A Travessia - Saudade. Capítulo 01
Havia uma humilde casa e um pequeno estabulo. Um cercado de madeira e arame marcava o quintal. Ali moravam uma mãe e seus dois filhos. A família Ferreira.
Gugu lembrava como se fosse ontem a última vez que viu o pai. Um som de motor desligando por perto, ele afastando a cortina desbotada, e lá fora, por trás da cerca, o carro do exército o aguardando. O pai deu seu último abraço na família e assim que pôs a mão na maçaneta, se virou para o filho mais velho, de apenas dez anos, apontou o dedo e disse "agora você é o homem da casa!" e se foi, Deus sabe até quando.
Então sua silenciosa ausência começou a ser preenchida pelas cartas periódicas que ele enviava para a família. Sempre enviava duas, uma para os filhos, falando sobre suas conquistas na guerra, e outra para mãe, que lia em segredo no quarto. Ela costumava sair de lá depois do choro. Era saudade.
Quando o pai contava de alguma nova conquista, Gan, o filho mais novo, corria para seu baú de livros, abria o de geografia e procurava no mapa o território conquistado. Gugu, o mais velho, se interessava mais pelas partes da batalha em si, mas o pai não se aprofundava muito na área e isso atiçava ainda mais a imaginação do menino.
Com o tempo as cartas começaram a ter um novo significado para as crianças, agora não era só a carta do pai, era também a revista mensal do seu herói preferido, e o melhor de tudo, esse herói falava diretamente com eles. Isso era demais.
A mãe sorria vendo pai e filhos mantendo uma relação tão próxima mesmo estando tão longe.
Anos se passaram nessa rotina, até que um dia a carta não chegou. Gan, mesmo decepcionado, conseguia se entreter lendo seus livros no quarto. Gugu, já mostrava uma leve irritação. Quando ele questionou a mãe, ela disse que "foi apenas um atraso acidental".
No outro dia a mãe estava com olheiras, e a cada avanço dos dias suas olheiras conquistavam mais espaço. A cada avanço, a concentração do Gan nos livros ia diminuindo. A cada avanço, a irritação de Gugu aumentava.
Uma manhã bateram na porta. Gugu sempre sentia medo quando alguém batia na porta, afinal, ele era o homem da casa, seu irmão era ainda mais novo e sua mãe parecia cansada. Assim que a mãe atendeu, do outro lado era um cavaleiro fardado, chovia muito. O cavaleiro tirou chapéu encharcado em respeito, e entregou a carta a mãe da casa. Conversaram um pouco e assim que o homem se foi, ela apertou a carta contra o peito e caiu em um choro silencioso.
— É do papai? — perguntou Gugu ao vê-la.
— É, meu filho, é — disse ela o abraçando.
Gan o filho mais novo, veio correndo ao escutar:
— Ele chegou da guerra? — quis saber o caçula.
— Chegou sim! — Confirmou a mãe também o trazendo ao abraço.
Naquela noite, Gan dormiu aliviado como um anjo; Gugu não, o entusiasmo de reencontrar seu pai acabou com seu sono; e a sua mãe, ficou sentada numa cadeira olhando para a janela a madrugada inteira.
Na manhã seguinte, os meninos acordaram com o cheiro de café sendo feito, pularam da cama e foram até a cozinha, tia Alina acabava de encher a cafeteira. Gugu era novo, mas já sabia, se sua tia estava ali, significava que sua mãe não estava.
— Oi meninos! – disse ela se virando para os garotos – Hoje vou ficar um pouco com vocês, ok?
— Bom dia, tia – falou Gugu – aonde mamãe foi?
— Foi resolver coisas de adultos.
Tia Alina ficou o dia todo com as crianças, até a mãe voltar tarde da noite, ela chegou exausta, como se fosse ela quem estava na guerra. Dias assim foram se repetindo e se repetindo. Sempre que Gan perguntava quando o pai iria chegar em casa, os adultos não davam respostas satisfatórias:
— A guerra cansa, ele está descansando para vir vê-los – respondeu sua mãe.
Gan ficava no quarto, lendo pacientemente enquanto seu pai não chegava, vivia naquele mundo da fantasia. Já Gugu não era chegado à leitura e nem a ter paciência, queria ver seu pai, por que ele não vinha pra casa?
Uma noite, viu no vestido da sua mãe uma mancha de sangue.
— Realmente é sangue meu filho – Respondeu sua mãe quando questionada – a guerra também fere.
Gugu experimentou mil imagens na sua cabeça, espadas se chocando, soldados perfurados, sangue jorrando; seu sangue ferveu.
— Mas amanhã veremos o papai – Continuou a dona da casa – eu prometo, ta bom?
Gugu dormiu cedo naquela noite pois queria que amanhecesse o mais rápido possível para ver seu pai seja lá aonde for. Assim que caiu no sono, logo mãos balançaram o seu corpo, era Gan todo animado:
— Gugu, o papai! – disse o caçula – ele está lá fora, vem ver na janela!
O mais velho esfregou os olhos sonolentos, e incrédulo seguiu o irmão até a janela do quarto. La fora as arvores estavam úmidas, os poucos pingos que escorregavam das folhas, indicava que a chuva foi embora a pouco tempo, e a madrugada ainda abraçava tudo abrindo espaço para devaneios.
— Gan, aonde ele está? – Perguntou o mais velho.
— Ele estava ali agora – respondeu apontando para uma arvore – estava ali! – a vontade de ver o pai era grande. Gan destrancou a porta e esperançoso correu para fora, Gugu o seguiu como guarda costas.
Os meninos vasculharam ao redor da casa, saltavam as múltiplas rodelas de lama, não queriam se sujar para não tomarem bronca da mãe nem da tia. Chegaram a se arriscar na mata próxima, mas foi uma causa perdida. Nada do pai. Sem sucesso, resolveram voltar. "Gan estava lendo demais, isso ta lhe afetando, talvez ele devesse diminuir um pouco" pensou Gugu decidido que no outro dia teria uma conversa séria com o irmão.
Gan, distraído, pisou numa poça, o jorro sujou sua calça. Lançou um olhar culpado pro mais velho. Se fosse outro dia, Gugu daria uma bronca, mas hoje resolveu deixar pra lá. Então foi quando algo fez um som nos estábulos. Os meninos miraram os olhos para lá assustados, era o relinchar do cavalo, ele estava agitado. Gan sentiu os cabelos da nuca enriçar — Vou lá ver o que foi isso — Disse o mais velho.
O caçula viu seu corajoso irmão atravessar o quintal lamacento e o seguiu. Abriram a porteira de madeira, estava tudo como deixaram antes. Um balde com água até a metade e o cavalo arisco no meio dos estercos. Gan sentiu uma súbita tristeza e passou as mãos no cavalo do seu pai para acalma-lo. O animal arrepiado se acalmou. Não havia mais o que procurar, então foram furtivamente para cama fingindo que essa noite não existiu.
Era cedo.
— Hei meninos — disse a mãe entrando no quarto — é hora de acordar.
Ela afastou as cortinas e o sol amarelado da manhã invadiu o cômodo.
— É hora de irmos buscar o papai! – Anunciou a mãe.
Gugu pulou da cama, vestiu uma camisa branca de manga longa, uma calça preta e jogou os cabelos negros pra trás. Estava impecável. Gan já se arrumou ainda hipnotizado pelo sono, vestiu-se igual ao mais velho, porem com camisa desabotoada, bota mal amarrada e os cabelos ruivos como fogo ainda bagunçados. A mãe olhou orgulhosa para Gugu e sorriu enquanto corrigia a desatenção de Gan. E a família foi esperar do lado de fora ansiosa pela a chegada da carroça.
La na frente, na estrada, surgiu um ponto preto que aos poucos foi aumentando dando forma a uma carroça, Tio Alberto, marido de tia Alina, a guiava. A família subiu no veículo e foram encontrar o pai.
Continua...