A Vingança do Relâmpago

Uma. Duas. Quatro. Dezesseis. Trinta e dois. Dezenas. Centenas de gotas rasgando a continuidade da tela escura da noite. Tela esta pintada com densas nuvens, claros relâmpagos e intensos trovões. A chuva havia chegado, e fazia de tudo para avisar sobre a sua chegada e sua presença. Especialmente com suas gotas especiais. Gotas duras e sólidas, tal qual água congelada. Granizo… mas um granizo especial. Um granizo brilhante. Um granizo embebido com luz. Uma luz semelhante à dos relâmpagos, só que com uma menor intensidade. Como se as nuvens tivessem mergulhado aquelas gotas nos relâmpagos. Petrificados e infundidos com sua essência. Pedaços de eletricidade contidos naquele granizo tal qual doce contido em embalagem de plástico.

Passos vindos de um interior de uma casa. Pequenos, rápidos, fracos, porém cheios de vida. A rapidez com a qual um pé sucedia o outro apontava um flamejante desejo de diversão e curiosidade. Um desejo cujo destino ficava do lado de fora da casa. Passos tão vivos quanto a vitalidade de um garotinho. O barulho do granizo sobre o telhado bem acima de sua cabeça poderia até tentar sufocar o som dos seus passos, mas para ele, não importava. Ouvia muito bem seus próprios passos, mas não demoraria até que eles fossem engolidos pelo cair do granizo. Não havia problema, porém. Era o seu principal desejo.

O autor dos passos saiu da porta entre a cozinha e a varanda de sua casa. Cabelos marrons, pele morena, calças azuis e uma camiseta branca. Tinha uma garrafa de vidro com 2 litros de capacidade em mãos. Uma tampa de borracha, abraçada por uma argola de metal, estando esta sustentada por dois fios firmes de metal, com suas outras extremidades presas à outra argola de metal ao redor do pescoço da garrafa. Seus ligeiros e ágeis passos quase o colocaram de encontro às suas botas na borda do chão de azulejos brancos, mas foram impedidos por uma força que o puxou pela gola de sua camiseta. Ele virou seu rosto, e viu sua mãe. Vestido florido, cabelos encaracolados marrons soltos, pele morena. Segurava sua gola com uma mão, e com a outra, lhe oferecia uma capa de chuva e uma lanterna. Seu rosto tinha um semblante sério, e seu corpo estava próximo a uma pia para lavagem de roupas. Seu vestido encontrava-se levemente molhado por conta da água. O garoto aceitou a capa de chuva e a lanterna, gesto este respondido por um sorriso largo no rosto de sua mãe. Ela se abaixou para beijar sua testa, o seu menino respondeu aquilo com um abraço. A grande altura de sua mãe quase encobriu sua pequenez. No entanto, sentiu como se estivesse sendo coberto pelo amor dela. Por fim, ele pegou as botas, vestiu a capa de chuva, ligou a lanterna e se aventurou na noite tempestuosa.

***

Sua transparente garrafa não tinha sorte na sua caçada de pedrinhas luminosas. Conduzia seu instrumento de captura para a esquerda a para a direita, mas não tinha nenhum sucesso. Girava seu corpo, sua capa, sua lanterna e sua garrafa. A cada giro, conseguia sentir o peso dos objetos, especialmente da garrafa. A cada segundo, seu interior se enchia de granizos. Estaria feliz caso visse uma luz forte de seu interior, porém o cinza enfadonho dos granizos normais o desanimaram cada vez mais. Havia se aventurado por outros espaços no vilarejo perto de sua casa para tentar capturar as tão cobiçadas pedrinhas brilhantes. Porém tudo o que consegui foi nada. Um nada, outro nada, mais um nada e um especial nada. Seu descontentamento vazave pelo seu rosto toda vez que esvaziava toda a água de chuva acumulada pela garrafa, ou quando a olhava cheia de granizos tão desprovidos de brilho quanto a sua sorte. Tentou as florestas, os campos abertos, o reino do mato, porém nenhum deles o agraciou com os granizos brilhantes.

Saíra de casa tão animado, feliz e esperançoso… para acabar desanimado e frustrado.

***

O garotinho andava decepcionado pelas estradas de terra. As fileiras de postes de luz amarela iluminavam seu descontentamento. Carregava o peso da sua capa de chuva, a lanterna desligada e a ligeiramente pesada garrafa cheia de pedrinhas cinzentas e sem graça. Toda a sua esperança, felicidade e curiosidade foram brutalmente aniquilados pela ausência dos luminosos granizos.

Não demorou muito pelo som das suas botas sobre poças de lama receber a companhia de sons similares. Sons desencadeados por botas tão pequenas quanto as dele. Alguns eram disparados junto com sons idênticos, porém mais altos. Andou um pouquinho e viu crianças tão novas quanto ele, acompanhadas dos pais. Eles andavam com capas de chuva parecidas com as dele. Algumas amarelas, outras azuis, e até mesmo algumas esverdeadas. Viu algumas capas enegrecidas, podendo ser facilmente confundidas com vultos andantes no meio da noite, se não fosse pelo véu de luz dos postes. A aparência deles não lhe despertava a atenção. Além dos sons de botas sobre poças, ouvia sons de risadas compartilhadas entre adultos e crianças. Olhava para eles para saber o motivo de suas felicidades, e o motivo lhe despertava tristeza.

As crianças e seus pais não mantinham suas lanternas ligadas. Eles conseguiam caminhar na estrada de terra, mas não ligavam para a luz dos postes. Eles tinham sua própria luz. Luzes contidas em garrafas. Garrafas cheias de granizos brilhantes, embebidos de pequeninos fragmentos de relâmpagos. Eles iluminavam seus caminhos, seus sorrisos, suas risadas e suas alegrias, além da tarefa de provocar aquelas reações. Quanto mais via famílias naquela cena, sua vontade de jogar sua garrafa no chão e correr para casa com lágrimas em seus olhos crescia. Estava perto de fazer aquilo. Quando olhou para a linha de postes, porém, viu o fim de seu trajeto: Um recanto alto, no alto de um baixo morro, sendo guardado por uma íngreme, porém acessível à subida. O garotinho viu aquele recanto como sua última esperança. Teria mais uma chance para coletar os granizos brilhantes, caso não conseguisse, ele desistiria de uma vez.

***

A subida até o topo fora cansativa, porém não foi algo impossível de se fazer. Suas pernas estavam cansadas, sua respiração estava ofegante, seu corpo estava quente e sentia pequenas gotas de água descer pelo seu corpo, por baixo de suas roupas. No começo, achou que haviam se originado por conta da chuva. Todavia, elas não estavam tão geladas quanto as coisas que vinham do céu.

O espaço não era tão aberto quanto pensava ser, a julgar pelas vista na base da subida. Era o recanto do último elo da fila de postes de luz. Um terreno baldio com terra plana, sem imperfeições aparentes. Não era espaçoso o suficiente para abrigar uma casa, porém era espaçoso o suficiente para abrigar alguns carros. Não duvidaria que aquele espaço poderia servir como um estacionamento algum dia. Na beira daquele espaço, na extremidade oposta àquela guardada por florestas densas que serviram como negras cortinas, havia uma pedra. Uma grande pedra, que tinha dimensões similares à uma banheira. Firmemente fixada ao chão, perto do fim da borda.

O garoto subiu sobre aquela pedra, e viu não somente a sua, como também outras casas perto das dele. Com atenção, podia ver todas as casas do vilarejo. Sentia-se como o dono do mundo. Aquele mais perto dos céus. Sentia-se acima de todos e logo abaixo das nuvens. O elo entre a terra e o celestial.

Ele pegou a garrafa e a levantou, na esperança de finalmente pegar alguns granizos luminosos. Sua última cartada para pegar aquelas pedrinhas brilhantes.

Viu sua garrafa se encher de água e granizos normais. Seu rosto reagiu àquilo com uma expressão de pura raiva e insatisfação. Continuou na mesma posição, porém levantou a garrafa o mais alto que poderia.Apoiar ela na ponta dos seus dedos; esticar e retificar o corpo; ficar nas pontas dos pés…Tentou de tudo. Ao mesmo tempo que se esforçava para alcançar o ponto mais alto, os graves e intensos tambores dos céus tocaram longe dele. Estavam distantes, mas a julgar pelo volume, pareciam que estavam perto. A cada segundo, o som se tornava mais intenso e mais próximo, e junto a ele estava um clarão dançante dentro das nuvens. A cada trovão, um clarão de luz mais rápido e mais perto. Poderia para aquilo e dar mais atenção para sua segurança, mas sua teimosia, ignorância e coragem falavam mais alto.

Seu esforço se traduziu em dor. Havia chegado ao seu máximo para levantar a garrafa para o alto. Fechou os olhos, a fim de concentrar mais forças para seus músculos.

Os trovões eram tocados logo acima dele. Alguns dos clarões conseguiam passar a barreira escura das suas pálpebras e iluminar seus olhos.

Uma espada luminosa rasgou a massa de ar logo acima dele. Ela golpeou a rocha logo abaixo dele, pisoteada por seus pés. Mesmo que não o tenha acertado diretamente, ela despedaçou e destruiu a rocha. Ele foi lançado para longe. Seus olhos, antes fechados para aguentar a dor e canalizar forças, não se abriram com o choque do impacto. Sua garrafa foi violentamente afastada de suas mãos. Foi lançado para os arbustos e árvores do outro lado do espaço. Não tinha mais forças para levantar e nem se mover. Sem forças para abrir os olhos e observar o que havia acabado de acontecer.

Sem forças para permanecer acordado e consciente.

***

Sentia seu corpo. Sentia dores. Sentia seus membros e podia movê-los. O garotinho moveu os braços para perto de seu corpo, pousou as mãos espalmadas sobre o chão e se levantou. Abriu os olhos, e viu o chão de terra molhada abaixo de seu corpo. O rosto estava dolorido e sujo de lama. Usou as mãos para tirar a lama, porém cada toque era um intensificador da sensação de dor. Sentia dores principalmente na coluna, e foram elas que dificultaram o início do seu levantar. Uma dor insuportável, fazendo-o duvidar se poderia ser capaz de ficar em pé por muito tempo, ou até mesmo andar normalmente.

Lágrimas desciam de seus olhos. Princípios de soluço invadiam sua garganta. Se esforçou tanto para pegar os granizos brilhantes, e quase acabara de morrer.

Deu a primeira fungada no nariz, precedendo a primeira nota da sinfonia do choro…A primeira fungada…Só que ela veio acompanhada de mãos dadas com um cheiro de queimado. Ele olhou para onde estava, e viu a rocha quase totalmente destruída pelo relâmpago. Por sorte, ele não fez companhia à rocha no que diz respeito em ter seu corpo destroçado. Nem sua garrafa…

Sua garrafa. Ele a soltou depois de ter sido atirado para longe pelo relâmpago. Não soube para onde ela foi… Se ela sumiu, se ela foi jogada para longe, se ela se quebrou em pedaços tão pequenos quanto os granizos desejados.

Enquanto seus pensamentos tomavam forma, ouviu um som estranho. Algo batendo dentro de um vidro. Algo inquieto e ansioso. Algo elétrico…

Ele ficou curioso. Guiou-se pelo cheiro de queimado do lugar onde ficou antes do cair do relâmpago. Apesar do catarro, o cheiro era forte e imponente. Andou lentamente até o que restou da pedra, o tanto que suas dores permitiam. O cheiro de pedra queimada se intensificou. Viu nos arredores lascas queimadas e eletrizadas. Algumas quase do tamanho de sua cabeça. Se aproximou da cratera formada pelo relâmpago, o berço do seu martelar, tomando cuidado com o calor pintado sobre as pedras. O crepitar elétrico se fortalecia cada vez mais, e podia ver uma luz sair da cratera. Uma luz similar à dos granizos brilhantes.

A visão da cratera interrompeu todo e qualquer sinal dentro de sua mente que o mandava chorar. O choro foi trocado por uma expressão de fascínio, espanto e curiosidade. Seus olhos secaram das lágrimas, ficando arregalados e secos como pequenos desertos globosos. Seu nariz era povoado pelo cheiro de calor na sua frente. Sua boca estava aberta, o máximo permitido pela sua mandíbula. Queria proferir palavras de espanto, porém o espanto era tamanho que roubou-lhe a capacidade de falar.

Sua garrafa estava intacta, porém isso não foi o que lhe surpreendeu. O motivo da surpresa era a forma luminosa e densa dentro dela. Batendo, rebatendo e retorcendo-se dentro da garrafa. Um chicote de luz, tão luminoso quanto os granizos brilhantes dentro das garrafas das outras crianças da vila. E ele estava lá, dentro da garrafa, com a tampa de borracha fechada. Iluminando seus olhos com um denso brilho, tal qual uma lanterna.

O garoto se aproximou com cautela. Diferente de antes, sua lentidão não era por conta das dores, apesar destas terem sido esquecidas. Era por conta do medo. Preocupação. Receio. Aproximou-se da garrafa como se ela fosse um animal selvagem e mortal. Quanto mais perto estava, mais o seu brilho era irritante aos olhos. No entanto, não era incômodo a ponto do garoto cobrir os olhos com as mãos.

Apoiou os joelhos sobre a pedra quente. Pegou a garrafa com suas mãozinhas. Era quente, mas suportável. Pesado, porém não muito a ponto de não ser sustentada pelos seus bracinhos. Sentia como se estivesse segurando o filhote de um leão. Pequeno em seus braços e dotado de um potencial para machucá-lo, ou até mesmo matá-lo.

Tão assustador, mas tão fascinante. O garoto não podia acreditar na visão do relâmpago confinado em uma garrafa em suas mãos. Carregava um animal selvagem em seus membros. No começo, teve medo de ser atacado novamente. Entretanto, a visão daquele raio encapsulado em vidro o tranquilizou e cativou. Deu meia volta e saiu daquele lugar, com um sorriso de orelha a orelha.

Sua capa de chuva o protegia dos granizos e das gotas de chuva. Suas botas o protegiam da lama. Sua lanterna deveria protegê-lo da escuridão, mas o relâmpago fazia bem o seu papel. Não se incomodava com os sons deste batendo e estalando dentro da garrafa. As crianças e seus pais que viu na volta para casa, por outro lado, se assustavam. Eles desmanchavam seus sorrisos voltados para os granizos luminosos capturados por seus filhos e filhas e esboçaram rostos de horror, curiosidade e espanto. Alguns deles só olhavam e encaravam. Outros perguntavam sobre o relâmpago confinado, e houveram até mesmo pessoas que tentaram tirar as garrafas da mão do garotinho. Ele, no entanto, não se incomodou. Foi até o terreno com um objetivo, e voltou com um tesouro muito melhor que os granizos.

O som do relâmpago e o seu brilho envidraçado denunciaram a chegada do garoto para a sua mãe. Ela estava reorganizando suas plantas no meio da noite chuvosa quando sua visão periférica e seus ouvidos notaram a presença do seu amado filho. A expressão levemente concentrada mudou para uma expressão de alegria quando se virou para ele, porém quando o relâmpago foi captado pelos seus olhos, ela mudou rapidamente para uma expressão de absoluto espanto. Ela perguntou sobre o conteúdo daquela garrafa para o seu filho, pois seus olhos não acreditavam no que eles viam. Nem mesmo a literal resposta de seu filho, falando apenas "um relâmpago", ajudou sua incredulidade. Ela o vou entrar dentro de casa com uma garrafa brilhante em mãos. Sua expressão de espanto continuou, porém ao ver aquele raio selvagem ficar contido em vidro e borracha por alguns breves segundos, seu coração acalmou um pouco. Ela ficou se indagando sobre como seu filho conseguiu aquele feito extraordinário. Pensou e possibilidades, várias possibilidades. Aquele redemoinho de possibilidades giraria dentro de sua cabeça e não sabia quando iria parar. O conceito de um rapaz, seu filho, capturar um relâmpago e trancafiá-lo em vidro e borracha é surreal. Chegou a pensar que aquilo seria sorte, ou até mesmo um acaso no qual o relâmpago teria simplesmente adentrado a garrafa por sorte, sem cerimônias prévias. Por fim, deixou aqueles pensamentos correrem enquanto continuava com suas atividades.

O garoto chegou no seu simples quarto. Colocou a garrafa sobre uma prateleira ao lado de alguns brinquedos, como bonecos e carrinhos. A partir daquele momento, o relâmpago seria uma peça de diversão e entretenimento tal qual seus companheiros de prateleira. A julgar pelo olhar de fascínio do garoto ao colocar aquela garrafa sobre a madeira, observando quase boquiaberto o brilho emanado pelo relâmpago, ele seria sua peça de diversão favorita. Apesar do seu brilho iluminar o quarto inteiro, fazendo um contraste com a esbranquiçada lâmpada fluorescente deste, chegando até mesmo a iluminar seus outros brinquedos, ele o tomou com seu brinquedo favorito.

O sono chegou e pesou as pálpebras do garoto. Sua alegria desmanchou como um bloco de sal mergulhando na água. A hora da diversão acabou, e precisava descansar. Ele foi até um dos cantos do quarto e arranjou um manto negro. Cobriu a garrafa com ele, com o intuito de silenciar o brilho do relâmpago para deixá-lo dormir. Desligou a lâmpada do quarto e deitou-se na cama. Pousou a cabeça sobre o travesseiro e cobriu-se com o cobertor. Sua última mensagem para o mundo real foi um sorriso ao se lembrar da sua conquista.

***

Conseguia ver no seu sonho. Não conseguia ver muito por conta da ausência de claridade, porém conseguia ver formas. Formas densas. Brancas, quase cinzentas. Redondas, porém assimétricas. Flutuantes, mas voavam lentamente.

Nuvens. Conseguia ver nuvens em seu sonho.

Grandes e gordas nuvens, mas sem chuva. Não escutava barulho de chuva nem trovões. Nem via luzes de relâmpagos. No entanto, um som logo veio à sua percepção. Algo duro batendo sobre algo. Vidro… Talvez gelo. Batia em algo denso, cujo som emanado pelo impacto parecia…Elétrico. Choques. Choques e mais choques, um atrás do outro. Queria ver o que causava aquilo, mas não podia se mover. Seu corpo, ou melhor, sua visão não saia do lugar. Era uma existência observadora e estática no meio do céu, sendo totalmente passivo em relação ao ambiente do seu sonho. Nada poderia fazer.

O som começou a ficar mais forte. Mais intenso, crescia a cada concorrência, como se estivesse se aproximando dele. A cada choque e impacto, podia ver uma luz. Um derramar de luz. Clarões, numa tonalidade parecida com o relâmpago que havia capturado na noite antes do seu sonho. Clarões que eram disparados a cada impacto.

Conseguir ver formas. Formas eretas, com braços, pernas, troncos e cabeças. Pela cortina das densas nuvens, viu suas formas humanóides. Uma escurecida e uma brilhante e arroxeada. A escurecida era estável,dura e contida. A forma brilhante era instável, maleável e selvagem feito líquido. Via a forma escura bater na forma clara com algo. Algo longo, reto e pontudo. Os clarões, os choques e os golpes estavam em sincronia.

Quando eles saíram da cortina, a visão dos sonhos compreendeu tudo. Viu uma mulher, cuja vestimenta era composta por uma armadura colada ao seu corpo, num tom prateado e opaco. Tinha a forma parecida à de um maiô, sendo este acompanhado por botas caçadas até os seus joelhos e luvas calçadas até os cotovelos, com cores e opacidades similares. Por último, tinha uma máscara prateada e opaca, com feições neutras de uma mulher, com aberturas para os olhos, exibindo órbitas oculares azuis carregadas de raiva. Um cabelo castanho e tão desprovido de brilho quanto a sua armadura. tinha uma lança feita de gelo, coroada com uma lâmina plana em formato ovóide e uma ponta proeminente

A outra forma, em contraste com a mulher de armadura, tinha um tronco, pernas, braços e uma cabeça. Era uma forma mais simples e primitiva, sendo um relâmpago que assumia uma forma parecida à de um homem. Não tinha mãos, pés, dedos, rosto e nem voz. Tinha forma bípede e ereta, mas sua constituição e forma não escondiam que era um relâmpago.

Ele estava sendo surrado e golpeado pela mulher. Cada golpe tinha um som de objeto duro batendo em densa eletricidade. Clarão de luz e choques. O relâmpago não revidava. Era vítima passiva daquela agressão. Algumas vezes, colocava seus braços em sua frente para se proteger dos golpes. Em outras, ele apenas mostrava sua postura, pronto para receber o ataque. A cada golpe, seu corpo era jogado para longe e para os lados, e a mulher apenas iria ao seu novo local e o golpeava novamente.

Quando elas chegaram perto de sua visão dentro do sonho, a mulher apenas mudou seus golpes. Ao invés de bater nele com a lança, ela apenas fincava a ponta nele, perfurando-o. A cada vez que a lança era retirada, fragmentos de eletricidade voavam para as nuvens ao redor deles, tal qual gotas de sangue. Após a última fincada, o relâmpago caiu sem forças sobre uma nuvem bem próxima, e a mulher se colocou em pé, na frente dele, em uma posição de dominância. Ela apontou a lança para as nuvens ao redor, e da sua ponta saiu água. Uma água quase endurecida, atingindo as nuvens. Ela foi completamente absorvida pelas nuvens e após alguns segundos, elas a usaram para forjarem chuvas. Algumas gotas eram moles e líquidas. Outras eram endurecidas e brilhantes. O mesmo brilho do homem-relâmpago. Os mesmos granizos que ele e as outras crianças de seu vilarejo tanto queriam capturar e guardar.

Ambos observaram tudo aquilo. Os pedaços do relâmpago caindo sobre a terra, para longe deles. Não podia observar as reações deles, porém pressentia que a mulher guerreira sentia satisfação ao ver aquilo, enquanto o relâmpago sentia tristeza e desespero. Ele observava seu ser se separar dele, e nada poderia ser feito. Ela voltou sua atenção para ele, ao mesmo tempo que rastejava um pouco longe dela, com receio do seu próximo ataque. A mulher guerreira levantou sua lança e apontou para ele. O relâmpago cobriu seu rosto com os braços, encolhendo seu corpo deixando o temor falar por ele. Ela fincou a lança em seu peito, porém não a tirou. Ela empurrou mais fundo, afundando-a em seu corpo e afundando seu corpo na nuvem na qual ele estava se deitando. Coberto pela densidade e escuridão da nuvem, o relâmpago perdeu parte do seu brilho. Um cobertor escuro, dentro do qual ele perdeu a sua forma humanóide. Ele assumiu uma forma amorfa, como um real relâmpago selvagem na natureza. Rapidamente, ele escapou e correu pelas nuvens em sua real constituição. A mulher tirou sua lança da nuvem e observou sua vítima ir embora, satisfeita com seus atos.

***

O barulho de vidro caindo sobre chão acordou o garoto. Ele acordou com o coração à galope, golpeando a jaula de costelas em seu peito. Seus batimentos ressoavam pelos vasos do seu pescoço, como se o sangue pulasse sobre eles como camas elásticas. Aquilo em parte foi causado pelo barulho, mas maior parte por conta do seu sonho e do horror que presenciou por meio dele.

Ele olhou para o relâmpago engarrafado. Garrafa caída no chão, acobertado pelo lenço preto. Tremendo, mexendo e rodando, como se quisesse sair. O garoto não encarava mais aquele pedaço de luz e eletricidade como um brinquedo ou fenômeno da natureza. Era um ser vivo. Um ser vivo castigado, agredido, preso e separado de seus pedaços. Não sabia se queria sair, se queria dizer algo… só estava inquieto.

***

Não sabia o que era mais rápido: A frequência das gotas de chuva e granizo batendo em sua capa ou o bater do seu coração.

Levava o relâmpago engarrafado em mãos. A cada dezena de passos, parecia que tornava-se mais inquieto. Batia em todos os lados da garrafa, especialmente na rolha de borracha que a selava. Parecia estar louco para sair.

Mesmo com seus pezinhos protegidos pelas botas de borracha, podia sentir o frio das poças de água tocá-los. Não era diferente do frio da água da chuva sobre a capa e muito menos diferente do frio em sua coluna. Tinha medo do resultado da liberação daquele ser elétrico no ambiente. Não saberia se sairia machucado ou outras pessoas sairiam machucadas.

Passou por granizos luminosos em alguns momentos da tensa caminhada. Conseguiu vê-los nas vezes nas quais olhou para baixo a fim de observar a inquietude do relâmpago, porém a rapidez dos seus passos tornava as observações efêmeras. Caso tivesse os visto há algumas horas atrás, antes da captura do homem-relâmpago, estaria festejando e saltitando, esbanjando felicidade.

Mas aquela não era a hora. Na verdade, depois do sonho, aquilo não faria mais a sua alegria. Estaria cometendo roubo. Roubo dos pedaços de um ser vivo. Um ser não tão pensante como ele ou tão humanóide quanto ele, mas tão digno de vida e liberdade quanto ele. Cada grão de sua felicidade seria uma enxurrada de tristeza para ele. Cada avistamento de granizos luminosos atiçava ainda mais o relâmpago engarrafado. Não podia conter o desespero para se unir aos seus pedaços novamente.

O garoto chegou onde ele queria chegar. A praça principal do vilarejo. Várias casas, lojas e estabelecimentos. Ao centro, um poste de luz, tão rústico e antigo quanto os habitantes mais velhos daquele vilarejo. Podia ver os sorrisos estampados nos rostos das crianças aos capturarem os granizos luminosos em suas garrafas de vidro e os sorrisos de pais, tios, avós e irmãos mais velhos ao verem suas crianças cheias de felicidade.

Aquilo era demais para o relâmpago. Já foi torturado o bastante pela mulher com lança, agora ver aqueles humanos se divertindo com seus pedaços fora o cúmulo para ele. Queria fazer alguma coisa. Queria fazer algo a respeito. Queria sair e se reconstituir.

O garoto observou esse desespero e raiva. O relâmpago não mais ocupava a garrafa como um todo, transformando-a em uma lâmpada. ELe se concentrava na parte superior da garrafa, exercendo uma pressão para romper a tampa de borracha e escapar. Ele decidiu cumprir o maior desejo daquele ser elétrico. Pousou a mão sobre a tampa, mas antes de abri-la, viu as crianças felizes e seus parentes perto delas. Voltou sua visão para o relâmpago, vendo sua fúria fortalecê-lo ainda mais. No fim, ele apenas fechou os olhos e se esforçou para abrir a tampa.

Logo após o barulho de abertura da tampa, ouviu um estrondo. Um estrondo de liberdade e felicidade. Viu aquela luz sólida se fragmentar em vários segmentos e pedaços. Pequenos filetes de relâmpago. Cada um deles foi até cada crianças com granizos brilhantes guardados em garrafas. Ele não as feriu, muito pelo contrário. Cada filete apenas roubou os brilhos daqueles granizos. Cada pedaço seu, antes separado de seu corpo, estava de volta à sua constituição. Nenhuma ferida, nenhuma agressão… Nada. Apenas passou perto delas para pegar o que era dele e somente dele. Viu as expressões de espanto nas crianças e nos adultos, assustados com o que estava acontecendo. A brincadeira agora havia acabado.

Cada um dos filetes se aglutinou em um grande filete. Um grande, lindo e feroz relâmpago. Por um rápido momento, conseguiu ver ele em sua verdadeira forma, força e constituição. O garoto o viu antes de cavalgar com selvageria para os céus carregados de nuvens negras e densas. Num piscar de olhos, aquele relâmpago golpeou as nuvens com força, dissipando-as e as afastando para longe, como se tivesse estourado um balão de vapor. A chuva acabou, e suas gotas sólidas desapareceram.

Ouviu algumas fungadas, algumas notas musicais de choro. Olhou para os lados e viu as crianças contorcendo suas caras em grosseiras e feias expressões de choro, molhando-as com lágrimas salgadas. Os adultos tentavam ao máximo consolar as crianças, porém não há nada tão entristecedor quanto uma criança perder sua diversão. Brinquedos não recuperáveis. Era triste, reconhecia isso, mas era uma partida necessária.

Ouviu algo caindo no solo, perto dos limites do vilarejo. Algo grande, feito de carne e metal. Parecia o som de uma pessoa caindo de uma grande altura, porém mais intenso. Como se uma pessoa bem grande tivesse caído no chão. O garoto, as outras crianças e os adultos correram até a origem do barulho, atiçados por ele.

A causadora daquele barulho era alvo de uma visão surreal de suas testemunhas: Uma mulher de 3 metros de altura, branca e de cabelos castanhos. Tinha luvas, botas e uma armadura em formato de maiô coloridos em prata. Tinha uma máscara de consistência empredada, impresso nele uma expressão de neutralidade humana. Tinha abertura para seus olhos, mas assim como o resto de seu corpo, não tinha nenhum movimento. Estavam imersos em imobilidade. Ao lado dela, uma lança cujo comprimento era similar ao de sua altura. Tinha consistência e aparência de gelo.

Todos viam aquela cena com fascinação, inclusive o garoto. Havia identificado aquela mulher do seu sonho. No fim das contas, o relâmpago havia enfim conseguido se recompor e teve a chance de se vingar pelo seu castigo.

Algo captou a atenção do garoto pela sua visão periférica superior. Enquanto as outras pessoas olhavam atentamente para a mulher gigante e até chegavam perto para vê-la mais de parto, conseguia ver algo luminoso chegar perto dele. Olhou para cima, e viu um granizo luminoso. Uma pedra luminosa, tão brilhante quanto o relâmpago. Caia lentamente, pousando no espaço à sua frente. Abriu as mãos e deixou o granizo pousar nas palmas delas.

Havia ajudado o relâmpago, e recebeu um agradecimento especial dele.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 23/04/2023
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