meia lua. “Então, é assim que a noite chega? Mas, o dia ainda está aqui, como pode?” O manto negro da noite atingiu-nos em grande velocidade. A visão dos pássaros deu lugar às constelações, em sua dança eterna. Tudo corria muito rápido, em movimento repetitivo e harmônico. Discerni, perfeitamente, a oposição de Órion e Escorpião. O cinturão de Órion apontava para Sirius, a qual confrontava Canopus, na constelação de Carina. No ápice do céu noturno reinavam Júpiter, com sua grande mancha e suas quatro luas, além de Saturno e seus belos anéis. “Mas, mas, como? A olho nu, sem telescópio? Impossível...

 

─ Júlio, nada é impossível, se você der voz ao seu coração. Lembra-se? Sua essência...

 

A imersão naquele planetário natural proporcionou-me momentos inesquecíveis. Minhas dores haviam sumido. A paz invasora de minha alma tirou-me o receio e angústia. Se fosse o fim, partiria feliz...

 

─ Nada disso, Júlio! Olhe para baixo!

 

A noite tornou-se clara, tal qual uma aurora. O cesto resvalou em folhas de árvores altas. Um roteiro alucinante de diferentes paisagens desfilou sob a gôndola de meu balão. Rios cortavam densas florestas tropicais. Campos de cerrado e caatinga. Cânions. Altas montanhas nevadas. Praias selvagens em ilhas rochosas. Campos de tundras e estepes. Desertos áridos. Savanas africanas. Baobás seculares de quase 10 metros de circunferência. Seringueiras e Ipês com suas raízes profundas, as quais, milagrosamente, fui capaz de enxergar! Compondo a visão da fauna, manadas de zebras, elefantes e gnus, cardumes de peixes tropicais, inúmeras baleias jubarte, revoadas de garças e pelicanos. Do alto, a vida desenhava mosaicos plenos de cores e movimentos, tal qual um caleidoscópio divino a me hipnotizar.

 

─ Juca, Juca, é maravilhoso! Não me deixe despertar, por favor, mostre-me mais! Minha vida tem sido tão... tão... melhor não dizer! Onde vamos agora?

─ Júlio, isso importa? Reflita, meu jovem: a verdadeira viagem é o caminho. Até onde se pode ir, não devemos saber. O destino não nos pertence. A lição final é a necessidade de caminhar, seguir em frente, aprender mais e mais. Levar apenas a bagagem útil. Deixar para trás o peso morto, o qual nada nos acrescenta.

─ Mas, mas... Juca, se eu tivesse um balão como esse! Ninguém iria me segurar, sabe, eu...

─ Você tem sim, Júlio César! Contudo, esqueceu-se dele. Deixou de lado suas asas literárias, capazes de te fazer voar. Deixou de imaginar e criar mundos exóticos, universos distantes e seres mitológicos. Desistiu de propagar histórias interessantes, de cultivar sua própria mente com pensamentos lúdicos, ao invés de sobrecarregá-la com ruminações pessimistas e inúteis.

─ Eu, eu... costumava fazer isso na adolescência! Hoje, não tenho mais tempo!

─ Júlio César... Juca! A vida perde o sentido se não nos divertirmos. Agir como autômatos sufoca toda a alegria e o prazer de estar aqui. Nosso tempo é ínfimo e nossas angústias, passageiras. Eu... quero dizer, você... adorava ler. Incorporávamos os personagens e suas aventuras; mais tarde, arriscamo-nos a escrever, não está lembrado?

─ Quer dizer... você e eu, então... somos um só? Você é meu passado?

─ Sim, Juca! Não se recorda mais? Escrever te alivia! Mãos à obra com tua poesia, meu rapaz! Não se preocupe em chegar a nenhum lugar... apenas vá, entendeu? Não esmoreça! O sol e a luz que te faltam estão logo à frente! Vamos, juntos, você e eu, adiante!

 

Uma luz intensa e cegante, repentina... abri os olhos, alertado pelos pios dos sabiás-do-campo. Defronte à cama, meus olhos ainda remelentos dirigiram-se ao velho computador Lenovo, largado na prateleira mais alta do armário embutido. Um velho retrato de minha infância também ali estava: Vítor, Pedrinho e eu... Juquinha. Levantei-me de um pulo, tomei apressadamente o café e abri o velho notebook. Meus dedos voavam, como nos velhos tempos:

 

“Eu queria escrever um conto, ou uma crônica, ou talvez uma poesia, qualquer conjunto de palavras que chegasse até você, amigo leitor que perde um pouco do teu tempo comigo. Eu queria que nunca te faltasse a luz!”

 

 

 

Obs: conto inspirado no texto “Carta ao Leitor Ansioso”, de minha própria autoria.