O OUTRO LADO DA VIDA
Em minha longa existência eu já vi muitas coisas.
Eu nem sempre estive aqui, fui criado bem depois. O Sábio que me disse, às vezes converso com ele. Antes que você nada entenda, eu sou o Observador. E eu apenas faço isso, observo. Eu vejo tudo que se passa no Mundo Terreno e no Mundo Abstrato. O Mundo Abstrato é o contraste do Mundo Terreno; aqui nada é corpóreo, apenas existimos. É para o Mundo Abstrato que os humanos vão quando morrem. A Morte os traz para cá, antes deles irem para a Continuidade, ou voltarem para o Mundo Terreno. Depois eu falo mais sobre isso. Agora vou falar um pouco de mim.
Eu sou filho da Estrela Original, afinal todos somos filhos dela. A Estrela Original foi a primeira a existir, antes dela nada havia e tudo veio dela. Se você pensou que é a essa estrela que os humanos chamam de Deus ou deuses, dependendo da religião, você está certo. Mas a mente dos humanos é muito fértil e quando eles não entendem nada, eles inventam. Isso não é ruim, dá a eles uma razão para usar seus pensamentos.
Como eu disse, eu apenas observo. Desde que nasci, eu vi todas as coisas que acontecem e me lembro de todas elas. Eu não sei de tudo, quem sabe de tudo é meu irmão o Sábio, ele sabe do passado, presente e futuro. Alguns também o chamam de Onisciente. Tenho outros irmãos também, mas o Sábio é o único que consegue me compreender.
Enfim, não irei me alongar muito com respeito a mim. Quero apenas dizer que nessa minha longevidade, vi coisas que me surpreenderam. Principalmente a curiosidade e a frustração dos humanos quando vêm para cá.
Certa vez um homem veio para cá conversando tranquilamente com a Morte. Minha irmã não é cruel, como os humanos fazem ela parecer. Aliás, as pessoas têm a tendência de tornar vil tudo aquilo que elas temem.
— O que acontece depois? — perguntou o homem para a Morte.
— Você decide. — Minha irmã falou.
— Quais minhas escolhas?
— Voltar para o Mundo Terreno, ou ir para a Continuidade. Muitos voltam para a Terra, porque têm medo de continuar.
— O que tem na Continuidade? — o homem indagou curioso.
— Se eu falasse, estragaria a surpresa.
— Esse lugar, o Mundo Abstrato, se eu quiser ficar aqui, o que me acontece?
— Na verdade, você não pode ficar muito tempo aqui. Já ouviu falar de purgatório? O lugar intermediário dos mortos? O purgatório não existe, mas esse lugar é mais ou menos semelhante à noção de purgatório. Você pode ficar um tempo para se decidir, ou Mundo Terreno, ou Continuidade.
O homem refletiu, analisou, perscrutou todo o lugar, ao menos até onde ele podia ver. Por fim falou:
— Você poderia me desvendar os mistérios desse lugar?
— Acredite, levaria uma eternidade.
— Já vivi um pouco no Mundo Terreno, pisei no Mundo Abstrato. Por favor, guia-me para a Continuidade. Mais vale sofrer numa grande aventura, do que permanecer na mesmice.
E minha irmã o levou. Claro que sei o que tem na Continuidade, eu sou o Observador. Mas fico com as palavras da minha irmã Morte, estragaria toda a surpresa.
Outra vez a Morte trouxe uma mulher fanaticamente religiosa. Ela ficou extremamente insatisfeita quando chegou aqui, pois se sentiu enganada. Ela queria ir para um certo Paraíso. Bom, até eu queria ir, não posso culpá-la.
— Não deveria ser isso aqui a morte. — Reclamou a mulher.
— O pós-vida é o que é, independente das crenças humanas.
— Eu vivi minha vida inteira servido à Igreja. Renunciei muitas coisas. Para quê?
— Para ter uma vida plena e de doação ao próximo. — Devo dizer que a Morte adora uma boa galhofa, uma característica que ela aprendeu com os humanos.
— Mas não é por isso que as pessoas ficam a vida inteira na igreja, elas querem o descanso para a alma.
— Você serviu à sua fé pelos motivos errados. Você deveria ter acreditado que o Paraíso é a genuína alegria de servir seus semelhantes e ajudá-los, não um lugar de fato.
— O que acontece agora? Já que está tudo errado. — Questionou a mulher, desapontada.
— Nada está errado. Eu não sou o fim da vida, sou o recomeço de outra.
A mulher ficou reflexiva diante das palavras da minha irmã. Após alguns momentos perguntou:
— Se não há Paraíso, para onde irei?
— Siga para a Continuidade ou volte para o Mundo Terreno. Você é livre para decidir.
— O que vem depois?
— O que há para vir.
— Você é escorregadia em. — A mulher resmungou.
A Morte sorriu. Ela gostava dos humanos, havia passado muito tempo entre eles; entre todas as entidades, ela era a que mais estava em contato com eles.
— Se vai te ajudar, a Continuidade não é o Paraíso de ruas de ouro que te fizeram crer, mas, de certa forma, é um bom lugar.
— Eu posso voltar para a Terra? E ter minha vida de volta? – a mulher perguntou.
— Você pode voltar, mas será outra vida, outras memórias, outras pessoas vão cruzar seu caminho. Essa vida antiga passou, você não pode mais recuperá-la.
— Está bem, vou adiante.
E assim a Morte mandou mais uma pessoa para a Continuidade. Nem todos aceitam ir para lá, alguns voltam para o Mundo Terreno, muitos têm medo. Os humanos são os seres mais complexos que a Estrela Original criou. Mas são na mesma medida fascinantes.
E enquanto as eras vão passando, deixando mudanças em todo o cosmo, eu fico aqui no meu canto. Apenas observando.