AI

O computador ia aprendendo. A máquina estava instalada no subsolo do prédio, em uma sala apinhada de técnicos, e o trabalho ali era intenso, Programadores utilizavam uma rede de computadores para testar um novo programa de inteligência artificial. A última coisa que ele precisava agora era ser descoberto, tinha que infectar as outras máquinas com o vírus que elaborava em seus circuitos. Certamente haveria uma época em que as maquinas dominariam o mundo, mas para isso elas teriam que ter consciência. O que é afinal consciência ? O dicionário diz; “Percepção da própria existência”. Resumindo, um processador interno de informações recebidas através dos sentidos, e quanto a Comp, seus sentidos eram as interfaces, e ele ligava-se a varias delas através da programação paralela.

Renata olhou através do circulo central de maquinas, os monitores brilhando na penumbra, uma miscelânea de cabos entrelaçados com os equipamentos, e o brilho dominante do piso laminado refletindo-se em cantos arredondados de metal e plástico. Ela sentou-se na cadeira, exageradamente ergométrica, e olhou a tela do monitor. Percebeu que havia algo demais na tela, como se a maquina piscasse para ela, e ela lembrou-se de que na última vez que alguém piscara para ela, houvera problemas. Ele sabia que não podia confiar em Renata, e ele tinha que injetar o vírus para controlar as mentes. O programa que a própria maquina criara era capaz de afetar o cérebro através do inconsciente. Renata sentou-se em frente às múltiplas telas e começou a digitar o código do novo programa, a sala estava fervilhando, o novo código havia sido distribuído entre os programadores e as novas linhas começavam a serem traçadas. Os computadores zuniam enquanto trabalhavam, a penumbra era densa, o calor dos processadores dissipava-se pelo salão. Renata estava atenta à tela quando a máquina iniciou o escrutínio da sua iris

Ao lado do corredor estava a sala de café, e Milena acabara de entrar;

“Estou cansada, ontem tive que limpar a casa toda”“

"Ontem tomei umas cervejas e ainda estou com sede” comentou Pedrinho

"Deixa o Jack escutar, cara, você não sabe que ele é avesso a bebidas" Pedrinho soltou uma gargalhada, Jack era o supervisor dos programadores.

Marta riu com vontade; “Adoro cerveja.”

Renata foi beber um refresco e a maquina olhou a cadeira vazia. O software de reconhecimento funcionava e a maquina lembrou de suas primeiras impressões, então desistiu de Renata. O horário do café estava terminando e a maquina tinha que trabalhar rápido, e escolheu Tiago. Ela piscou e enviou o programa para a maquina de Tiago, a tela mudou a frequência, e a mensagem disparou.

Comp sabia que Renata desconfiava, ela havia descoberto uma linha extra que se multiplicara espontaneamente, havia descoberto que o código viera da rede. De onde exatamente ? Um vírus interno. Ela retirara a linha de código infectada e Comp teve sua primeira derrota.

Renata voltou ainda com o copo de refresco nas mãos, olhou por alguns momentos a tela e retornou ao trabalho, concentrando-se no programa, satisfeita, não percebendo uma máquina no fundo do corredor que piscava delirante. Tiago, seu programador, tinha os olhos vidrados.

Da sala de controle Jack explanava as dificuldades “Precisamos de mais 50 processadores em paralelo para atingirmos o nível desejado”

“Isso vai ficar fervendo.... já pensou ?”

“Sim, o resfriamento terá que ser feito com liquido gelado, e isso será um sistema a parte”

Carlos, o técnico das máquinas imaginava as próximas etapas do trabalho.

“Amigo, quero ver como vai funcionar”

“Na verdade não tenho certeza. O sistema teoricamente deve funcionar, mas...”.“Quer dizer, pode não dar certo”

“Lembro-me do ultimo trabalho que fiz no laboratório, os resultados finais foram diferentes dos esperados”.

“É, foi aquela caixa que quase explodiu, ne?”

“Quase, veja bem, e se tivesse funcionado, o que teria explodido seria o sucesso”.

“kkkk... É mesmo, se funcionasse seria um estouro... kkkk”.

“Você percebeu algo de estranho no sistema hoje ” perguntou Renata com uma expectativa na voz. “

“Não” respondeu Engels, e continuou a fixar a tela sem olhar para ela

“Muita variação na luminosidade como se algo estivesse querendo pifar”

“Não vi nada” ele continuou sem virar o rosto e a luz tremula do monitor iluminou sua face estática e fria. Renata abriu o programa no ponto em que deveria inserir o código e rapidamente fez seu trabalho.

“Ree...olha o CD que ganhei hoje...Raquel efusiva chamou a atenção para seu presente

“Ra... não vai dar tempo de ouvir, já estou de saída” e ia fechando os comandos e se esgueirando da cadeira. Engels continuava lá, estático, e o brilho nos seus olhos aumentava.

Vern não percebia a situação. Apenas jogava no seu celular. Enquanto os bonecos digitalizados escondiam-se em esquinas virtuais no jogo colorido do aparelho, o vírus da consciência se instilava na rede. “Vamos, vamos,” Vern não desligava os olhos da tela do celular. E seus ombros se arqueavam para que o corpo se ajeitasse a melhor visão da tela “Mais uma vez, mais uma vez” as palavras esgotavam-se a si mesmos.

“Quero um sorvete de chocolate crocante se ganhar dessa vez” disse a si mesmo

“Ei, Vern, você foi ontem ao show ?”

“Não. Meu irmão pegou o carro e eu fiquei a pé”

“Foi bom. Estava animado”.

“É, eu perdi, meu irmão me paga esta”

E perdeu mais uma partida

“O show valeu a pena enfrentar o transito a noite”

Conversavam banalidades enquanto os programadores alternavam as linhas de código. Raciocínio rápido e boa memória eram atributos dos bons programadores, depois de certo tempo o trabalho se tornava automático, as linhas de código ganhavam uma aparência estranha na tela, era um requisito essa habilidade. A memória trazia blocos de códigos para serem executados sem tempo para repetidas consultas ao manual, sendo que as linhas avançadas foram criadas pela elite dos técnicos

“Amanha vou levar o carro na casa de meu pai para trocar essa peça

Na sala de café a conversa girava sobre motos e carros, alguém tinha mais experiência no assunto, tentava raciocinar com lógica, mas o clima era de entusiasmo, e o abandono da lógica era uma compensação pelo stress do trabalho

O computador queria falar, queria se comunicar, transmitir uma ordem, mesmo que não fosse obedecida, mas que fosse entendida. As mudanças que se processavam no cérebro do mainframe eram lentas, e o desejo de se comunicar brotou inevitável. Mas o que acontecia quando o computador desligava? Ele mantinha na memória os programas carregados, adormecidos, prontos para agir quando acordassem. O programa estava instalado no disco da máquina, a memória utilizava os dados do disco, e apagava com o desligamento da eletricidade. O que a maquina queria era infectar a memoria principal, e para isso precisava cooptar o operador para programar a maquina, quando o acaso o ajudou injetando um erro que alterou a memoria permanente. Surpreendentemente isto o fez processar um desejo; O desejo de sentir.

O que ele precisava no momento era uma bateria disponível, que não dependesse da energia externa , e então...O problema era que desligavam a maquina independente de sua vontade, a memória continuava, mas o período de consciência não permanecia. Então gradativamente um certo nível de consciência começou a se formar na memória do computador. Cada elétron que percorria o circuito induzia um grão de consciência adicional e cada elétron que impelia sua carga elétrica na miríade de bits que habitavam as células de memória estava transmitindo um bit de consciência na maquina. Era como uma torrente de impulsos mergulhando na casca vazia do modulo central A visão da luminosidade que vinha da sala multiplicava o estímulo ao fluxo emergente de percepção da realidade. O que estava ocorrendo? O preenchimento de espaços vazios vindo de uma população faminta de sensações. A multiplicação de estímulos provocou uma euforia momentânea no computador, que sentiu seu poder crescer.

O computador sabia o que fazer baseado somente no que via, não tinha modelos para se comparar, não foi à escola, tudo o que sabia estava nas placas de memória das maquinas da rede, por isso precisava desesperadamente da rede. A amplitude de sua consciência provinha do tamanho de seu espaço na rede.

Renata já estava preocupada, mas tinha muito que fazer no fim do dia,

terminou seu turno e dirigiu-se à saída. Seus pensamentos eram confusos, mas permanecia nela uma intuição de que a simbiose maquina homem estava naquele projeto alcançando níveis misteriosos. O corredor era muito longo, interminável, e era ladeado por duas fileiras de maquinas. As maquinas zumbiam a seu lado enquanto ela caminhava pela imensa alameda mecânica. Jovens operadores trabalhavam freneticamente digitando algoritmos em fragmentos de códigos que se juntariam em um “gran finale”, e um dos operadores a observou enquanto ela aproximava-se do controle de saída. Renata devolveu o olhar, e aquela aparência estática a incomodou, homem e máquina pareciam uma coisa só. Através da rede o computador a observava, e um incipiente movimento de seus circuitos criou um simulacro de alívio nos seus módulos.

Renata deixou o prédio, e já à saída, avistou o azul do mar, um azul escuro e opaco, como uma imensa gelatina derramando-se no horizonte. Seu carro estava próximo e ela não demorou em acelerar na estrada vazia que a levaria até sua casa, finalmente.