NÃO VOTE EM CASSIUS KENNEDY
Meu caro T.,
Você deve estar achando isso uma tremenda loucura. Nada acontece por acaso. Essa carta em suas mãos foi redigida após sonhos. Foi neles que eu, Vladimir Ferrari — provavelmente o pai do seu tataravô — lhe conheci; um homem louro de olhos castanhos e sardas leves, com uma mancha em forma de vírgula logo abaixo do mamilo esquerdo e cujo nome começa com a letra T; sendo responsável pelo destino de muitas pessoas. Toda a história estava centralizada no voto para a escolha de um representante em um tal Conselho Planetário. Vi-o abrindo a carta e atendendo ao meu pedido: NÃO VOTE EM CASSIUS KENNEDY.
Não sei o motivo. A princípio, achei os sonhos muito estranhos. Afinal de contas, guardei o nome do indivíduo — que, convenhamos, é curioso — mas não guardei o nome de meu neto! Depois, pensando um pouco a respeito, entendi ser plausível. Em 2023, nomes estranhos pululam nos livros de registros dos cartórios. Os cartórios devem estar extintos na sua era, mas as combinações esdrúxulas, não. A burocracia, aliás, é um péssimo hábito no Brasil. Mas não quero me desviar. É importante votar contra esse homem e ponto. Você deve dispor de muito mais explicações em 2123.
Grande parte do poder do seu voto, deve-se as escolhas feitas por mim e por meus descendentes. Essas premonições mostraram os erros da minha geração e das outras, durante os cem anos entre nós. A tecnologia foi uma tremenda aliada ao longo desse tempo, para corrigir problemas causados pela humanidade. Abusamos do planeta e dos recursos naturais, modificamos o clima e inventamos uma maneira de expandir nosso cérebro além dos limites do crânio — grande erro, do qual consegui me esquivar e arrastar minha filha e meus netos. Vocês ainda devem ter internet, nuvem, e até redes sociais por aí. A história contada por essas viagens inconscientes ao futuro, mostraram a evolução dessas ferramentas.
Aqui, penso que essas invenções trouxeram um atraso no desenvolvimento do intelecto humano. Nas primeiras décadas do século XXI, a humanidade será assolada pela imbecilidade promovida pelos algoritmos de recomendação. Mas virá a era da iluminação e as pessoas passarão a consumir o conhecimento para viver de forma minimalista. É estranho, sei disso. Você, olhando para o passado, deve pensar “mas não foi sempre assim?” Não.
Aqui em 2023, poucos se esforçavam para utilizar o conhecimento, por um erro de julgamento. Como tudo estava à mão, com as facilidades dos computadores e aparelhos celulares — daria um milhão para saber como se comunicam, aí em 2123 — os cérebros não eram utilizados para reter conhecimento e tornavam-se cada vez mais frívolos e idiotas.
Havia indícios dessas revelações vislumbradas em meus sonhos. E essa é a prova mais importante, para justificar o meu pedido de NÃO VOTAR EM CASSIUS KENNEDY. Os presságios ocorreram em uma sequência de sete noites. Parecia uma série de TV, muito populares aqui em 2023. Sonhei contigo abrindo a carta no “primeiro episódio”, depois sonhei com meus descendentes, a partir de meu neto — que ainda nem nasceu. No terceiro, sonhei com avanços da tecnologia e sobre a contribuição dos meus bisnetos na chamada “Era do Renascimento”. Compreendi então, ao acordar no quarto dia, a importância de manter-me atento a todas essas imagens, e como elas se relacionavam. Ainda não acreditava serem premonições.
Lembrei-me dos jornais de dias atrás, nos quais li a respeito do mesmo assunto na frase do meu bisneto: “Usaremos a Transição de Fase Magneto-ativa para corrigir essa anomalia”. Descobri a respeito da tecnologia de matrizes de gálio sob campos magnéticos e a capacidade de alternar entre os estados sólido e líquido, podendo assim penetrar em locais de difícil acesso. Outra confirmação a respeito do sonho do quinto dia, foi a geração de energia pela fusão nuclear. Estava em testes e sob confirmação científica em 2023. Mas meu tataraneto — seu avô, acho — confirmou a respeito da tecnologia que extinguiu o uso de combustíveis fósseis e contribuiu para regular o clima do planeta.
Enfim, no sexto dia, lhe encontrei. Soube da escolha de um Conselho Planetário. Uma voz de jornal da TV discorreu sobre as implicações para o futuro da humanidade, na escolha do Líder do Conselho. Como o antagonismo das vertentes políticas poderia causar problemas em escala global. Para acalmar os ânimos, decidiram conceder o poder de Voto de Minerva a representantes de um grupo de acadêmicos e cientistas. Fiquei orgulhoso de vê-lo entre os escolhidos.
É muito importante entender o seguinte: antes do sétimo sonho, acreditava piamente numa história de ficção científica, ligando conhecimentos diversos espalhados pelos meus neurônios, somadas a algumas reportagens pelas quais passei os olhos e muita imaginação. Espero até que você se lembre desse seu antepassado como um escritor de sucesso. É o meu projeto de vida, atualmente. Minha capacidade de criação de histórias é muito admirada pelos meus — ainda — poucos leitores. Pena não ter visto nada, para confirmar meus desejos.
O sétimo sonho, aconteceu na madrugada de quinta-feira — atenção aqui — e dizia respeito a um jogo de futebol. Um assunto sem qualquer relação com os tratados nas noites anteriores. Porém, deixe-me contar a história ao redor desse jogo.
Esse seu avô aqui — deixemos de lado esses prefixos de geração, ok? — torce por um time chamado Palmeiras — espero sinceramente que o futebol ainda exista por aí. É um esporte apaixonante. Sonhei com um jogo, no sábado seguinte, entre Palmeiras e Flamengo. Antevi o resultado do jogo, os lances dos gols e os nomes dos atletas responsáveis por eles. O surreal, foi uma frase de um amigo de longa data, enquanto assistíamos à partida. É preciso que se diga: Ricardo há muito tempo não aparece na nossa cidade. Nós nos conhecemos desde meninos.
Até então, meu raciocínio indicava o óbvio: sonhos são abstrações do cérebro, para rearranjar e fixar memórias e conhecimentos. As sinapses se aproveitam de qualquer lembrança para nos entreter, enquanto realizam seu trabalho. Por isso, tudo é tão maluco. Bem, a quinta-feira passou.
No sábado, não me lembrava da frase de Ricardo e deixava o assunto dessas “premonições” para outra hora, sozinho com meus botões. Reuni-me aos amigos, em nosso ponto de encontro usual, para ver o jogo. Zombaram de mim, quando lhes disse ter sonhado com o resultado e o título do Palmeiras. Logo após o início da partida, para surpresa de todos — e minha, claro —, Ricardo entrou no bar fazendo algazarra. Todos se alegraram e festejaram sua presença. Fiquei de orelhas em pé. Após muitos cumprimentos e piadas sobre outros tempos, voltamos a nos sentar e conversar. Em dado momento, me abordou:
— Vlad, meu caro, preciso falar contigo. Não planejava vir a Ipaussu tão cedo, sabia? — disse ele, sentando-se ao meu lado.
— Poxa, cara. Precisa lembrar-se dos amigos, sim, e aparecer sempre!
— Pois é, cara. Mas, deixe eu te falar: não planejava, mas sonhei um troço esquisito na quinta-feira passada e tive de pegar a estrada.
Meus sentidos dispararam muitos alertas. Um arrepio percorreu minha espinha. Consegui ser irônico.
— Sei. Sonhou comigo, né? Eu... também sonhei contigo.
Ele arregalou os olhos e entreabriu os lábios.
— Não!
— Não? — Fiquei desconcertado.
— Não foi contigo. Sonhei com seu neto.
Outro arrepio e dessa vez o espanto foi meu.
— Bom... tudo bem. O estranho do sonho, mesmo, foi quando perguntei a ele sobre você.
Instiguei-o a continuar, só movendo as sobrancelhas.
— Ele apareceu de repente, dizendo ser da família. Apertou minha mão e anunciou: “Obedeci ao meu avô Vladimir e não votei no Cassius Clay”.
Você há de concordar: é muito estranho tudo isso, certo?
Ele não me disse seu nome, nem explicou muito mais do tal sonho. Mas, como o restante da história se confirmou, resolvi lhe escrever essa carta, lacrando-a em um envelope e recomendando que seja aberta apenas em janeiro de 2123. Portanto:
NÃO VOTE EM CASSIUS KENNEDY, DE JEITO NENHUM.
Não entendo qual o motivo dessa fixação. Talvez você possa me explicar na próxima vez, ok?