Imprevisíveis infidelidades III

A segunda classe do Caledonia era limpa, mas se levava um tempo pra se acostumar com o cheiro das pessoas. A maioria dos homens bebiam e fumavam bastante, sem contar com o cheiro dos vômitos.

Eu, uma jovem recém casada em lua de mel, me esgueirava pela multidão tentando parecer anônima com meu chapéu e xale encobrindo meu rosto, o mais discreto possível. Estava indo em direção a cabine do canalha que me chantageava.

Encontrei a cabine e bati timidamente na porta. Ela recuou uns centímetros e eu logo adentrei a exígua cabine. Havia, o que se chama de beliche, uma cama acima de outra, uma mesa-escrivaninha com cadeira e uma pia encimada por um pequeno armário com espelho.

O meu gangster estava acabando de barbear-se. Não olhou pra mim até acabar de enxugar o rosto, enquanto eu permanecia de pé junto à porta.

-Não faço questão de saudações... e também de beijos. Voce virá aqui todos os dias nesta mesma hora e deve entrar sem bater. Dispa-se.

Novamente eu não conseguia me mover. O olhar frio do assassino me ameaçava se eu não obedecesse imediatamente. Mas mesmo assim, eu não conseguia nem piscar. Ele se aproximou ficando seu rosto a poucos centímetros do meu. Sinto suas mãos agarrarem as lapelas de meu cardigan.

Noto que sua respiração está tão ofegante quanto a minha. Só que suas narinas se dilatam enquanto ele aspira e expira o ar. Eu faço o mesmo com a boca semiaberta. Tanto ele quanto eu sentimos sede pela saliva um do outro.

O beijo não foi imprevisível. Foi inevitável. A troca de calor entre nossos corpos e meu arquejar e suspiros são tão inevitáveis quanto eu lhe acariciar os cabelos enquanto ele beija meus seios e suga meus atormentados mamilos.

Tento justificar a minha infidelidade ao homem que realmente amo, pois este canalha que agora me faz suspirar de luxuria é um assassino de aluguel e foi pago pra matar meu marido!

Nós ainda estamos em pé e minhas vestes estão em desalinho. O meu crápula me ajuda a despir-me e me faz sentar na cama. Eu estou ansiosa e temerosa ao mesmo tempo. Ele teve dificuldade em expor sua bela e imensa genitália que eu já adivinhara o tamanho durante nossa esfregação.

Ele estava a minha frente. Ele, o pênis. Pareceu-me a coisa mais natural beijá-lo. Como era natural beijar qualquer objeto de adoração, como um crucifixo, por exemplo.

Toda essa minha iniciação aos prazeres carnais deverá ser contada em outro fórum, pois aqui o âmago da questão é a circunstância a que um ser é submetido e suas reações.

Mas podemos voltar por um breve momento devido a uma situação esdrúxula que se apresenta como imprevisível em que se pensa que se tem o autocontrole.

Meu crápula amante me mostra os jardins do Shangri-Lá ao beijar e sugar todas as latitudes e longitudes dos meus hemisférios, concentrando seu poder labial em meu cone sul.

A entrada no paraíso pela primeira é algo extraordinário. Eu devo ter morrido e não sei quanto tempo fiquei neste alterado estado de prazer. Quando ressuscitei, com minha visão ainda nublada, vi os cabelos negros de meu crápula ainda entre minhas coxas. Mas ela estava imóvel, como concentrada em algo muito importante. Voltei a adormecer.

Por volta do meio-dia eu estava de volta a primeira classe e fui direto pro banheiro, passando por meu marido e seu secretário.

Então fui notar que o crápula chantagista tinha depilado meus pelos pubianos e deixado um artístico “V” de pentelhos bem em cima de meu monte de Vênus.

Naquela noite, durante o baile, Bartolomeu estava radiante com minha alegria. Na verdade eu tentava esconder meu remorso por traí-lo. Mas, ao mesmo tempo, eu o mantinha vivo!

Nós dois parecíamos dois adolescentes e nos excedemos um pouquinho na bebida e nas risadas. Por fim, fomos dormir exaustadíssimos.

Acordei por volta das nove horas e me apressei pra não me atrazar, pois o assassino poderia pensar que eu tinha quebrado o acordo. Beijei Bartolomeu que ainda dormia e fui correndo ao encontro do meu involuntário pecado.

A porta estava trancada. Eu bati levemente. Depois mais forte. Achei melhor me afastar por uns minutos e fiquei encostada a balaustrada olhando o oceano e a esteira de espuma na cauda do Caledonia. Voltei à cabine, bati um pouco mais forte na porta. Não houve resposta. Resolvi dar outra volta e mesmo assim quando bati de novo, não houve resposta.

Uma aflição aterrorizante tomou conta de mim. E se foi ele que quebrou o acordo e foi matar meu marido. Desesperada, tentando disfarçar minha angustia chego correndo á nossa cabine e vejo o corpo imóvel de Bartolomeu ainda na mesma posição que o deixei. Chamo pelo seu nome. Ele acorda e me contempla com um maravilhoso sorriso enquanto abre os braços para mim.

Depois do almoço, eu e Bartolomeu costumávamos ficar juntos, fazendo diversas atividades. Há um certo momento, meu marido me pergunta se algo está me preocupando.

Eu lhe respondi que era um leve indispor.

Na verdade eu estava um poço de ódio. Tinha sido usada e desprezada por um pária sujo, escória de esgoto. Imaginava todos os palavrões para designá-lo em minha mente. Quem ele pensava que era? Um reles assassinosinho de meia pataca que me ensinara algumas coisinhas de técnica sexual e se achava meu dono. Palhaço!

Depois do jantar, Bartolomeu sugeriu que ficássemos em nossa cabine, lendo e escutando o gramofone. Eu concordei. Eu não queria ceder a tentação de ir procurar o pária vagabundo.

Meu ódio era tão grande que tomei a iniciativa para que Bartô me possuísse. Eu queria mostrar a mim mesma que Bartô me bastava.

Como sempre ele foi esplendido... mas, não conseguia mais me domar. Uma hora depois, Bartolomeu dormia o sono dos justos e dos cornos. Eu estava inquieta e em fogo!

- Voce não está chegando muito cedo pro nosso encontro!

- Canalha! Filha de puta! Sai de minha frente!

E vou empurrando meu objeto de desejo pra dentro da própria cabine. Consigo acertar-lhe uma bofetada no rosto e tento esmurrá-lo. É tudo em vão, eu ainda esmurro sua cabeça tendo meus lábios colados aos dele. Eu estou completamente nua por baixo da camisola e do sobretudo que vesti quando decidi vir até a cabine dele.

O assassino se chamava Vitor e sai dali apta a ter seu punhal em todas as minhas bainhas.

Ele me escoltou até perto da minha cabine quando o sol já estava nascendo.

Faltavam dois dias para chegarmos à Lisboa. Minha dama de companhia tinha me visto perambulando pela segunda classe e por curiosidade, ou maldade, foi perguntar ao meu marido se eu a estava procurando por lá. Lógico que Bartô achou estranho e foi procurar-me.

Por coincidência, naquele dia, eu estava com o colar de esmeraldas e vestia meias somente. Minha semi-nudez era coberta pelo casaco.

Alguns metros atrás de mim, meu marido e a dama de companhia viram quando eu entrei na cabine de Vitor.

Felizmente ele estava vestido e eu fazia charminho para me mostrar totalmente nua, exceto com o colar de esmeraldas e minhas meias, quando escutamos fortes batidas na porta!

- Abra! Abra essa porta! Adélia, sei que voce está aí dentro!

O instinto assassino tomou conta de Vitor e ele parou alguns segundos para saber quais suas opções. Ele mandou que eu tirasse o colar e que abotoasse todo o sobretudo. Em seguida colocou um punhal na parte de trás das calças e se encaminhou pra porta. Eu estava petrificada de terror. O inevitável e o imprevisível estavam ali na minha frente. Qual dos dois que iria acontecer?

Apesar de Bartolomeu ser quase uns quinze centímetros mais alto que Vitor, ele foi violentamente puxado pra dentro da cabine e imobilizado tendo a ponta do punhal já lhe penetrando a carne e um filete de sangue a escorrer pelo pescoço.

Vitor sabia que em minutos os marinheiros estariam ali, chamados pela dama de companhia. Sua chance era contar a verdade e arruinar minha vida e ferir horrivelmente os sentimentos de Bartolomeu.

Meu marido me olha preocupado. Ele não se importa com o punhal em sua garganta.

-Não sei o que está acontecendo... mas, por favor, deixe minha esposa fora disso! Me diga o que voce quer que eu lhe atenderei... mas primeiro deixe minha esposa sair!

- Acho que não tenho saída! Pegue sua esposa e o colar de esmeraldas e saiam daqui! Ela lhe dirá quem eu sou e o que eu ia fazer com voce, senador. Este colar seria para pagar minha desistência!

Novamente a imprevisibilidade.

Nesse momento a porta é arrombada e pelo menos uns oito robustos marinheiros entram e imobilizam Vitor.

No último olhar que Vitor me deu, minhas lágrimas de agradecimento fizeram brotar um leve sorriso em seus lábios.

Bartolomeu decidiu que seria melhor desembarcarmos em Lisboa do que em Le Havre. Assim evitaríamos os cochichos. Vitor foi o primeiro a desembarcar, levado por policiais.

De repente o imprevisível desapareceu e voltamos ao status quo. Bartolomeu tinha conhecimento desses assassinos que ambas as famílias faziam uso, portanto nada foi surpresa pra ele. Apenas minha imprevisível atitude o deixou mais agradecido ainda.

E para evitar novos possíveis atentados, Bartô decidiu que iríamos morar em Paris.

Ele nunca me perguntou se houve algo entre eu e Vitor. E eu no meu cotidiano me esforçava o máximo em ser a égua domada de Bartolomeu e não na mulher que Vitor me descobriu.

Em 1929 houve uma crise financeira mundial que abalou a fortuna de milhões de famílias. Resolvemos voltar pro Brasil, pois não adiantava se ter algum dinheiro se não havia comida.

Nesta altura tinha nascido Vitória, que tinha os mesmo olhos azuis do pai. Bartolomeu nunca desconfiou, pois eu tenho olhos azuis.

Fomos morar em Laranjeiras. Bartolomeu voltou as suas atividades senatoriais. Eu cuidava de um orfanato para filhas e viúvas de militares. Vitória começou o Jardim de Infância. Algumas vezes eu a apanhava na escola e vinha passeando pela Praça Paris até nossa casa. Outra vezes eu a levava e deixava que um de nossas empregadas fossem buscá-la.

Nesse dia, beijei o rostinho de minha filha e ainda dei adeus quando ela entrou no prédio e a jovem professora a recebeu. Resolvi ir para o trabalho a pé, já que a manhã estava propícia para um passeio. Atravessei o Passeio Público aspirando o verde das árvores. Na esquina da Escola de Música, na Cinelandia, um amolador de facas e consertador de panelas estava compenetrado em seu trabalho e não me notou.

Eu parei uns poucos metros do carrinho onde ele trabalhava, como se esperando para atravessar a rua. Levou poucos minutos pra aqueles orientais olhos azuis me reconhecessem.

Eu não o olhava diretamente. Só quando decidi não ir trabalhar e voltar pra casa, foi que virei um pouco meu rosto e o encarei de rabo de olho e atravessei a rua. A presa e seu caçador.

Já em casa, meia hora depois, um amolador de facas com seu apito característico passa em frente ao nosso portão.

- Josias, peça a esse amolador pra vir até aqui verificar estas espadas e lanças da coleção do senador. Obrigado.

E durante muitos anos ele manteve todas minhas bainhas plenamente preenchidas com sua espada. Novamente o imprevisto fez minha atual circunstancia.

Ele morreu já algum tempo. Até o último dia, quando caiu enfartado, trabalhou na cuteleria que montei pra ele, na rua da Assembléia.

Raferty
Enviado por Raferty em 13/12/2007
Reeditado em 22/12/2007
Código do texto: T775981