O chamado do lobisomem

Os pensamentos corriam soltos enquanto observava as cidades passarem pela janela do trem. Sentia-me perdido agora que estava sozinho no mundo. Acabara de enterrar minha mãe e seguia para casa de minha tia, que só conhecia por foto. A mãe não gostava de falar de seu passado, principalmente quando o assunto era meu pai. Quando perguntava sobre ele seus olhos anuviavam. Com o tempo aprendi a não tocar mais no assunto. Não era uma mulher feliz. Em seu leito de morte, assegurou-me que a irmã cuidaria de mim. Fez-me prometer que jamais andaria sozinho pela mata que existia ao redor da casa da tia, sem muita explicação. Jurei-lhe. Ela sorriu ao segurar a pedra escarlate que eu sempre trazia pendurada no pescoço, seu presente para mim desde que nascera.

A vegetação começou a tomar conta da paisagem conforme me aproximava do meu destino. Aportei na estação sem saber ao certo se alguém viria me buscar. Tinha o endereço caso precisasse tomar uma condução. Respirei o ar do campo naquele começo de tarde, observando as pessoas ao meu redor. Segui até o guichê para pedir informações sobre algum veículo que pudesse me levar até ao sítio onde era aguardado.

— Boa tarde — disse ao homem por detrás do vidro.

— Boa tarde — respondeu alegre antes de erguer os olhos em minha direção. Assim que mirou em meu rosto, o sorriso morreu nos lábios. Benzeu-se, deixando-me atônito.

— O senhor sabe se há algum meio de transporte até o Sítio do Lobo?

Antes que ele pudesse responder, alguém me chamou e, ao virar na direção da voz, vi um rapazinho de mais ou menos minha idade. Sorri-lhe, aliviado.

— Eu sou o Tião. Seu primo. A mãe tá te esperando — informou, estendendo-me a mão.

— Que bom que você veio me buscar, Tião. Acho que o senhor do guichê não ficou muito feliz em me ver.

— O que o primo quer dizer?

— Não sei exatamente. Ele se benzeu quando viu meu rosto. Há algo de errado nele? — questionei, limpando a face.

— Tem nada não, primo. Vamos seguir caminho. A noite já vai cair.

Conversamos banalidades durante o trajeto cercado de árvores. Ali me sentia leve, tranquilo, como se tivesse encontrado meu lugar no mundo. Passamos pela porteira e ao fechá-la, um farfalhar se fez ouvir à minha direita. Senti a mão de Tião ficar tensa nas rédeas.

— O que houve? — indaguei, vendo-o pegar o reio, pronto para golpear o flanco do cavalo.

— Já tá ficando tarde — retrucou, erguendo o chicote, pronto para lançar no flanco do cavalo.

Antes que o fizesse, um enorme cão pastor-alemão saiu de dentro da mata, latindo e vindo em nossa direção. O Tião sorriu, relaxando a mão, e então pude ver um imenso alívio em seu rosto.

— De quem é? — perguntei-lhe assim que o cão passou a nos acompanhar.

— Esse é o Cisco. É lá de casa. Adora andar à toa por ai.

— Sempre quis ter um cão, mas mamãe nunca permitiu.

O danado disparou na nossa frente latindo feliz. Na varanda da casa, uma mulher nos esperava. Sorriu timidamente ao me ver na tarde que morria. Estendeu a mão e antes que pudesse apertá-la ela olhou à frente, onde um farfalhar nas árvores chamou sua atenção.

— Entrem! — ordenou de forma rude.

A casa nada tinha de especial. Era grande e cheirava a pão fresco. Os móveis, bem antigos, lembravam uma época de riqueza que há muito se fora. Foi destinado que eu dormiria no mesmo quarto que Tião, embora houvesse várias portas no corredor. Antes que pudesse pedir um só para mim, a tia foi adiantando, meio nervosa:

— Bernardo, você ficará com o Tião. Ele vai tomar conta de você. — informou, saindo repentinamente do quarto.

— O que ela quis dizer sobre você tomar conta de mim? Sei me cuidar muito bem — Senti-me ofendido, mas dei uma olhada no rosto do primo e me calei. Seus olhos pareciam preocupados.

— A mãe não disse por mal. Você não sabe andar no meio do mato, sabe? Pode ser perigoso depois que escurece.

— Você nunca sai? Não vai à cidade se divertir à noite?

— É claro que saio, mas apenas quando é seguro.

— Quando é seguro? Não sei se estou entendendo.

— Venha, primo. Vou te mostrar a casa. Você deve estar cansado.

Fizemos uma refeição saborosa e tensa. A tia não era de muitas palavras e parecia sempre irrequieta. Às vezes trazia nos olhos a mesma expressão que minha mãe. Senti saudade dela. Minha vida mudara da água para o vinho depois que ela se fora. Estava agradecido por ter um teto sobre a cabeça, entretanto, aquela gente boa parecia sombria. Deitei-me e demorei a dormir, ouvindo a canção do vento. Creio ter cochilado, pois acordei de súbito, ouvindo um uivo alto e feroz que vinha da mata. O latido dos cães me assustou. Senti-me aterrorizado, entretanto, algo se agitou dentro de mim. O uivo mais longo parecia-me um chamado. Saltei da cama e, ao colocar a mão na janela, Tião me abordou:

— Não abra!

Virei-me enfastiado, diante de sua autoridade. Será que seria um prisioneiro naquela casa?

— Quero ver de onde vem esse uivo. Sabe o que é?

— Sei. E por isso mesmo digo que não é para abrir a janela.

— O que está acontecendo? Reparei que você e a tia ficaram trocando olhares o tempo todo durante o jantar.

— Impressão sua, primo. Volte a dormir.

Resignado, voltei à cama, contudo não conseguir conciliar o sono. Aquela agora era minha família, contudo seria quase impossível penetrar em seus segredos.

***

O dia clareou cedinho e Tião já estava me chamando para tomar o café. Levantei meio amortecido pela noite mal dormida. Joguei água no rosto e o cheiro do pão fresquinho e do café pareceu melhorar meu ânimo. Iríamos buscar algumas ferramentas na cidade para o tio, que logo mais chegaria com a boiada.

Enquanto Tião comprava as ferramentas, fiquei na carroça. As pessoas me encaravam desconfiadas e aquilo já estava começando a surtir um efeito negativo em mim. Ao longe avistei um homem que caminhava trôpego pela estradinha. Parecia não tirar os olhos de mim enquanto se aproximava. Era de estatura baixa, barbudo. Parecia um andarilho, desses tão comuns nas cidades, que vivem em baixo das marquises dos supermercados. Nossos olhos se encontraram e senti um arrepio percorrer a espinha. Algo de estranho me prendia àquele olhar. Encarou-me enquanto passava por mim e continuou olhando por sobre o ombro, seguindo em direção à estação de trem. Percebi que os transeuntes se esquivavam dele. Homens faziam questão de mostrar os revólveres que traziam pendurados na cintura.

— Primo? — chamou Tião, assim que me viu encarando o velho. Colocou as ferramentas na carroça e saltou no banco, pegando as rédeas — Vamos sair daqui. — ordenou, nervoso.

— Quem é o velho? Por que todo mundo parece ter medo dele?

— É alguém de quem não gostamos. Vamos encontrar o pai.

Naquela noite, cansado da lida com o gado, ouvi novamente aquele uivo incessante no terreiro. O primo Tião resmungava, adormecido. Esperei até ter a certeza de que seu sono corria solto e então, bem devagar, abri a janela. Aquele chamado pareceu se intensificar. Olhei para a escuridão, alumiada pela lua gigantesca e nada vi. Aquele som tinha um poder sobre mim. Sentia um anseio de liberdade ao ouvi-lo. Coloquei um pé na janela, pronto para pular no terreiro, quando o vi. A princípio pensei tratar-se de um cão negro, enorme. Entretanto, logo ficou sobre as patas traseiras e uivou mais forte, chamando-me. Seus pelos eram espessos e negros e seus olhos vermelho escarlate. Senti a pedra que trazia no peito queimar a pele. Agarrei-a e a fera rosnou. Antes que pudesse fechar a janela, ele saltou e num segundo ficamos cara a cara. O grito morreu na garganta. Acreditei que morreria por imprudência.

O lobisomem ergueu a mão e agarrou o cordão que envolvia meu pescoço. Admirou o presente dado por minha mãe no dia de sua morte, rosnando para a pedra. Em poucos segundos esfarelou-a diante de meus olhos banzados. Então algo começou a acontecer no meu corpo. A dor foi lancinante. Os ossos pareciam estalar nas juntas ao mesmo tempo em que se entortavam e cresciam. Senti a face mudar e meus sentidos ficarem alerta. Tentei gritar, mas tudo o que saiu foi um uivo inumano. A fera parecia feliz. Saltou para o terreiro, convidando-me a segui-lo. Ele ergueu os braços e disse num uivo majestoso, entendido apenas por seus pares: Eu sou seu pai. A brisa acariciava os pelos densos. Nunca me senti tão feliz na vida.

Amanda Kraft
Enviado por Amanda Kraft em 15/06/2023
Código do texto: T7814629
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