AS LAVADEIRAS
APRESENTAÇÃO:
Escrevi essa história não sabendo do final. Tenho essa "Coisa"; nunca sei como começar tampouco como terminar.
Ainda lembro de como surgiu. Em uma conversar durante um almoço, uma amiga citou a vida corrida que fora a sua infância. Durante o diálogo ela relatou que ajudava a sua mãe lavando roupas à beira do rio. Quando ouvi isso foi o "PLIM!" Até porque a minha avó também lavava roupas no rio e eu ia com ela rsrs...
Minha mente processou informações demais durante esse momento e pensei, "Tenho que escrever isso." Mas eu não sabia como seria, o que aconteceria e muito menos como terminaria. Levei alguns meses na construção dessa história e durante a escrita muita coisa aconteceu. O desenrolar foi surgindo, acontecendo... e houve um momento em que eu não acreditei quando o desafio das LAVADEIRAS surgiu. Eu não esperava por isso. rsrs. Contudo consegui concluir a história e estou muito feliz. Acredito que essa é a melhor parte, quando concluímos. Todo o processo de escrita é solitário, enfadonho, mas ao mesmo tempo é satisfatório. E eu me sinto assim: SATISFEITO. REALIZADO.
A história não foi revisada, pode conter alguns erros ortográficos, mas a leitura está fácil. Quero dividir com vocês a minha alegria e espero que, assim como eu, vocês gostem.
Boa leitura!
"Mas cadê meu lenço branco... ô lavadeira
Que eu lhe dei para lavar... ô lavadeira
Madrugada madrugou ... ô lavadeira
E o sereno serenou ... ô lavadeira
Não tenho culpa do que se passou
Deu uma chuva muito forte
E o lenço carregou."
O Canto Das Lavadeiras
Em 1991, O Canto das Lavadeiras de Almenara foi descoberto por um músico e folclorista da região, a partir disso foi registrado em CD.
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?
Não irei me apresentar a você, caro leitor, pois minha identidade não se torna necessária neste momento da história. Mas diante mão quero alertá-los de que tudo o que aconteceu, de certa forma, eu estive lá. Não necessariamente da forma como você pense, mas outra totalmente secreta. Oxi! Não tão secreta assim. No entanto detectar minha presença nessa narrativa será algo insignificante para você, quem sabe eu passe desapercebida, já que os acontecimentos que se seguirão serão mais importantes do que eu.
Percebi durante o tempo que irei lhes contar que decisões são importantes: ela salva e mata. Também gera dor, frustração e arrependimento, uma cruel realidade que ninguém está isento. Acredito que no decorrer da vida entre o ir ou vir o importante é o decidir. Decisão é poder.
Enfim, não quero me demorar nesse prelúdio, quero lhe contar a história que aconteceu depois de muito tempo, quando uma nova geração de mulheres lavadeiras passaram a herdar o ofício transmitido de suas bisavós às avós, das avós às mães e das mães às filhas. Elas herdaram uma graça ou uma maldição? Isso só você dirá, caro leitor. Vai depender do seu ponto de visão. Então deixe-me começar do início...
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ELLAS
Em um vilarejo já um tanto moderno, com suas casas simples de varandas assombreadas por palhas de coqueiros ao pé do morro, de ruas asfaltadas em alguns pontos, existia um grupo de belas jovens mulheres, entre elas Lúcia Valéria. Os cabelos pretos e curtos emolduravam o rosto pequeno de olhos puxados e fundos. Os lábios eram uma fina risca, sempre em um formado de riso. De aparência atrativa, ela era mais uma que ainda carregava a tradição da família. De personalidade marcante, estava sempre de bem com a vida. Saudava a todos, tinha o respeito de muitos e recebia elogios sempre que traçava o caminho de sua casa para o rio, onde lavava as roupas. Filha de uma dona de casa aposentada, que descansava dos dias de lutas, Valéria ganhava a vida como lavadeira. Certo dia, em uma manhã de sábado, Lúcia terminava o café, já se programando para sair, quando a mãe falou:
— Quantas trouxas hoje? — A voz firme saiu abafada pela xícara que tapava a boca.
— Três, mamãe.
Ambas estavam à mesa. Lúcia beliscava as cascas do pão que caíra no pires. O forte cheiro do café imperava no compartimento. O café era necessário; o energético para o dia que estava iniciando.
— Eita. Vai levar tudo na cabeça? Achei que fosse usar o carro de mão. Afinal, são três trouxas. — A mãe falava, mas sem nenhuma excitação. Estava neutra.
— Que nada. São coisas pequenas, eu dou conta. — Uma pequena pausa para um gole e então completou: — Falando nisso, chegou uma família nova na cidade e ficou sabendo dos nossos serviços....
— Já pedi para você parar como isso — interrompeu-a bruscamente. — Há outras profissões para se trabalhar — disse a mãe, encarando a tamanha quantidade de roupa depois a filha.
— Já conversamos sobre isso, mamãe. A senhora sabe que herdei esse dom da minha Avó. Você mesma já foi uma lavadeira.
— Dom? — A mãe exibiu um sorriso. Aquele gesto carregava tudo menos alegria. — Desde quando lavar roupa se tornou um Dom?
— Não fui eu que inventei isso. — Lúcia encarou a mãe do outro lado da mesa. Daria tudo para entender o que acontecia com ela, sempre que decidia ir lavar roupa. — Cresci ouvindo isso da senhora.
— Isso é passado — respondeu a mãe de súbito, com um olhar triste. — Seu eu pudesse voltar no tempo teria consertado as coisas. Os tempos mudaram, minha filha. Existem outros meio de se lavar uma roupa.
— Eu sei e aceito a sua opinião, mas têm coisas no passado que nos faz bem. Eu gosto do que eu faço. — Valéria fitou as peças no canto, como se fosse algo precioso.
— Você não sabe o que está dizendo. — A mãe levantou-se, recolhendo sua xícara da mesa.
— Então me diga. — Lúcia seguia a mãe pela cozinha com o olhar penetrante. — Fale o motivo de que quer tanto que eu deixe de ser lavadeira?
— Esqueça — disse a mãe de costas, à beira da pia. — Vá lavar as suas roupas.
Aquele assunto estava por encerrado. Era sempre assim; quando a mãe de Lúcia virava as costas era um sinal bruto de PARE.
Lúcia morava em cima do pequeno morro. No terreno da sua casa, sua mãe cultivava plantas frutíferas de vários tipos. O quintal era um espaço verde, repleto de flores, bem cuidado pela proprietária. Era um local privilegiado; pela manhã, quando sol despontava no horizonte, sua casa era a primeira do povoado a receber os raios matinais. A mãe nunca pensara em sair dali, apesar de toda vez ter que descer um tantinho para chegar ao centro do Vilarejo.
Lúcia desceu o morro com uma bacia sobre a cabeça. A todo instante remoendo o que acabara de ouvir. Você não sabe o que está dizendo. O que necessariamente sua mãe queira dizer com aquilo? Existia algum perigo? Qual? O relacionamento delas tinha altos e baixos e Valéria sempre tentou seguir um modo de vida certo, mas ao que parecia nada do que fazia agradava a mãe.
Ela seguiu a descida. Para uma lavadeira o equilíbrio era fundamental. Duas peças de pano eram enrolada uma à outra em forma de um caracol, depois era posta sobre a cabeça para sustentar o peso da bacia de alumínio. A lavadeira, que despusesse de um bom equilíbrio, andava com a bacia livremente sobre a cabeça, sem precisar fazer uso das mãos. Às vezes, as mãos eram usadas para outro fim, tipo: levar o balde com os produtos para a lavagem.
As pessoas do pequeno Vilarejo conhecia o ofício das lavadeiras; uma profissão que estava se extinguindo com o avanço da tecnologia. No entanto, ainda havia na cidade aqueles que preferiam o trabalho delas. Faziam esforços para que suas roupas chegassem até elas. Ficavam satisfeito com o procedimento que suas peças recebiam, com o modo que era feito e o resultado que máquina de lavar nenhuma faria. Nunca faltava clientes, tanto no povoado como na cidade. Além de Lúcia, Rita também cumpria o ofício. De uma simpatia exclusiva, ela tinha o maior apreso pelo o que fazia. Vendo Lúcia, Rita logo foi saudando:
— Bom dia, lavadeira! — Rita concluía um nó à boca do saco cheio de roupas, depois erguendo a bacia.
— Eita! Bom dia, Rita. Vai descer agora?
— Estou pronta, mas temos que esperar a Betina. Sabe como ela é enrolada. E ainda têm os filhos que não dão uma trégua, coitada — disse Rita, com um leve pesar.
— Acredito. Por isso vive tão estressada.
— E você não sabe da nova... a pobi levou um par de...
Rita não pôde completar, pois a voz de Betina gritando com alguém se fez ouvir de longe. Era uma mulher guerreira, carregava a responsabilidade do lar nas costas. O ganha pão eram as roupas. O marido, que mais parecia uma múmia, vivia de bicos aqui e acolá. Quase não dava pra nada.
— Ela tá arretada hoje, mas não é pra menos — observou Lúcia Valéria, vendo a amiga fechar a porta da casa.
— Vamos arredar o pé daqui, minha gente. Terei mais sossego lavando roupa do que ficar nessa casa com essa gente doida. — Betina, de igual modo, caminhava em direção às amigas com a bacia sobre a cabeça e baldes nas mãos.
Betina era atraente. De cabelos crespos, presos em um coque alto, enfeitado pela tiária amarela, tinha seu rosto emoldurado com olhos puxados e lábios carnudos. O sorriso curto era sua marca e se olhasse bem, era perceptível as marcas de uma tristeza camuflada, ou seria um cansaço?
As três partiram. O vento da manhã soprava sereno, balançando as saias rodadas que tremulavam nas pernas das mulheres. Eram mulheres jovens, fortes, bonitas e corajosas. Caminharam por entres as poucas ruas do vilarejo, até chegarem a um espaço mais amplo, na saída do povoado. O cercado à frente estava coberto pela relva verde. A cerca era nova, arames farpados também. A porteira permanecia aberta, o dono sabia que, para elas irem ao rio, precisavam atravessar o terreno. Conversavam e sorriam. Se deram conta de que estavam chegando quando viram um monte bem pequeno que as separava do rio. Antes aquele fora um grande morro, mas agora o vento o havia desfeito, aplanado. A subida seria bem mais rápida e fácil.
— O rio tá uma beleza. A água bem cristalina — Rita observou, mergulhando o pé no líquido frio.
— Ainda bem. Dá pra ver que a chuva ajudou bastante Tem tempos que esse rio fica cheio de lôdo. — Betina se preparava para se postar no seu lugar.
— Meninas, trouxe muita roupa hoje. Vou precisar de um ajudinha — Lúcia Valéria riu.
— Tô nem doida!
— Que é isso, Betina? — Rita pôs-se a falar — Sempre ajudamos umas às outras. Não tem esse negócio de cada um por si.
— Aff!
— Tudo bem, gente, foi só uma brincadeira — interrompeu Valéria. — Vamos começar logo porque o dia vai ser longo.
Todas se sentaram às suas pedras.
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A DESCOBERTA
A manhã seguiu tranquila. O Sol estava forte e a água do rio cada vez mais brilhava ao toque dos raios da grande estrela. Betina já havia lavado grande parte da trouxa, quando falou sem pensar:
— Ando muito cansada. Vou dar uma parada. — suspirou pesarosa.
— Agora não dá. Faltam só as peças básicas...
— Não estou falando da trouxa, Rita.
Rita não pôde deixar de notar a surpresa no olhar de Valéria, quando a encarou. Estava passando escovão no jeans quando foi surpreendida.
— O que quer dizer com isso, Tina? — Valéria largou a calça, encarando a amiga.
— Era pra ser segredo, mas não tenho como esconder. Sabem que entre nós não há mistérios. Uma hora ou outra vocês iriam ficar sabendo, então resolvi contar logo — suspirou. — Vou me mudar, tenho que procurar uma vida melhor para eu e meus filhos. — Betina, agachada sobre os joelhos encarava o rio. Ela pôde ver sua fisionomia cansada. Já vivi dias melhores, pensou.
— Oh, mas amiga, tenho certeza que há uma solução para esse problema. — Rita tentou animá-la, mas viu que a tristeza no rosto da amiga era pior que qualquer falsa esperança.
— Meu marido me galhou, pronto! — Revelou, erguendo as mãos como sinal de rendição. — Eu... eu queria esconder isso de vocês, mas não dá e agora serei a piada no Vilarejo, Cidade, até aonde a notícia se espalhar. — Betina pegou o sabão, mas logo desistiu, como se esfregar a roupa já não fosse mais o elo importante. Ela o deixou imergir nas águas corrente.
Lúcia Valéria estava incrédula, mas Rita fingiu surpresa, pois já sabia do ocorrido. Pela manhã quisera contar para Valéria, mas não deu. No entanto já não poderia falar nada àquela altura com o clima tenso.
— Que situação — Foi o que disse, por fim, levando a mão à boca.
— Estou pensando em sair da cidade e arrumar outro emprego. As crianças vão comigo, é claro, não estou nem doida de deixar elas aqui.
— Betina, e seus cliente? — Lúcia tentava encontrar uma forma de fazê-la pensar direito em sua decisão.
— Ora essa! Eles terão vocês. São boas lavadeiras e darão conta do trabalho.
— Você sabe que não é tão simples assim, Tina. — Rita franzia a testa sob o Sol, afim de encontrar o olhar da amiga. — Cada lavadeira tem o seu toque. Não pode ser substituída.
— Isso é história pra boi dormir. Minha gente, qualquer mulher pode fazer uma coisa dessa. Qual é o segredo? É só pegar o sabão, o escovão e esfregar.
— Não seja ridícula, Tina. — Lúcia confrontou. — O que aprendemos de nossas avós e mães não é mera historieta. Existe algo mais além de sabão e escovão.
— Lúcia, minha amiga, não quero me apoquentar com você, aliás nenhuma das duas. Primeiro, não ouvi nada da minha mãe e segundo, o que ouvi foi fantasias de terceiros ainda mais. Para mim não influi em nada. A decisão está tomada. Agora deixem de amolar e vamos cuidar nessas roupas. Daqui a pouco o sol esquenta e aí já sabem.
Concentrada, Betina voltou à esfregar. A partir daquele momento o único barulho que se ouvia era o da água sendo agitada, do tronco de madeira descendo sobre os jeans pesados e o escovão sendo manuseado sem dó. O clima estava tenso. Lúcia conhecia a amiga e sabia o quanto era decidida em suas decisões, porém sair da cidade, largar seu ofício por causa da traição? Bem, é um motivo muito coerente, mas há muita coisa em jogo e Tina talvez não esteja pensando direito. Lúcia tinha mais a falar com a amiga, mas sabia que o momento não era propício. Tentaria mais tarde, outra hora.
Era por volta das 11h, o calor aumentara, as mulheres ora molhava os braços, ora a cabeça, a fim de amenizar o calor da pele que queimava. O cheiro do sabão em barra exalava das peças amontadas em um canto. Rita enxaguava as peças brancas, meticulosamente manuseadas, quando Betina falou:
— Não tem espaço suficiente para estender as minhas roupas.
As barreiras brancas serviam como um espaço para secar as peças. As roupas eram estiradas ao sol naquele pedaço de morro de barro branco. Porém, Lucia já havia estendido metade das que lavara e, vendo que não restava espaço, Betina decidiu:
— Vou ver se encontro algum pedaço de pau para pelo menos fazer um giral.
— Tina, tem vaga. Eu tiro algumas...
— Ora, deixa disso, Val. Vou pegar rapidinho ali, tenho certeza que pau é que não falta nesse mato.
— Então eu vou com você. — Rita se dispôs.
— Pode ser.
Ambas saíram.
Lúcia continuou com o seu trabalho, a cada esforço o resultado lhe agradava. Estava tentando focar. Mas sua cabeça a surpreendia com o recente dilema, além da mãe, Val agora tinha outra preocupação; Tina. Mas por quê? Val não conseguia responder àquela pergunta. Qual sentido fazia ela se preocupar tanto com a decisão de Betina? Por que aquilo a incomodava, sendo que cada uma tem direito à decisões? Apesar de amá-las, não se pode mudar as pessoas, pensava ela, mergulhando as peças no rio.
Seguiu-se a liturgia: as roupas brancas eram lavadas separadas. Alguns dos clientes mandavam produtos especiais para as lavagens específicas, mas Lúcia sabia que aquelas coisas modernas não limpavam nada. Por isso, fazia do jeito que fora ensinada. Ensopava a peça com bastante sabão, depois de esfregar deixava exposta ao sol, vez ou outra jogando água para não queimar: era o tal de quarar, e, por fim, enxaguava aplicando logo em seguida o amaciante. O resultado era excelente, tão branco que quase era impossível de se olhar.
Passaram-se alguns minutos e o vento era a companhia que cantava aos ouvidos de Lúcia. O bater das peças contra a pedra ecoava pelo espaço em um ritmo rápido, quando de repente Valéria ouviu um grito. Seu nome sendo chamado emergia da mata. Rapidamente foi tomada por um pressentimento estranho. Olhou ao redor, mas não via nada. Tudo estava normal; o rio corria lento, o vento soprava sobre os coqueiros. A quietude passou a amedrontar. Outro grito e dessa vez Lúcia se levantou. Da saia molhada grudada às pernas, água escorria por seus pés enquanto seguia mato adentro. Palhas secas, arbustos, caixotes de coqueiros e todo tipo relva ornamentava o caminho à frente.
— Tina, Rita? — Valéria gritou, aguçando os sentidos enquanto caminhava. Sua voz se espalhava a cada grito. O espaço verde respondia com o eco, mas não era a resposta esperada. Desprendendo o tecido da saia longa dos gravetos à beira do caminho, ela seguia. Aonde elas estão, indagava.
— Tina, Rita? Cadê vocês?
— Aqui, Val. — Era a voz da Betina.
Lúcia olhou à esquerda, ao longe avistou duas silhuetas, e logo apressou o passo. Chegando mais perto percebeu que ambas fitavam o chão, como se encarasse algo instigante.
— O que foi, criatura? — perguntou Val, curiosa, chegando mais perto.
— Olha o que nós achamos. — Rita apontou para algo.
Lúcia Valéria deu mais alguns passos, se esquivando das raízes e fitou; era um pequeno e estreito buraco. Algo estranho se camuflava dentro dele, algo velho.
— O que é isso...? — foi o que conseguiu dizer.
— Estava procurando o bendito do pau, quando Rita pisou sem jeito nesse buraco. — explicou Betina.
— Quase quebrei o pé, Val. Ainda bem que me aprumei no galho dessa árvore.
A árvore. Lúcia não tinha prestado atenção ainda na árvore. Era algo medonho. De copas altas que se derramavam pelo ar. Flutuavam e assombreava as três abaixo como um manto preto. Era lindo. Era mágico.
— Certo, mas o que é isso? — Lúcia indagou novamente, encarando o objeto no buraco.
— Eu não sei, achamos que é um tipo de vaso. — Rita girava o pé, conferindo o estado após o “quase” acidente.
— Eu vou pegar. — Tina se dispôs.
— Espera! — interrompeu Val. — Betina, e se tiver algo de venenoso nesse negócio?
— É, Tina, e se tiver alguma cobra ou escorpião... — Rita arregalou os olhos em assombro.
— Ora, me poupe! É só dá uma batidinha para qualquer coisa sair de dentro... — Com cuidado ela manobrou um graveto e bateu no objeto na intenção de afugentar qualquer bicho de lá. — Não disse, não tem nada. Agora me deem licença. — Betina se aprumou sobre os pés e estendeu as mãos. Com um pequeno esforço foi puxando o objeto. A cada centímetro revelado, as três olhavam com curiosidade. Enfim estava fora.
— Eita, bixa arretada! — Lúcia cantarolou, após a amiga pegar o objeto.
— É sério? — Rita se aproximou. Sua feição era de incrédula.
— É um tipo de... jarro, vaso, sei lá. — Betina virou o objeto de um lado para o outro.
— Algo desse tipo enterrado é naturalmente muito estranho e olhem isso, meninas. — Lúcia apontou para um detalhe. — O que eu estou vendo é o que é?
— Retalhos? Panos? — Tina passou a mão limpando a areia de cima.
— Que tipo de arte é essa? — Val questionou, curiosa.
— Sei lá. Joga isso que é macumba. — Rita declarou.
— Macumba o quê, doida. Deve ser alguma coisa que eu ainda não sei. — Betina interveio.
— Bela explicação, obrigada.
— Meninas, deixem de agonia. Vamos levar isso.
— Mas, Val...
— Rita, deixe de besteira. É só um Jarro. — frisou, Tina.
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SEGREDOS
— Onde vocês encontraram isso?
Foi a primeira coisa que a mãe de Valéria perguntou quando as três, ao cair da noite, voltaram para casa com suas trouxas e o objeto misterioso.
— Foi um acidente, Dona Menina. — Rita esboçava uma feição de criança arteira, de quem aprontou. Diante da mesa, com algumas xícara de café, as mulheres discutiam a descoberta.
— Algum problema, mamãe? Parece até que a senhora viu um fantasma. — Lúcia encarava a mãe, que ainda fitava o objeto no centro da mesa. Parecia hipnotizada.
— Dona Menina, você já viu algo parecido? É uma coisa medonha. — Tina aguardou a resposta, bebericando do café.
— Isso não deveria estar aqui — disse por fim, saindo do transe. — Livrem-se disso, já. — De súbito, Dona Menina levantou-se.
— Como assim, mãe? É só um jarro. — Lúcia debruçou-se sobre a mesa, avaliando o objeto. — Um tipo de artesanato que, sei lá, parece inacabado. Vejam só, tem tiras de panos dentro dele. — disse olhando os rostos ao redor.
— É, e estava perdido, ou, sei lá, escondido. — Rita relaxou na cadeira, estirando as pernas sob a mesa. A cada palavra um gole do café era tragado. — Por qual razão alguém esconderia um negócio desse no meio da mata? — Ela lançou a pergunta e o clima pesou. O mistério se instaurou. Dona Menina, à porta da cozinha, parou.
— A razão não é tão simples como parece. — suspirou D. Menina. Os ombros caídos revelavam cansaço; um peso invisível que carregava, do qual nunca se libertara. — Só se esconde algo quando é necessário. Nada é por acaso.
— Mamãe, porque diz isso? — Valéria encarou as costas da mãe, que relutava contra o passado; a verdade.
— D. Menina, você sabe alguma coisa a respeito desse negócio? — Tina ateou a pergunta como lenha à brasa. D. Menina voltou-se, seu rosto cansado demostrava uma tristeza. Sentando-se à mesa falou:
— Preciso contar uma coisa para vocês; um segredo. — As mãos posta sobre a madeira que sustentava o desconhecido, carregavam marcas de um passado com julgo pesado. Aquelas mãos, as marcas nelas visíveis, tinham histórias para contar. Quem sabe, histórias que nunca deveriam serem narradas. No entanto, para tudo chega o tempo e D. Menina sabia disso. Após um longo silêncio, sussurrou: — Levei anos escondendo isso, vivendo com essa culpa.
— Culpa? — Rita olhava firme para a mulher de cabelos grisalhos que há tempos conhecia. — Minha mãe sempre se queixa de alguma “culpa”.
Lúcia e Tina encaravam a amiga, que surpresa percebeu olhar da D. Menina sobre ela.
— Rita, minha querida. Vá chamar sua mãe. Precisamos contar algo para vocês. — D. Menina lançou um olhar de tristeza para Tina e completou: — Vocês todas.
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REVELADAS
Parecia uma sessão: três cadeiras, comportando três rostos curiosos. Uma mesa no centro sustentando o objeto de barro e dois rostos castigados pelo o tempo, apreensivos, escondendo algo que logo seria revelado. Figuravam pacientes e médicas. Diferente do que de costume se sabe sobre sessões com psicólogos, naquela noite, sob a luz fraca da cozinha de D. Menina, o que seria dito era algo totalmente diferente. Nada seria exposto pelas “pacientes” como: medos ou frustações, ao contrário, as palavras seriam das “médicas” que tinham um segredo para contar.
Rita, após o pedido de D. Menina, desceu o morro em busca da mãe. Uma senhora de braços fortes e feição tranquila que soube no exato momento o que se daria: uma revelação retardada há anos. Sem questionar, seguiu a filha. A caminhada fora rápida. Ambas mal trocaram palavras, no entanto não precisava. Camuflar a verdade com conversa prolixas era perda de tempo e a mãe sabia disso. Rita estava sendo consumida pela curiosidade, uma esfera de segredos se acoplava a um objeto encontrado. A mãe em seu interior se preparava para o pior. Enfim chegara o momento.
O encontro das duas amigas da terceira idade foi sem muitas palavras. O olhar dizia muito e mais. Aquilo já era esperado. Rita, Betina e Valéria ainda não entendiam o que estava, ou melhor, iria acontecer. Lúcia estava intrigada com o comportamento estranho da mãe. Nunca antes vira daquele jeito. Pelo modo como as coisas estava sendo conduzida, algo muito sério estava para acontecer.
As cinco se reuniram. Três delas eram meras ouvintes, como em uma plateia esperando o desfecho da peça. D. Menina reajustou o vaso no meio da mesa e diante das feições começou:
— Foi há 30 anos.
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HÁ 30 ANOS
— Estamos ficando sem tempo!
— Não consigo correr mais.
— Coragem, meninas! Falta pouco.
Eram três. Exatamente às 19h as mulheres corriam contra o tempo. Juntas desbravavam a mata caliginosa, atravessando cercados sinistros lutando contra o medo que já imperava em suas mentes. Percorreram um grande cercado deserto, onde se via apenas uma pequena cabana de palha solitária, cercada pelo o breu e o frio da noite que descia sobre a relva verde. A paisagem dançava ao vento que balançava as árvores. Elas passavam por aquele lugar várias vezes durante o dia, conheciam bem as redondezas e tudo o que havia por ali. Porém, naquele momento era diferente. Parecia que havia alguém ou algo dentro da escuridão olhando, acompanhando seus passos ligeiros.
— Estamos chegando — alertou Maria, a mais velha, que levava no ombro dois retalhos vermelho.
— O vento tá brabo. A lua já se escondeu detrás das nuvens, minha gente — Mirna dizia com a voz afogada. De igual modo levava no pescoço dois tecidos finos verdes.
— Só falta descer o morro e chegaremos ao rio. E então estará tudo acabado. — Amélia, que levava um vaso com uma substância líquida, encorajava as outras duas com uma confiança ímpar. Na cintura tecia duas mantas brancas.
As três avistaram o pequeno ponto do morro. Do outro lado estava o destino, mas ainda tinham que subir. Então, percebendo a posição da lua, apressaram-se em enfrentar o obstáculo à frente. O ar estava lhes faltando, mas o futuro do vilarejo, do mundo dependia delas. Subiram. Quando chegaram ao pico do morro, a lua quase no ponto mais alto, avistaram o pequeno rio lá embaixo, a mata. Elas conheciam muito bem aquele lugar.
O vento avivou.
— É a hora meninas — Amélia segurou o vaso com firmeza e desceu o morro, espalhando atrás de si ondas finas de areias que lhe cobria a cabeça.
O rio estava ali, a luz do luar resplandecia na água que vagarosamente começou a se agitar. Olhando a Oeste, viram o escuro da mata, donde se originava o rio. Parecia que alguém mexia na água, mas não viam ninguém, não havia barulho; se existia, não era deste mundo.
— Amélia, o vaso! — gritou Maria, empunhando seus tecidos nas mãos.
— O círculo, meninas, rápido! — Mirna se posicionou junto com elas, retirando do pescoço os panos verdes. — E não saiam de suas posições por nada.
— Coloquem os retalhos dentro do vaso, agora! — Após a ordem, Amélia colocou o vaso no centro do rio. Ao movimento, as águas se abriram em um círculo perfeito, deixando as três e o vaso sobre terra úmida. Ela abriu a tampa e, em uma coreografia perfeita, todas mergulhavam no vaso seus tecidos. Um de cada modo.
O vento bradou com mais força. As saias tremulavam como bandeiras da resistência sobre as pernas fortes. Cabelos chicoteavam os rostos das que se mostravam imponente na formação do círculo. O frio percorria o corpo das mulheres, que lutavam para terminar o que faziam. Era um ritual, um encanto. Teriam que mergulhar seus tecidos dentro do vaso contendo uma espécie de argila, misturada com barro. A cada mergulho, as águas do pequeno riacho se agitava, mas não ultrapassavam o círculo mágico. A magia reinava ali. No breu da floresta, uma fina risca de luz azul surgiu flutuando, piscava como se uma lâmpada quisesse ser acesa. Elas se entreolharam e na mesma hora, juntas, retiraram seus tecidos e começaram a enrolar. As mãos fortes e calejadas torciam o pano, fazendo a argila pingar, sendo consumida pela areia úmida. Amélia, vendo a grande lua no seu auge, disse às amigas:
— Estão prontas?
— Sim, prontas!
Rapidamente um som gutural se fez ouvi no breu, colidindo com as mulheres no rio. Elas encaravam o som, mas ainda não viam nada além da luz que começara a crescer.
— Está vindo!
— Rápido, enrolem!
Juntas: Amélia, Mirna e Maria se despuseram e começaram a enrolar seus tecidos um no outro. Eram UMAS. Fizeram um nó bem grosso com as pontas dos tecidos. Juntou as de todas, e depois disso deram início a um tipo de trança. A trança flutuava no meio delas pela magia. Cada uma com dois, no total três tranças de dois. A cada enrolada, o barro pingava dentro do vaso. As gotas cinzas levitavam em direção à boca do artefato. Com isso a luz flutuante diminuía.
O vento, o elemento da oposição, rugia.
Elas continuaram. Juntas tentavam se manterem firmes, não poderiam quebrar o momento por nada. Estavam já chegando ao final da trança, onde o três-nós seria o toque final, quando um sopro veemente fez Mirna cambalear.
— Não! — gritaram duas.
Mirna foi obrigada a desfazer o círculo, quando retirou o pé após o movimento. A mão cansada deixou a trança cair, ficando suspensa apenas por outras mãos, que ainda seguravam. Era tarde demais. A luz flutuante se expandiu como uma bomba; uma força bruta de magia. Um redemoinho de luz branca desceu no meio das três, e de forma explosiva foram jogadas para fora do rio. O círculo se fechou e ao impacto da colisão, uma explosão de grandes gotas subiram alto, se espalhando por toda à beira do rio como uma chuva de pedra. Amélia foi lançada contra a barreira branca e Maria caiu entre os arbusto altos. A onda de vento se recolheu do espaço, com um buraco negro. De súbito, as águas do rio voltaram a sua corrida tranquila. A floresta já não dançava, a lua mudara de lugar no céu. Tudo parecia calmo e sereno, o breu dentro da mata já não existia mais. Maria e Amélia, depois de minutos, levantaram com uma tontura e viram o artefato de barro à beira do rio: estava incompleto e, para a tristeza de ambas, Mirna havia sumido.
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À MESA
A casa já não comportava o clima tenso que se abateu sobre ela. O peso se infiltrara nas paredes, escorrendo para fora pelas janelas abertas. As mulheres ao redor da mesa estavam silenciosas. As feições nos rostos das tais eram diversas; surpresa, tristeza, medo e a pior de todas; culpa. D. Menina, a Maria, após relatar o que acontecera há tempos, sabia que o silêncio deveria ser quebrado e estava pronta para enfrentar as consequências que viesse pela frente.
— Sinto muito — disse ela, com o olhar perdido sobre a mesa. — E-Eu devia...
— Minha mãe... E-Ela não morreu, e-ela sumiu. — Tina interrompeu, ainda não conseguindo digerir toda a história. — Não, olha, me desculpem, mas não é hora de contar contos de fadas.
— Mamãe, o que está dizendo...
— É a verdade — interrompeu Amélia, antes que Valéria falasse algo que viesse piorar a situação. — Eu estava lá.
Rita encarava a mãe, incrédula. A voz presa.
— Eu sei que não é fácil para vocês, mas isso acontece a cada 30 anos. — Maria falava firme.
— Isso? — Tina indagou. — O que você está querendo dizer? Que minha mãe foi levada por um não-sei-o-quê e que vai voltar?
— Por favor, Tina, se acalme...
— Se acalmar? — Betina assustada, encarava Val. — Minha cabeça foi bombardeada por uma lenda onde minha mãe foi levada e agora vem me pedindo calma?
— Isso não é uma simples lenda, Betina. — Amélia frisou, apontando para o vaso na mesa. — O que vocês acharam não foi mera coincidência. Esse jarro com esses retalhos é um encanto muito poderoso...
— Não! Chega! — Rita se levantou, assustando a todas. — Eu não posso mais ficar aqui ouvindo isso.
— Filha. — Amélia tentou.
— Não, não tem esse negócio de filha. Olha, e-eu só quero ir para casa.
— Precisamos de você. — Maria interveio, antes que Rita desse no pé. — Todas vocês.
— Não tem nada de vocês. — Tina de igual modo se levantou. — Minha vida está um caos. Meu marido me traiu, tenho filhos para sustentar. Não posso viver o resto da minha vida lavando roupa e agora essa história de luz que leva lavadeiras. Sinto muito.
Betina deixou a mesa e encaminhou-se para a saída. Valéria nada dizia. Certeza de que tinha muitas perguntas, mas não conseguia dizê-las. A verdade é aterradora. Tivera uma mãe que participara de algo macabro e que nunca fora relatado. Era muita coisa para absorver.
— Tina, sua mão pode estar viva! — Maria gritou, como se fosse sua última chance.
Lúcia ergueu os olhos e encarou a mãe. Os olhos dela brilhavam.
— Maria, não. — Amélia interveio. — Pode ser perigoso.
— É a única chance de consertamos as coisas, Amélia. Mesmo que haja um preço a pagar.
— O quê? — Betina parou. — D. Menina, ou melhor, Maria, não brinque comigo. Minha mãe está morta. A não ser que a senhora seja algum tipo de deusa e possa trazê-la dentre os mortos.
— E-eu não estou. — Um longo suspiro se fez ouvir. — Eu não estou brincando com você, Betina. Esse vaso é a chave. Sua mãe está no outro plano. A única forma de trazê-la de volta é abrindo o portal.
— Que grande menti... — Rita sussurrou, mas logo interrompeu, quando os olhos das quatros a fitaram. — O que quer que a gente faça? Acha que somos crianças? — disse acanhada, tentando disfarçar.
— Rita, querida. Vou perdoar você por essa vez, porque eu sei que está abalada por tudo isso. Sei que a verdade sobre mim e sua mãe lhe possa ser assustadora, mas da próxima vez que você me xingar eu vou te enxotar daqui, entendeu? — Maria encarava a jovem que logo se encolheu entre os ombros.
— De-desculpe.
— Olhem, meninas. — Amélia se pronunciou. — Em especial você, Betina. Estamos em dívidas com vocês. Mentimos, sim, mas foi para protegê-las. Não queríamos que fossem lavadeiras porque o mal sempre volta. Ser lavadeira não é apenas esfregar, é mais do que isso. É uma tradição que vem dos nossos antepassados. Onde segredos, mentiras de muitos são revelados entre nós. O mundo não nos compreenderia. O que levou sua mãe, Tina, ela vai voltar.
— Ela? — dessa vez, Valéria interrompeu. — O que exatamente é “Ela”
Amélia encarou Maria, como se pedisse uma autorização, depois de segundos revelou:
— A VERDADE.
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O TEMPO
Dizem que o tempo cura tudo. O tempo não cura nada, ele adormece. Tira do centro aquilo que dói por um curto espaço de tempo, nada mais e se for para curar, já é uma boa hora, pensou Tina desolada, lembrando da velha citação que em um dia lera no livro de um dos filhos.
Desde a última vez que vira as meninas, Betina havia se ausentado. Precisava desse tempo para reordenar os pensamentos, as decisões que viriam a serem tomadas. Ela se escondeu. Evitava falar com Valéria, Rita, Amélia e em especial D. Menina, que descobrira se chamar Maria.
Mas mesmo escondida, as pessoas a procuravam. O que queriam com ela? Porque não me deixam em paz? O que ouvira sobre sua mãe desde criança fora por água abaixo naquela noite. Não houve doença nenhuma, ela foi levada. Por quem e por que? Ela não sabia responder a uma dessas perguntas. Por quem, ela ouvira na noite; pela VERDADE. Me poupe!
Estava difícil. As coisas estavam se complicando. Ela precisava de dinheiro, o marido a abandonara dias antes, por outra moça da cidade. Além da cabeça cheia de coisas medonhas, ainda tinha que aguentar os pesares e olhares de pena das pessoas. Eu tenho que ir embora desse lugar. Os filhos precisam dela e ela precisa de trabalho. Definitivamente, estava em um impasse.
Era 21h quando bateram à porta. Lúcia Valéria costurava um saia de cores variadas sob a luz da sala. O vento que adentrava pela janela trazia o aroma cítrico do pé de limão plantado ao lado da casa. D. Menina já dormia e afim de não ver a mãe acordar, largou o tecido e foi atender a porta.
— Val? — A voz chamou. Lúcia reconheceu ser Rita.
Valéria retirou o ferrolho e a porta rangeu. Rita trazia nas mãos um depósito.
— Rita, aconteceu alguma coisa?
— Não. Só trouxe isso para você. — Ergueu a vasilha e, retirando a tampa, mostrou duas tapiocas.
— Oxe! Bateu aqui a essa hora para me trazer tapioca? — Lúcia sorriu ao ato da amiga.
— Vai me deixar aqui no tempo, ou vou poder entrar?
— É claro, entre, entre.
As duas seguiram para a sala. Rita se postou ao lado da cadeira da amiga, fitando o trabalho inacabado da costura.
— Vou trazer café pra nós. Não vou comer essas tapiocas sozinha.
— Quero uma xícara bem cheia.
O tempo parecia não passar na casa de Valéria. Duas lavadeira que há dias não se viam tiraram um momento para conversarem sobre tudo. É incrível como tanta coisa pode ser acumulada em tão pouco espaço de tempo.
O café da xícara já havia acabado e a tapioca também. Rita ajudava Valéria em um conserto, aguardando o momento propício para revelar o que de fato fora fazer naquela casa.
— Tem notícias da Tina? — Lúcia indagou, enfiando a agulha no buraco para fechar o nó.
— Tenho ido ao rio sozinha. Ás vezes passo pela casa dela, mas sempre vejo as portas fechadas. Os meninos tem saído pouco para brincar na rua. Sendo sincera, Val, estou preocupada com ela.
Valéria relaxou as mãos, colocando o trabalho sobre as pernas.
— Ainda está sendo difícil para eu entender toda essa maluquice, Rita. Mamãe tem tentado me explicar, mas toda vez que paro para ouvi-la minha cabeça vagueia, como se eu a colocasse em um banco de réu.
— Nossas mães tinha um baita segredo escondido, hein? — Rita sorriu de lábios, querendo suavizar o clima. — Estive na casa de Mamãe. Ela me chamou e pediu para conversarmos. A princípio não quis, mas confesso que fiquei curiosa.
— Sério?
— Oxe, Val. Esse negócio todo de portal, outro mundo e, sei lá, encanto, me parece bem legal. Me lembra as histórias que Vovó me contava sobre fadas e bruxas.
— Meu deus do céu, Rita. Estamos no mundo real. Não é nada de fadas, pode ter certeza. E outra coisa, se for verdade o que nos disseram então...
— Acontecerá de novo. — Uma voz rouca interrompeu.
Lúcia e Rita olharam por sobre os ombros e se depararam com o rosto de Maria. Vestia uma camisola branca com detalhes de lavanda desenhadas a altura da gola. Com cabelos grisalhos, presos em um coque rápido, ela se encaminhou para a outra cadeira à frente das duas.
— Mamãe, achei que estivesse dormindo. — Lúcia a fitava, mas notara algo diferente em seu rosto. Uma convicção talvez.
— Não dá pra dormir com vocês duas cochichando. — disse, revirando os olhos.
— Desculpe D. Menina. Eu é que falo demais.
— Tudo bem, Rita, eu sei. E já era a hora de eu falar com vocês também.
— Falar? — Lúcia encarou a amiga se preparando para o pior. — Tem algo mais para ser dito?
— Tem — Por um segundo, D. Menina segurou as palavras, como se ponderasse na decisão. Segundos se passaram e então soltou a bomba: — A VERDADE tentará passar pelo portal mais uma vez daqui a cinco dias.
Era o fim. Um peso desceu sobre elas. O que era? Medo, pânico? Ou as duas coisas misturadas? Lúcia sentiu as borboletas no estômago entrar em desespero. Rita não conseguiu fechar a boca, seus olhos esbugalhados revelava o assombro.
— Co-Como assim, D. Menina? — Foi preciso um esforço para a voz sair. Rita ouvira tudo até ali, mas a ideia de algo atravessando um portal fez seu cérebro, por segundos, empancar.
— O jarro que vocês encontraram é a chave para aprisionar A VERDADE. Ele está incompleto, como vocês viram.
— O que é A VERDADE? — Lúcia não fez cerimônia. Essa “coisa” já estava sendo citada há dias, mas ainda, de fato, não sabia o que era. Estava na hora de ter tudo às claras.
D. Menina fitou as duas, os rostos lisos, com alguns toques do Sol sobre a pele. Eram mulheres bonitas, fortes. Lembrou-se do dia em que tivera essa mesma conversa com sua Avó e de como igualmente esboçara as mesmas reações.
— Mãe?
— A VERDADE é uma coisa. — disse de súbito, voltando dos devaneios. — É uma força, sem rosto e sem forma. Uma magia poderosa que faz um estrago devastador. Nosso dever é controlá-la ou... segurá-la.
— Seja mais clara, D. Menina — pediu Rita, curiosa, prendendo os fios longos atrás das orelhas.
— O mundo está repleto de mentiras, garotas. Há mentiras encobertas por todos os lados. Quando eu, Mirna e Amélia éramos lavadeiras descobrimos inúmeros aleives. Essas trouxas que vocês lavam carregam histórias de traições, mentiras, erros imperdoáveis e decisões irreparáveis. Não era raridade encontrarmos bilhetes de amantes em calças de homens casados. Do mesmo modo, coisas “interessantes” em peças femininas. Havia marcas de sangue em vestidos, pequenos detalhes que não nos passavam desapercebidos. Peças íntimas violadas, cartuchos de balas esquecidas. Apesar do nosso tempo ser diferente do de agora, a mentira vem acompanhando a humanidade desde a criação.
— E?
— Ainda não acabei, Rita. — Houve uma pausa. — Nos dias em que íamos ao rio, percorríamos o mesmo caminho que vocês. Sabíamos da verdade, sempre sabemos. Tenho certeza que vocês escondem segredos entre si. — Lúcia fitou Rita, que ressentida lembrou-se da traição que Tina havia sofrido, antes mesmo dela saber. — As lavadeiras são caixas de segredos. A mentira pode ser revelada entre vocês, mas as pessoas a quem a verdade pertence não pode ser dita antes do tempo. Toda verdade tem o seu tempo, assim como a mentira. No mundo, até os mais poderosos escondem a verdade, preferindo o efeito nauseante da mentira. Mas um dia tudo acaba.
— Então porque prender a verdade? A verdade é a solução de tudo. — Valéria replicou.
— Exatamente, minha filha. A verdade é a solução. Mas pare para pensar. Imagine se a verdade fosse exposta a todos de uma só vez? Que colapso isso teria sobre a humanidade?
— Uma guerra? — Rita arriscou, tímida.
— Não havia pensado nisso.
— Acredito e também não lhe julgo, na sua idade pensei da mesma forma. A questão que vocês têm que entender é que a verdade não é um mal, mas ela precisa do tempo. Há um tempo certo para tudo. A mentira tem o seu tempo e a verdade também. Por isso o jarro.
— Mas, o que é aquilo exatamente? — Rita comprimiu as sobrancelhas. — Só vi um objeto de barro com uns panos endurecidos dentro. Até tentei tirar, mas não saiu por nada. Apesar das pontas de fora estarem livres.
— Aquilo foi o encanto que não deu certo. Cada tira de pano é um símbolo da lavadeira. — revelava D. Menina, fitando o espaço da sala. — Mirna foi levada porque o encanto foi interrompido, por isso dos retalhos solto.
— E o que a gente tem a ver com isso, Mãe?
— Precisamos refazer o encanto. — As palavras desabaram.
— Mas, D. Menina, a senhora já fez isso uma vez, pode fazer de novo. — A voz hesitante de Rita revelava temor.
— Não posso. — Ambas fitaram a mulher. — Não mais. Teria que sermos três. Mirna não está aqui. Então cabe a vocês. — disse ela, erguendo a poucos centímetros o dedo indicador.
— E como você sabe que é daqui a cinco dias?
— Será lua cheia. A cada trinta anos, neste mesmo mês acontece um alinhamento de planetas, onde nossa lua se torna maior e mais brilhante. Acontece algo inusitado. A lua se posta no ponto máximo no céu e ela desaparece.
— Não aguento mais isso. — Rita deslizou as mãos sobre o rosto.
— Não estou falando dessa forma, Rita. — D. Menina levou dois dedos à têmpora. — Estou querendo dizer que a lua reflete apenas no rio e desaparece por alguns segundos do céu. E esse é o momento em que o portal entre os dois mundo se abre.
— Mas Betina não acredita nisso tudo. Pelo o que parece a verdade a transformou, não quer nem ver a gente.
— Exatamente. A verdade transforma as pessoas, apesar de ter vindo para ela no tempo certo. Tina carrega um trauma maior devido a verdade escondida; ela causa isso.
— E o que a gente faz agora? — Lúcia se endireitou na cadeira, já esquecida do remendo que fazia. O problema maior se apresentara e o futuro de todos estava por um triz.
— Vocês precisam convencer Betina a fazer o encanto, ou então o mundo sofrerá um colapso. A verdade não pode ser libertada da maneira que ela quer. Seria uma onda de pessoas em caos; pensamento, decisões, atitudes, vingança, mortes, tudo isso e muito mais irá acontecer se a verdade for solta antes do seu tempo. O universo tem que seguir com o seu curso natural. Tempo a tempo. Encontrem Tina. O evento é daqui a cinco dias.
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ARREPENDIMENTO
O Sol despontara no horizonte. As nuvens matinais ornamentavam o céu pintado de laranja e dourado com os raios que se espalhavam pelo extenso manto azul. Lúcia mexia o café com o olhar perdido, embalada pelo tilintar da colher contra a porcelana. Acordara cedo, mal conseguira dormir na noite passada após o que ouvira da mãe. “Estamos encrencadas” foi a última coisa que Rita disse quando deixou a residência.
De fato havia um problema; um baita problema. O universo havia virado sua vida, rotina e pensamentos de cabeça pra baixo. Até àquele dia em que juntas estavam no rio, lavando as roupas como de costume, a vida estava nos trilhos. Bem, pelo menos de algumas. Betina estava triste, as consequência de um casamento sem amor dera às caras. Contudo, isso poderia ser resolvido, tentariam encontrar um jeito plausível. Mas abruptamente, com a descoberta de uma coisa, veio as verdades arrasadora. Lúcia estava preocupada. Rita assustada e Betina já não se via há dias. E agora? Indagava Lúcia Valéria, fitando o tempo, ouvindo os cantos dos primeiros pássaros despertos. Um desafio lhes fora proposto; encontrar Betina.
Lúcia trajava um vestido tubinho com forte marcas de lavagem, enquanto encaminhava-se em direção à casa de Rita. À porta, encontrou uma bacia de alumínio com algumas peças. Não era dia de lavar roupas no rio. Intrigada, Lúcia adentrou a residência da amiga. No fogão, água fervia. Sobre a mesa havia uma jarra com pano de café; Rita estava preparando. Curiosa, Lúcia chamou pela moradora, mas não foi respondia. Aquilo estava estranho. Sem cerimônia, ela atravessou uma pequena passagem entre a cozinha para a sala. A TV estava ligada, mas Valéria não se atentou ao que era exibido. Olhou pelo recinto, mas não encontrou o que de fato procurava.
— Rita? — Chamou mais uma vez, agora indo em direção ao quarto.
Na entrada do cômodo, Lúcia parou. Estava tudo revirado. Parecia que uma invasão acontecera naquele lugar. A cama estava surrada. Gavetas caídas ao pé do guarda-roupa exibia peças íntimas da proprietária. O que diabos aconteceu aqui? Lúcia Valéria fitava atônita o caos no interior do quarto. Um amontoado de papéis chamou sua atenção, estavam amassados outros rabiscados. Aquilo era particular ou não? Lúcia não tinha como saber. Com passos silentes se aproximou da cama. Reconheceu em uma dobra de papel um nome familiar escrito.
Aquele nome...
De sobrancelhas franzidas, Lúcia desdobrou o papel. A cada puxada de aba, mais seus batimentos aceleravam. Quando por fim abriu por completo o papel amassado, ela pôde ler, mas não acreditou. Aquilo era demais. Sua amiga não poderia ter feito aquilo.
Rita deixara a sua própria casa naquela manhã, consumida pela culpa. Quem dera que se mantivesse somente na culpa. Algo pior nasceu, invadindo seu eu; a dor. Depois da revelação, de saber o que a esperavam que enfrentasse, seu medo a torturava. A VERDADE, lembrava ela, é muito perigosa. Se pudesse voltaria no tempo. Mostraria não ser fraca. Decidiria que o melhor era rejeitar, se afastar, mas agora, ali, era tarde demais. Quanto tempo levaria até a verdade ser revelada? Rita tinha certeza que a verdade, na sua condição, desencadearia uma teia de consequência. A mentira tem seu efeito temporário; é bom, viciante. Mas a força maior é imbatível, desbravadora. Rita sabia que a sua mentira seria revelada pela verdade e, com isso, pôde entender o quanto a verdade é implacável. D. Menina tem razão, dizia ela, observando a relva sobre um pequeno monte à frente do rio. A verdade tem de ser mostrada aos poucos, cada indivíduo no seu tempo; cada consequência na hora certa.
As lágrimas surgiram. Os olhos ardiam sendo inundados pelo líquido salgado. Dor. Culpa. Uma dupla que age sem misericórdia. No entanto, Rita poderia evitar o efeito da verdade, só teria que tomar uma decisão. Levemente baixou a cabeça e olhou para as pequenas sementes vermelhas com um ponto preto se destacando. Aqueles pequenos “olhos preto” lhe fazia o convite. Ela podia até ouvir uma voz em seu ouvido lhe garantindo uma escapada da verdade. É claro que ela podia ouvir, desde que soubera de portais, força mágica e magia com jarro e lua, nada mais lhe era estranho.
As duas sementes chacoalharam em sua mão quando decidida Rita a levara à boca. No movimento de colocar na língua uma voz, por detrás, a fez travar. Seu nome era clamado, gritado como se implorasse pela sua atenção. Rita fechou os olhos e as lágrimas se libertaram, descendo pela face corada. Por que ela não conseguiu? Essa resposta talvez somente o universo teria, pois Lúcia corria ao seu encontro, como uma mãe em direção a um filho à beira do precipício.
— Rita, para! — O espaço, as árvores, o vento foram os mensageiros. O pedido de desespero era transportado pela natureza, que levaram a voz desesperada da amiga, que corria, até Rita que esvaída repousou a mão com as sementes sobre a coxa.
Um abraço. Um martelar de um coração acelerado era possível sentir às costas. Rita foi abraçada. Ela sentia o aperto protetor. A ânsia do encontro.
— Rita, meu Deus. O que pensa que estava fazendo? — A voz de Lúcia saiu trêmula.
— E-eu sou uma miserável, Lúcia. — Rita desabou em prantos. Aquilo foi o ápice.
— Shiii. Não fale isso. — Aquele aperto era significativo, sincero. Lúcia estava ali para salvar a amiga.
— Eu preciso fazer isso. Me deixa...
— Rita, eu compreendo sua dor. Mas essa sua decisão é a errada.
— Então será a última.
— Por favor, não seja egoísta. Depois de tudo que passamos, vivemos. E ainda mais agora... — Lúcia procurou a melhor forma de falar sem ser rude. Rita estava com os nervos em frangalhos. Às vezes uma palavra mal dita é fio para o desespero. — Rita, precisamos de você. — Foi o que conseguiu dizer.
— Lúcia...
— Por que não me contou? — Lúcia sentou-se ao lado da amiga, acariciando lhe os cabelos longos, pedindo sua atenção. — Por que não me disse que tinha um caso com Carlos, o esposo da Betina?
Desde o momento em que vira aqueles papéis sobre a cama com trocas e juras de amores, Lúcia perdeu o fôlego. Tina vinha sendo vítima por três vezes. Aquilo estava errado, é claro. Ainda mais se tratando de uma pessoa a qual dividiam um vínculo forte de amizade. Lúcia compreendia o arrependimento de Rita.
— Estou com medo, Lúcia. — Rita fitou à amiga. Seus olhos vermelhos demostravam o real sentimento de culpa.
— Rita...
— Estou com medo da verdade. Da Betina. Ela era nossa, minha amiga. Depois de ontem — ouviu-se um fungado. — da importância que temos que fazer, fui pra casa. Meu juiz interno me julgava, condenava. Eu não podia mais viver com aquilo, então... — Um silêncio se prolongou entre ambas, mas Lúcia não pressionou. — Liguei pra ele e disse que era o fim.
— O que ele disse? — A atenção de Lúcia estava totalmente voltada para Rita.
— Ele foi um babaca. Disse que não tinha mais nada com a Tina e que nós poderíamos vivermos juntos. — Lágrimas fluíram. — Mas eu não tive coragem de aceitar isso. Meu Deus, Val, como Tina ficaria quando descobrisse isso. Quando soubesse da verdade.
— Por isso você rasgou as cartas?
— Rasgar as cartas não elimina os efeitos do ato. A lembrança tortura. Acordei decidida a falar com você, mas perdi o controle dos meus pensamentos. Sai de casa com um intuito de acabar com esse sentimento que anda me corroendo há tempos.
— Por isso as sementes? — Lúcia olhou para as mãos de Rita e viu que ainda estavam lá. Como dois olho a chamando para o abismo.
— É-É
— O que você fez foi errado, mas não estou aqui para lhe condenar. Todas nós somos sujeitas a falhar, errar. Nossas mães erraram com a gente. Você falhou com Tina, eu errei com você por não perceber seus medos e tentar te ajudar. Há sempre erros e o melhor é que alguns podem ser consertados.
— E quanto aqueles que não tem consertos?
Lúcia encarou o rosto da amiga e viu a expressão dela, como se implorasse por um escape. A partir dali o que Lúcia dissesse faria Rita decidir em se entregar à escuridão ou se abrigar no caminho da luz.
— A gente enfrenta — disse por fim. — Mesmo que haja dores.
— A verdade...
— Ela virá pra você, isso é fato — Lúcia interrompeu. — Mas podemos apressar o processo da verdade.
— Como?
— O momento da VERDADE pode ser o pior, mas você pode falar antes. Quem sabe o resultado seja diferente.
— Mas há perigos
— Quando se decide abandonar a mentira em troca da verdade sempre haverá um efeito. Um perigo talvez. Mas que vale a pena correr, não acha? — Lúcia sorriu, encorajando a amiga.
— Está certa, Val. — Disse Rita, retribuindo o sorriso. — O-Obrigada.
— Saiba que não desistirei de você. Minha amiga, minha lavadeira. — Lúcia a abraçou forte e antes de ir ordenou: — Agora joga isso fora e vamos. Temos que ir em busca de uma lavadeira perdida.
Rita abriu a mão e as sementes rolaram por entres seus dedos para o precipício a qual pertenciam.
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A BUSCA
“Fui descendo rio abaixo...
Numa canoa furada...
Arriscando a minha vida...
Por uma coisa de nada...”
A música é uma cura, ou ao menos deveria ser. Betina se pegou lembrando das canções que eram cantadas à beira do rio por ela e suas amigas. Ainda conseguia lembrar do momento em que fora auxiliada a usar o escovão. Da primeira vez. Recordava com exatidão a manobra precisa a qual o pequeno talo de madeira deveria ser usado. Não foi tão difícil. Ainda conseguia ver, o raiar do sol nas manhãs, as roupas amontoadas em sacos e bacias prontas para serem lavadas. Lembra da sensação que era sentir a areia sob os pés. Do cheiro de sabão de coco que emanava das roupas brancas, da corrente de água que banhava suas pernas e braços. Da amizade que desfrutava. E agora tudo acabou, pensava ela em um ponto de ônibus, à espera da Van.
Duas mulheres seguiam com passos firmes pelas ruas e becos do Vilarejo à procura de UMA. Lúcia Valéria e Rita estavam desesperançadas. Foram à casa de Tina e constataram o que já sabiam; estava vazia. Bateram em algumas portas em busca de informações. Os vizinhos, curiosos, nenhuma informação tinham para dar, mas, como todo curioso, perguntavam:
— Aconteceu alguma coisa?
— Ela está bem?
— Soube que ela foi traída...
Aquelas perguntas eram desnecessárias. Rita sentia-se culpada. Aquilo não estaria acontecendo se ela não tivesse sido uma idiota. Lúcia não perdia tempo com pessoas, não naquela situação. Ambas procuraram pela tarde e entraram na boca da noite; nada de Betina. Se havia alguém que pudesse dar alguma informação plausível, este estava sendo evitado até aquele momento.
— Temos que falar com o Carlos — admitiu Lúcia, temendo a expressão da amiga.
Houve um silêncio. Rita sabia que não haveria outra coisa a se fazer e precisava encontrar a amiga e resolver aquela a situação de uma vez.
— Eu sei onde ele está.
Em disparadas, ambas correram.
A pequena parada, a qual Betina aguardava o transporte, estava deserta. Além dos barulhos dos filhos, ela só conseguia ouvir a cantiga dos primeiros insetos no crepúsculo, que já saudava o Vilarejo. Uma vida inteira estaria sendo deixada para trás. Em compensação uma dor, uma tristeza, seria levada para outro lugar, onde só tempo poderia curar. Como será de agora em diante? Ela não sabia. No entanto, tentar acreditar no desconhecido seria bem melhor que ficar e enfrentar uma dura realidade.
A realidade, pensou ela, faz doer. A traição foi a pior, principalmente quando soube por quem fora traída. Rita é uma jovem bonita e engraçada, nisso Tina teria que concordar, mas ela só não entendia o porquê.
— A culpa não foi dela. Vim aqui para te falar isso. — Carlos estava pálido, quando fora confessar certo dia. — Ela não queria, mas eu... eu...
Tina não conseguiu dizer nada. A revelação foi aterradora. A verdade é implacável. Era disso que D. Menina falava.
— Fale alguma coisa, Tina.
— Não preciso falar nada. Não há o que dizer. Você me traiu com minha amiga. O que quer que eu faça? — Sua voz embragada, despontava as lágrimas.
Carlos também falara com Rita no dia seguinte. A mentira o consumia, da mesma forma o ato da traição de uma pessoa que não merecia. Decidira contar a verdade. Tinha certeza que seria a parte mais difícil e não contava com perdão de Tina. No entanto, se ver livre do julgamento da sua consciência era a melhor coisa que poderia ter.
Tina ficou desolada. A dor sucumbiu às lágrimas. Estava só, no quarto. A melhor parte foi os filhos não terem visto aquilo. Não saberia explicar, não haveria o que dizer a eles. Não ali, não naquela noite. Tina se rendeu aos lençóis e arrasada, chorou.
Já era 18:30 quando um farol surgiu no fim da rua. Aquela era a sua deixa. Rapidamente, Betina recolheu as poucas bolsas que trouxera, daria um jeito te mandar pegar o restante, e estendeu o braço para dar o sinal. De súbito, ela ouviu uma voz. Reconheceu o tom, o compasso. Mas havia algo estranho, a curiosidade que a voz emanava era instigante. Virando de lado, Tina viu dois olhos escuros lhe encarando, era Joaquim, seu filho mais novo.
— O-O quê? — Tina sussurrou. Sua cabeça parecia flutuar, inundada pela voz do filho. Uma leve tontura a surpreendeu.
— Mamãe... — o filho puxava seu braço, fitando algo além deles. — Olhe.
Tina não conseguia raciocinar direito. Então olhou. Algo surgia no final da rua. A paisagem escura, como um quadro, fora maculada por uma forte luz que cegava, lhe fazendo franzir a testa. Betina percebeu algo que se destacava no ar; parecia leve, ondulante. Serpeava no vento, como uma cobra astuta. O que era? A cada vez mais se aproximava. A luz desfocada se fora e agora ela conseguia ver apenas o objeto que chegava mais perto levitando no breu. Ele dançava na atmosfera, era fino, delicado. É um tecido. Betina não acreditava no que via. Devo estar muito cansada, pensava enquanto fitava o tecido que, ao chegar mais perto, se dividiu em dois. A cor. Aquele tom verde lhe era familiar. Onde vira ou ouvira...? Mas é claro! A lembrança abraçou-a fazendo compreender, o lenço verde era de Mirna, era de minha mãe.
— MÃÃÃEEE! — ouviu-se um grito. — Nós perdemos a Van. — era Cláudio, o filho mais velho.
Um sopro reconfortante envolveu a mãe, que ainda estava hipnotizada com o que vira.
— Podemos voltar pra casa? — Joaquim a cutucou.
Betina estava pasma. O que foi aquilo? Sua expressão era de surpresa. Atônita olhou ao redor, procurando sentido ao que acabara de ver. Mas não encontrou nada. Aflita, sentiu um peso descer sobre seus ombros. A razão bateu à consciência, lhe alertando de um perigo. Tina balançou a cabeça, afim de ordenar os pensamento, mas a visão não saía por nada. Consternada, sentou-se no banco improvisado da parada, o escuro já se assenhorava do local.
— Tá tudo bem, mãe? — A voz do filho se misturava aos pensamentos bagunçados.
Passos foram ouvidos. Chinelos cantavam contra o asfalto, enquanto Betina fitava ao longe, quatro pernas vindo em sua direção. O coração acelerou. Gritos em conjuntos ecoavam pelo céu. Pela fraca luz dos postes, Betina percebeu os rostos tristes, assustados, desesperados, cada vez mais se aproximado. São elas. Ela teve certeza. Mas Tina não se sentia preparada para o confronto que lhe aguardava; Rita estava chegando. O que eu vou fazer? indagava-se, fitando o betume da estrada, piscando as pálpebras. Rita... Rita... o nome imperava em sua mente. Carlos... Carlos... de igual modo a imagem dos dois martelava sem dó.... Droga!
— Tina!
É claro! É claro que a verdade surgira um efeito. Tina sentiu sua mente clarear. Rita carregava a culpa, por isso estava vindo, precisava do perdão. E Tina carregava a frustração por ter vivido em uma mentira, sua mãe não morreu, está viva.
Ela poderia muito bem lidar com aquela verdade e também enfrentar a de Rita. E por que não? Eu posso me dar uma nova chance, pensava Tina, sentindo o coração bater mais forte. Carlos é um idiota e Rita também, mas distinto deles, eu posso fazer diferente. Tina se levantou de um pulo e se postou à frente das duas, que faltavam três passos para chegar.
— Tina, por favor. Não vá. — Lúcia pediu entre ofegos.
— Betina, eu preciso falar com você, por favor. Eu preciso...
— Não precisa, não. — Tina interrompeu o lamento de Rita. — Eu sei da verdade.
Olhares assustados se encontraram. Rita estava pálida, mas decidida.
— Estou pronta para o que você disser. Não posso mais viver essa mentira. E errei com você. Com vocês duas, assumo o meu erro...
— Você foi vítima e fraca, Rita. A verdade da sua mentira doeu muito. — Tina a encarava — Da mesma forma que a verdade sobre minha mãe. Eu estava cega com o efeito e juntando tudo foi o gatilho para a minha decisão. Mas.... — Sua expressão agora mudou. — Aconteceu alguma coisa, aliás eu vi alguma coisa.
— O quê? — Lúcia se aproximou. — O que você viu, Tina?
Com uma expressão diferente no olhar, Betina confirmou:
— Vi o que me mandou voltar pra casa.
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OS TECIDOS, AS CORES
A água estava gélida. O rio corria lento. Sentada às pedras, três mulheres, com diferentes pensamentos trabalhavam caladas. O que estariam pensando? A cada momento que passava mais a incerteza imperava. Lúcia estava decidida a ir até o fim? E Rita, que ainda se martirizava com o ocorrido em relação a amiga, se mostrava tão curiosa quanto antes? Betina, a desacreditada, tomara a decisão certa? Não tinha como saber. As três eram incógnita uma para a outra.
Rita ensaboou a tolha pesada de algodão, espremeu e cuidadosamente a colocou enrolada sobre a pedra retangular. O bastão de madeira, que tanto lhe ajudara, estava ao seu lado, pronto para a tarefa que lhe aguardava. Rita, afim de afugentar o silêncio doloroso, começou a cantarolar, enquanto com esmero desferia a madeira sobre a toalha:
— “Mandei caiá meu sobrado...” — a voz era como sussurro, um grave arrastado. — “mandei, mandei, mandei. Mandei caiá meu sobrado...”
— “Caiá de amarelo.” — Uma nota diferente se fez ouvir, um soprano afinado. Rita, com olhar esperançoso viu que Lúcia continuava: — “Mas cadê meu lenço branco... ô lavadeira, que eu lhe dei para lavar... ô lavadeira...”
— “Madrugada madrugou ... ô lavadeira” — Tina ergueu a voz, pegando as duas de surpresa com o mezzo perfeito. — “E o sereno serenou ... ô lavadeira.”
“Não tenho culpa do que se passou
Deu uma chuva muito forte
E o lenço carregou.”
As três, em harmonia, entoavam a canção das lavadeiras. Rita ainda trabalhava na toalha, enquanto Betina mergulhava os lençóis nas águas trêmulas. Lúcia Valéria puxava o refrão a plenos pulmões fazendo do rio o palco dos talentos. Aquilo foi mágico. A floresta vibrou, árvores e pássaros apreciavam a magia que estava acontecendo naquele lugar. Elas não se importavam com mais nada. Rita fitava Betina, que completava a estrofe, com um sorriso verdadeiro estampado no rosto. Lúcia deslizava o sabão sobre a peça frágil, balançando a cabeça no ritmo da música. Aquela era a primeira vez em tempos que juntas cantavam a canção.
Houve Magia.
De repente, os olhos de todas se focaram em um curioso movimento dentro do rio. Parecia um vulcão entrando em erupção, mas diferente dos ameaçadores, o que elas viam eram algo pequeno e curioso. A areia se revirava, como se um crustáceo estivesse querendo sair. Ondas se formavam sobre a face das águas. Aquilo estava esquisito. Rita se levantou de onde estava e lentamente caminhou em direção ao centro do rio. Tina fitou as duas, que já estavam próximas e de igual modo se juntou a elas. De dentro do pequeno vulcão, que mais parecia uma areia movediça, algo despontou; era um pequeno retalho de tecido.
— Que diabo é isso? — Betina quebrou o momento assombroso. — Fiquem quietas, não dá pra ver direito com vocês se mexendo.
— É algum pedaço de pano. — Observou Lúcia.
— Tem mais de um, conseguem ver? — Rita apontou.
As águas do rio pareciam ferver. As ondulações causadas pela aparição, atraiu a atenção das moças. Lúcia atentou para o que via: o tecido roxo lhe era fascinante ao olhos. Seu desejo foi de pegá-lo, como se nunca na vida tivesse visto algo tão perfeito e delicado.
— Lúcia, não. Pode te puxar pra dentro. — Rita tentou intervir, mas já era tarde. Lúcia puxou o tecido, que facilmente se revelou em algo valioso. Tinha os comprimentos de uma echarpe.
— Oh, mas isso é...
— Tem mais um! — Betina apontou para outro pedaço que emergia do buraco. Um tecido de cor amarelo, como uma pétala do girassol, foi puxado por ela. A cor estonteante embalava os olhos de Betina, que em um movimento rápido a colocou sobre o pescoço: — Isso é de outro mundo.
Rita estava hipnotizada pelo outro retalho que balançava ao movimento do rio, como se fosse uma alga presa aos corais, de um lado para o outro. Aquele era o seu. Um retalho fino e transparente de cor azul foi puxado de dentro do rio, após isso, o movimento cessou.
— Alguém pode me explicar o que aconteceu aqui? — Lúcia perguntou, como se estivesse saído de um transe.
— Eu também quero saber. — Rita fitava o azul anil do tecido com adoração. — Eu nunca vi fibra igual a essa.
— Eu também não. Num instante estava lavando e no outro estou aqui. — Betina analisava o retalho com esmero. — Só tem duas pessoas que pode nos dar uma explicação disso.
As três se entreolharam e entendendo a situação se dispuseram rapidamente em concluir o que estavam fazendo. Algo de suma importância as aguardavam em casa.
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UMAS
Algo estava estranho, ambas sentiam. Desde o começo da manhã, algo inusitado as alertava de uma possível nova descoberta. Mas o quê? Indagara uma delas, podando o pé de limão. As duas cantarolavam uma canção aos sussurros. Os murmúrios ecoavam pelo ar numa melodia afinada. O dia estava claro. O pequeno quintal recebia a total atenção das duas que, de última hora, se reuniram para o adubo de uma nova espécie de planta frutífera.
— Cadê o estrume, Maria? — Amélia interrompeu a canção-sussurro, chamando a atenção da amiga do outro lado do quintal.
— Já terminou de cavar? — Maria olhou à distância, tentando ver o resultado. — Tem que ser bem fundo, Amélia. As raízes dessa planta são grandes.
— O pé já está no buraco, criatura. Coube direitinho. Vá lá.
— Vou lá dentro pegar — disse Maria, e saiu.
Ela deu a volta na frente da casa e entrou pela cozinha. Com passos rápidos, seguiu para a pia, onde na parte debaixo um pano velho cobria as prateleira improvisadas abrigando panelas, diversos produtos e o estrume.
Retirando o pacote debaixo da pia. Maria foi surpreendida com um impacto. O som ensurdecedor se assemelhava a uma bomba oca. Foi intenso. Assombroso. Ela ouviu às suas costas algo parecido como uma chuva de pequenas pedras. Algo estilhaçado se espalhando por todos os lados. Um frio correu por seu corpo, suas pernas e braços tremeram. O coração parecia ser apalpado por uma mão gélida, despertando calafrios. Ela não se virou, estava paralisada. Só então quando viu o rosto de Amélia à porta foi que seu cérebro processou os sinais: Amélia fitava algo à frente. De sobrancelhas erguidas e a boca em um pequeno círculo, ela conseguiu falar:
— Maria.... — Um longo silêncio se instaurou.
— Amélia? — Maria agora fitava a amiga estagnada.
— O vaso... — conseguiu expelir aos poucos o que Maria já desconfiava. — ele quebrou.
Rita, Lúcia Valéria e Betina traziam sobre a cabeça as bacias e nas mãos os baldes. As saias bailavam a cada passo que davam. As pernas fortes das mulheres sustentava o peso, trabalhando com afinco, enquanto juntas subiam a pequena e íngreme rua. No caminho, Rita parou em frente à sua casa. Em movimentos rápidos deixou o que trazia e seguiu as duas. Betina entrou na cozinha e já foi logo pedindo aos filhos que deixassem as coisas em cima da mesa, quando voltasse arrumaria tudo. Agora, Lúcia era seguida pelas duas até o alto, trazendo consigo o que naquela manhã lhes fora entregue.
— Mãe? — Lúcia gritou à entrada da cozinha.
— Estamos aqui — respondeu ela.
Lúcia descansou dos pesos colocando a bacia sobre a mesa. As três se encaminharam para a sala, donde um vento confortante entrava pela janela. De súbito pararam quando viram cacos de barros sobre o pequeno móvel no centro da sala. Rita viu a mãe e curiosa indagou:
— Mamãe, o que faz aqui? — Com olhos estreitos, Rita foi encarada.
— Isso pode esperar, Rita. — Tina se adiantou: — A gente precisa perguntar uma coisa às duas.
Maria fitou Tina, Rita e a filha. Os rostos das três carregavam surpresas, ânsias, medos.
— Pergunte — disse Maria firme.
— Os retalhos. O que são eles? Para que servem? — Lúcia não esperou. Tomou a frente e fez a pergunta em nome de todas.
— Eles apareceram para vocês? — Amélia perguntou em tom baixo como se aquilo fosse um segredo.
— Como sabe disso? — Rita indagou.
— Porque o vaso se quebrou. — disse Maria, apontando para os cacos misturados aos pedaços de tecidos.
— Como foi isso? A senhora derrubou? — Lúcia se aproximou, examinado os detalhes como relíquias raras. — Houve algum acidente?
— Foi o encanto — respondeu Maria, balançando a cabeça em afirmação. — Quando o dever é passado para outras. Ele se quebra.
— E só quebrou agora? — Tina fitava Lúcia, ainda com os cacos em mãos, incrédula. — Por quê?
— Porque a magia dos tecidos escolheram vocês. Estou certa? — Amélia deixou um sorriso se revelar. — Andem mostrem o símbolo de vocês.
Atordoadas, Rita, Betina e Lúcia pegaram seus lenços. Sob as blusas largas que usavam para se protegerem do Sol à beira do rio, elas retiraram; cada uma com sua cor, cada uma representando um mistério. Elas exibiam seus retalhos que pareciam flutuar a cada momento que era estendido.
— Mas que fascinante. — Os olhos de Amélia brilhavam observando os detalhes, sem costura, sem pontos. Apenas linhas tecidas por magia.
O amarelo da Betina, o azul de Rita e o roxo de Lúcia exalavam luz própria. Aos olhos era quase impossível fixar a visão por longo tempo. Nos rostos das duas, que há um tempo também vivera aquele momento, o êxtase era notório. Enfim chegara o momento.
— Esses lenços que vocês receberam são símbolos do verdadeiro Eu de vocês. — Maria dizia fitando as três.
— O EU?
— Vocês são únicas. A cada geração três lavadeiras são escolhidas para o difícil ofício. Essa escolha tem a ver com personalidade, coragem e verdade. — explicou Amélia.
— E o que a gente faz com isso? — Lúcia ergue seu tecido roxo. A cor se sobrepunha no espaço rústico.
— Um novo alinhamento de planetas está para acontecer daqui a dois dias — ressaltou uma delas. — Vocês usarão esses retalhos para fechar o portal que se abrirá.
— Já estou passando mal. — Rita resmungou.
— Ainda não, Rita. — disse Maria.
— Dois dias? — Lucia indagou. O medo surgira na voz. — É muito pouco tempo.
— Perdemos muito tempo, meninas, eu sei. Mas agora estamos aqui. E temos que ir a fundo.
— Não sabemos que fazer. — Tina observou. — Apesar de toda essa loucura, ainda me vejo caindo de paraquedas.
— Não se preocupe. Nós vamos lhe ensinar. — Amélia se levantou recolhendo as duas xícaras vazias.
— Ensinar o quê? — Rita fez a pergunta que estava sendo mais aguardada. No caminho, a mãe fitou a filha:
— Como farão o nó. — respondeu Amélia, sumindo na cozinha.
— Nó? — o coral de três indagou.
— O portal só será fechado com um nó. Mas não é qualquer um. Ele tem que ser preparado com uma coreografia.
— Estamos lascadas. — Rita se encaminhou para a cadeira, onde a mãe estivera sentada a poucos minutos. — Não sou muito boa em dança.
— Sem afobação, querida! — gritou Amélia da cozinha.
— Mamãe. — Lúcia falou. A voz um tanto embargada. — Não sabemos se conseguiremos.
Maria fitou o rosto de todas. A casa das mulheres. Em meio ao medo que se espalhava, ela teve que ser a voz da solução, da certeza; da esperança. Limpando a garganta disse:
— Vocês não estarão sozinhas. — seus olhos brilhavam — Eu e Amélia ajudaremos vocês.
— Isso bastará? — Lúcia sentia o estômago em frangalhos. Por um segundo se arrependeu da pergunta.
— Vocês agora são UMAS. Isso basta. O que eu e Amélia vamos fazer é apenas uma pequena ajuda. Não podemos fazer muita coisa, o nosso tempo já passou. Se eu pudesse não teria envolvido nenhuma de vocês nessa coisa toda, mas não cabe a mim. O universo se encarregou disso. O que nos resta agora é cumprir com o dever. E esse dever agora é de vocês. Não tenham medo, meninas. — a voz protetora de uma mãe surgia. — Vocês são UMAS, vão conseguir.
— UMAS? — um sussurro surgiu.
— Sim. Significa que a partir de agora terão que se unirem. Precisaram uma das outras.
As três se entreolharam. A informação estava sendo processada minuciosamente.
— E quanto a minha mãe? — Betina aproveitou.
Um silêncio desceu no lugar. Maria fitou Amélia do outro lado da sala, sentindo os olhares das três, que esperavam uma resposta. Maria sabia que era uma decisão muito difícil, no entanto não poderia arriscar perder tudo justamente agora em que Betina pretendeu colaborar. Não temendo mais, disse:
— Nós a traremos de volta.
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A DANÇA
— Vamos tentar de novo e dessa vez sem erros.
Maria estava sentada à sombra do cajueiro, uma em meio a tantas outras naquele lugar. Amélia estava mais à frente, observando a tudo com total atenção. O tempo voltara naquele instante. Diferente de agora, é que não era mais Maria, nem Amélia e nem Mirna. O lugar havia sido ocupado por novos rostos. Já estava na hora, pensou Amélia dando uma volta ao redor das três.
— Rita, minha filha, você precisa apertar bem firme. — explicava Amélia com uma gentileza que era só dela.
— Vocês precisam manter os pés bem alinhados. E nunca, por hipótese alguma, desfaçam o círculo. — explicou Maria.
Sobre a relva baixa o vento soprava suave. À sombra de uma velha árvore estava Betina, Rita e Lúcia Valéria. Em forma de círculo as três permaneciam duras. “Nunca desfaçam o círculo” a voz imperava nas mentes que assustadas encaravam umas às outras.
— Agora comecem! — ordenou Maria, se dirigindo em direção as três.
Novamente se iniciou. Primeiro a dança dos passos, um após o outro, em um círculo perfeito. Depois os movimentos coreografados das mãos portando os tecidos; desciam, subiam. Eram estirados, encolhidos, enrolados. Depois o mergulho no vaso, cada uma do seu modo; mas não havia vaso, não agora.
— Mergulhem! — pediu Amélia, com voz serena.
O movimento era cansativo, ora se abaixavam, ora levantavam. Torcia os tecidos sujo, fizeram um nó com as pontas e, suspenso ao meio, trançavam duas tiras.
— Já está bom. Estou cansada. — revelou Rita, descansando os braços e sentando no chão.
Lúcia e Tina fitavam a amiga exausta. Elas também estavam cansadas. Desde muito cedo foram levadas aquele lugar para praticar o encanto. Exigia muito controle das pernas, concentração nos movimentos e forças nos braços. Após tantas tentativas as três pararam.
— Sinto muito, D. Menina — disse Betina, a voz descompassada. — Estou muito cansada. A gente continua noutro dia.
— Não haverá outro dia. — Maria se pronunciou em meio a forte respiração das moças. — E também sei que não conseguem mais. O alinhamento é amanhã.
Olhos perdidos se encontraram sobre a mulher de cabelos finos e grisalhos. A expressão nos rostos era nítida
— Como assim, mãe? — Lúcia se levantou. — A senhora disse que o alinhamento era daqui a dois dias.
— Eu me enganei.
Um suspiro.
— Maria...
— Desculpe, Amélia. A memória já não é mais a mesma.
O pânico se acoplou nos ventres das mulheres. Estava perto.
— Mãe, a gente ainda tem muito que ensaiar.
— Lúcia, eu sei disso. — enfatizou. — Mas não posso exaurir vocês. Precisam estarem forte para amanhã.
Não havia mais o que dizer.
— Então — Betina falou: — estaremos prontas amanhã. — A força brotara de algum lugar. Olhando as duas ela continuou: — Não estou preparada para o colapso que seria ver este mundo em caos. Se ensaiamos até agora e falta pouco para a perfeição, então continuaremos a tentar.
Um vento frio soprou sobre os rostos.
— Betina está certa — concluiu Lúcia.
— Então vamos. — disse Rita sacudindo a poeira das pernas. — Só falta mais uma coisa — anunciou Rita, curiosa: — E o vaso?
— Isso não será problema. — disse Maria chegando mais perto. — Amanhã ele estará pronto. Agora, continuem.
As duas, Amélia e Maria se afastaram e deixaram as três. A dança recomeçou, os passos errados eram reparados incansavelmente. Uma energia lhe foram entregues. Apesar de não estarem com os tecidos mágicos, aqueles retalhos velhos faziam bem o seu papel. O vaso imaginário no centro do círculo era usado com afinco. As mãos se uniam nas tranças de duas. Elas não imaginavam o que viria a seguir. Diferente daquele momento, haveria algo contra quem lutar. Ali estava bem, tranquilo, mas e amanhã? Pensava Maria observando atenta a coreografia, seriam capazes de se concentrar? Ela não sabia e no fundo da alma esperava que o resultado fosse o desejado.
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MAGIA
A sacola de saco estava sendo levada por uma, enquanto a outra trazia consigo as relíquias. Um pequeno caminho era percorrido por elas. Outrora aquela passagem fora mais difícil, hoje o tempo já havia feito um belo trabalho; mudança. Seguiam em silêncio. O som dos pequenos gravetos era ouvido após as impiedosas pisadas. A tensão era a companhia, assim como o medo. Medo de que tudo desse errado e medo de que o maior desejo de uma não viesse a ser realizado.
Pararam em frente a uma entrada estreita na mata. O caminho de areia era camuflado pelas ervas secas que se amontaram à beira. Duas velhas árvores se postavam imponentes, como colunas de uma grande passagem. O tempo havia parado naquele lugar. Amélia e Maria lembravam, há mais de anos, como fora a primeira vez. Tudo permanecera igual; o mesmo caminho estreito, a areia branca salpicada de folhas secas, as duas árvores guardiãs na entrada com suas características intactas. As mesmas lascas, o mesmo cheiro de musgo, as mesmas folhas penduradas, a forte coloração desgastada, o extensos gravetos espessos. As duas, como se fosse a primeira vez, estavam fascinadas.
— Ainda lembro da reação de Mirna — risos. — Ela ficou um tempão olhando esse lugar.
— Nem me fale. Eu achei que a gente ia se perder. — Amélia sorriu.
— Nada mudou — disse Maria, deslizando as mãos enrugadas pela casca da árvore.
— “A magia desse lugar deixa tudo como está” Você lembra que nossas mães nos disseram isso?
— Lembro. Até chegar o nosso primeiro momento, ainda era difícil acreditar naquilo tudo. — Maria deixou escapar um suspiro longo. — Entendo as meninas perfeitamente.
— Elas têm medo e isso é normal. Acreditar no que a gente não conhece é assustador. — Amélia enfatizou uma verdade. A verdade que elas bem conheciam. — O alinhamento será daqui a algumas horas, Maria. — Amélia falava, agora uma preocupação surgia. — O que acontecerá se elas não conseguirem?
— Você sabe, Amélia. O que nos resta é fazer o possível para ajudá-las.
— Maria, você deixou de fora uma importante verdade. — Amélia ressaltou.
— Elas podem...
— Não. — interrompeu Amélia. — Vocês sabe que se elas não estiverem bem uma com as outras, o encanto não terá efeito. Elas precisam estarem unidas.
— O que aconteceu entre elas já foi resolvido. A traição foi perdoada. Betina perdoou.
— Como pode ter tanta certeza disso?
— A gente precisa se concentrar no que viemos fazer — disse Maria ríspida.
— Me responda. — Amélia imperou. A necessidade de um esclarecimento era devido naquele momento.
Houve um longo suspiro. Estava sem saída.
— Eu não sei. Estou querendo acreditar — disse por fim.
As expressões nos rosto se tornaram tristes. O que caberiam a elas fazer? Nada. E ambas sabiam disso. A responsabilidade total já não estavam em suas mãos.
— Me desculpe. — Amélia deixou transparecer o cansaço na voz. — É que estou com medo.
— Eu também, mas temos que confiar nas nossas meninas. Elas são nossa única esperança.
— Então vamos até o fim. — Amélia disse confiante. — E que a sorte esteja do nosso lado.
Juntas adentraram na passagem. Com o movimento, as duas árvores balançaram. Folhas verdes despencaram dos galhos caindo sobre as cabeças das duas, que caminhavam em direção a um tronco. Uma chuva de folhas verdes que, ao tocar o chão, se tornavam secas. O ambiente era lindo. O sol despontava para todos os lados, uma brisa corria por entre as plantas, cantos de pássaros era entoados. Amélia e Maria já estiveram naquele lugar, diferente de antes não eram mera moças assustadas.
— Olha, ainda está ali. — Apontou Maria para um tronco seco de árvore.
O tronco grande e mágico, como era conhecido pelas lavadeiras. Se chegaram mais próximo. As riscas na casca grossa era evidente. O cheiro da madeira viva exalava de dentro de uma pequena fenda no meio do tronco, ao pé dele uma pequena corrente de água banhava suas raízes à mostra. A água cristalina escorria por toda a mata ao redor, como um sistema nervoso, regando outras espécies de árvores.
— Maria, os cacos. — Amélia alertou, se prostrando à beira do pequeno riacho.
Maria recolheu da sacola com cuidado os cacos do antigo vaso. Uma nova magia estava para acontecer ali. Os tecidos que Amélia trouxera fora enrolados entre os cacos. Juntas, elas jogaram ao pé do tronco os cacos e os tecidos mágicos. De repente, a luz do sol dera lugar a uma claridade opaca, quase um brilho lunar. A floresta se calou, a pequena brisa, por uma questão de tempo, cessou. Sentadas sobre a relva, Maria e Amélia viram um clarão se originar dentro do rio. Elas viram os cacos em meio a uma luz azul serem tragados pela areia barrenta do riacho. Mais magia surgia. Cacos e tecidos se fundiram, além dos que trouxeram, Amélia e Maria puderam ver outras cores, outros tecidos se juntarem a uma nova criação.
— Nunca vi essas cores antes. — Observou Amélia com o olhar fitado na água.
— Acho que são os tecidos das nossas ancestrais. Todas em uma única formação, um novo vaso. Mais forte e poderoso.
O brilho na água reluzia nos olhos da duas que estavam encantadas.
— Consegue sentir, Amélia? — Maria sussurrou.
— É muito forte.
Os tecidos, a mistura de cores e os cacos velhos foram tragados e após alguns segundos um buraco se abria. De dentro surgia uma nova peça, um novo vaso de barro. Este era diferente, duas alças nos lados com desenhos riscados ao redor. Uma arte perfeita produzida pela magia do lugar. Retalhos fundidos em nó ornamentavam o novo objeto que fora tomado do rio pelas mãos frágeis de Maria.
— É perfeito. — disse Amélia deslizando os dedos pela estrutura do objeto.
— Agora a mistura. — disse a outra, colocando o vaso à beira da fenda do tronco.
Um líquido escuro e grosso surgia da fenda. A substância exalava um forte cheiro de barro misturado com argila. O vaso foi enchido. Após isso um vento circulou na mata, a luz lunar desapareceu dando lugar ao brilho intenso do Sol. Amélia e Maria sentiram o desconforto nas pálpebras depois da magia cessar. De novo os pássaros cantaram. Estava acabado, o vaso estava pronto. Com cuidado colocaram o objeto na sacola e deixaram a floresta. Atravessaram as duas árvores guardiãs e sentiram um leve palpitar de preocupação. Chegara a hora.
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UMA FENDA
Não existe mentiras que nunca possam ser reveladas.
Terezinha sempre soubera dessa verdade. Sempre acreditou que viver uma mentira seria como caminhar em direção a um abismo escuro e profundo. Onde, após estar dentro, não teria como sair e, se saísse, a consequência estaria à espera.
O coração de Terezinha batia acelerado. A mente perturbada a bombardeava com inúmeras dúvidas, pensamentos, possíveis atitudes e até mesmo um intenso final. Suas mãos tremiam, seu corpo reagia àquela visão de forma assustadora. Era algo que ela nunca imaginou viver. Sempre ouvira falar da capacidade das pessoas em relação a uma dolorosa verdade, das decisões tomadas no calor do momento. As notícias eram reais e infelizmente a realidade de outras pessoas bateu à porta da sua casa.
O bairro estava saturado pelo pavor. Os vizinhos, curiosos, postavam à frente de suas residências esperando o desfecho da história. Na casa de número 325, a morte imperava como um pássaro negro, abrigando o dois miseráveis cadáveres.
Ouvia-se gritos do lado de fora e por dentro havia sangue.
No quarto do segundo andar, a cabeceira de madeira clara agora ressaltava o tom vermelho do sangue das vítimas sob os lençóis. Terezinha segurava a arma, trêmula, com as duas mãos, ainda hipnotizada, processando o que acabara de fazer.
A visão antes daquilo fora o ápice. Estava preparada para aquele encontro, mas não tinha certeza se teria coragem até àquele momento. Horas antes, precisou tomar uma bebida forte para aguçar sua intenção. Era o que aliviava. O álcool era a sua escapatória da possível realidade. E se o que me disseram for mentira... sentada à mesa do bar, ela ponderava sobre o que fora advertida. E se for verdade? Os dois lados pesavam na sua cabeça. Terezinha sempre tentou viver um casamento feliz. Era bonita, cabelos pretos lustrosos, lisos, em um perfeito corte channel. Tinha dotes para ser apreciada por qualquer homem. Mas até aquele fim de tarde nada do que era valera a pena.
Naquele dia ela não foi trabalhar. Depois de uma hora, aguardando pacientemente em um bar, Terezinha voltou para casa. De longe avistou a pequena moto, escorada por detrás da árvore em frente à sua casa. O coração se apertou ao ver aquilo. E se for verdade... e se for mentira...? Novamente as indagações a possuíram. Arrasada, ela deu a volta, caminhou algumas ruas e entrou em um pequeno e estreito beco mal cheiroso e de pouca claridade. Ali morava quem poderia lhe ajudar.
Com a mente fervilhando, ela voltou para casa. Na bolsa o peso da arma parecia chumbo, seus braços se esforçavam para suspender. O instrumento da morte pesava. Cautelosa, Terezinha abriu a porta da residência: uma bela casa de dois andar. Subiu os degraus, como se pisasse em cascas de ovos. Não poderia alarmar. Parou à porta do quarto, do seu quarto. Por um segundo tentou ouvir os sussurros e notou o tom feminino. É a tal? se perguntou retirando da bolsa a Walter-P38. Decidida girou a maçaneta e, aterrorizada pela sua verdade, entrou disparando em direção à cama.
A notícia se espalhou como fogo em mato seco. Da cidade para o Vilarejo, do Vilarejo para a casa de D. Menina que ouvia o relato alarmada.
— Mas ela tinha certeza disso? — perguntou ela, levando a mão à boca.
— Ela não soube dizer... — Amélia suspirou. — Mas também, né, ela viu a cena ao vivo e a cores.
A mãe de Terezinha fora uma das fiéis clientes do antigo grupo de lavadeiras, e a filha ainda assim mantinha um apreço por elas.
— Mãe, ouvi dizer que ela pegou o marido com outra. — Lúcia Valéria disse sem acreditar.
— Mas era um casal tão feliz...
— Rita, por favor! — interrompeu Amélia, olhando feio para a filha.
— Ela foi presa. — Betina suspirou. O peso do acontecido era quase palpável. — por assassinato.
As cinco emitiram um som único de pesar.
— Sei que não é a melhor hora, mas também fiquei sabendo de uma coisa. — Amélia se sentou. — O filho da Bernarda está desaparecido.
— O quê? — Maria deixou escapar o espanto.
— Quem é Bernarda? — Betina indagou.
— Uma mulher que sofreu muito pelos filhos. Hoje em dia ela mora com o único que prestava, aliás morava. — Maria respondeu pensativa.
— Ele não prestava. — Amélia tentou falar da melhor forma possível. — Bernarda descobriu que ele roubava e traficava armas na cidade. Até já matou.
— Meu Deus!
— Ela ficou sabendo de tudo depois que ele desapareceu? — Ora Lúcia fitava a mãe, ora Amélia.
— Foi o que me disseram — confirmou Amélia.
— Essas fontes são certas, mãe? — Rita roía as unhas nervosa.
— Ora! É claro, Rita.
— A cidade está embasbacada com o que Terezinha fez e agora o filho de uma mulher desaparecido que é assassino...
— Alguma coisa está errada. — Maria sussurrou. — Amélia...
Amélia fitou a amiga de décadas. No olhar, uma mensagem foi transmitida. O semblante das duas demostraram pavor.
— Só pode ser isso — disse Amélia por fim, com olhos esbugalhados.
Rita, Lúcia Valéria e Betina se entreolharam tentando absorver qualquer coisa que estava acontecendo ali.
— O que foi, gente? — Lúcia rompeu o clima que se instaurou.
Maria pensou e depois de segundos falou:
— Uma fenda se abriu. A VERDADE está tentando passar.
— Mas isso não faz sentido. — Betina se pronunciou: — O portal será aberto daqui há... — Ela olhou para o relógio pendurado na parede e continuou: — 3 horas.
— Isso nem sempre acontece. A questão é que o último encanto foi falhado, não foi completo. Então A VERDADE pode conseguir um meio, uma brecha. O que está acontecendo, aconteceu e irá acontecer, não é para ser agora. Acredite. Terezinha não era para saber da verdade que soube, hoje. Não era o tempo. A VERDADE está operando e você já conhecem as consequências.
— Jesus!
— Se nós não nos apressarmos, as coisas vão piorar. — Amélia completou. — Faltam apenas 3 horas para a abertura total do portal.
— Então temos quer ir agora. — Lúcia fitou as outras com expressão de medo.
— E se a gente não conseguir? — Rita emanava falta de fé.
— Não é hora para isso, Rita. A gente consegue. — Betina estava mudada. Uma mudança que varreu o ódio e que tirou algumas coisas do lugar. Em outro tempo estaria surtando com toda aquela história, mas o que vira naquela dia na parada foi mágico. A esperança de sua mãe estar viva e que pode voltar era maior que qualquer medo e descrença.
— É, Rita. — Lúcia abraçou a amiga e olhando nos olhos confirmou: — A gente consegue.
— Então vamos, meninas. — disse Maria se preparando. — Peguem seus tecidos e vamos logo para o rio. Temos que chegar a tempo antes que a lua comece a subir.
As três moças rapidamente se espalharam. Rita e Betina desceram o alto em direção às suas casas. O que lhes foram entregues foi bem guardado. Em uma caixa bem lacrada, Rita guardou o tecido. Olhou-se no espelho, bateu no rosto e disse para si mesma:
— Você consegue, garota.
Betina chegou em casa e viu que os filhos ainda estavam brincando na rua. Não quis atrapalhar. No momento deixá-los ocupado era a melhor coisa a se fazer. Seguiu para o guarda-roupa e tirou da mala, a mesma que usaria para ir embora, o papel de seda protegendo o fino tecido mágico. Seus olhos brilharam com a visão. Um sorriso surgiu, seu coração bateu mais forte. Se em algum momento da sua vida fora fraca e medrosa, aquele sentimento já não existia mais. Ela estava pronta.
Maria e Amélia ficaram na sala, enquanto Lúcia Valéria foi buscar seu tecido. O silêncio entre as duas imperou. Elas sabiam o porquê, mas Maria estava o tempo todo evitando aquele momento. Sob o olhar da amiga, ela perguntou:
— Algum problema, minha velha? — ela sabia que exista, mas quis perguntar.
— Só estou me perguntando, minha velha, se quando chegar a hora nós estaremos preparadas. — Amélia falou firme.
— Isso não cabe a você. Não precisa se preocupar.
— Não seja tola. Sabe que é inevitável.
— Se for pra ser — fitou Maria, os olhos da amiga. — Que seja legítimo.
— Não aguentaria....
— Ainda com essa mania de sofrer antes do tempo, mulher. — Maria sorriu.
— Quando chegar a hora? — Amélia perguntou desarmada, mas desejou não obter resposta. Contudo conhecia bem o temperamento da amiga e sabia que aquela pergunta retórica teria sim uma resposta.
— Quando chegar a hora. — confirmou Maria. No olhar, uma certeza infalível.
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É NOITE
As informações era das mais assustadoras possíveis. Assassinato por traição, acertos de contas, separação, abandono. Tudo começou a surgir, mesmo de forma lenta, e estavam estampadas nos plantões da TV. Uma onda de pânico varreu os corações das cincos. A cidade já sentia em suas ruas, casas e nos habitantes despreparados algo poderoso a se aproximar. Tudo estava acontecendo muito rápido. Maria e Amélia sabiam disso e estava assustadas. Algo como nunca estava instalado no vilarejo, se espalhando pela cidade ao redor. Havia uma explicação para aquilo. A VERDADE estava escapando pela fenda que havia sido aberta. O encanto incompleto causara isso e a poucos minutos do pior, as cincos mulheres; duas experientes e três incumbidas de algo que só então ouvira falar, estavam correndo, mais uma vez, contra o tempo.
— Rita, você trouxe as suas coisas? — Amélia encarava a filha com o desespero à ponta.
— Estão aqui. — Rita exibiu os tecidos cuidadosamente.
— Certo. A loucura está no ar. Vamos nos apressar.
As cinco caminhavam em direção ao destino perigoso. Pelas ruas ela podiam ouvir os gritos, as afrontas, os choros e os piores segredos sendo revelados. O vilarejo parecia estar debaixo de uma cachoeira de consequências. As águas invadiam as casas inundando sem receios, trazendo à tona o sofrimento antecipado. O Sol se fora, os últimos raios coloriam o céu de um laranja neon, dando lugar ao luminar da noite.
— Olhem! A lua!
Seguindo os passos acelerados das outras, Lúcia Valéria fitava a esfera alaranjada subir no céu do crepúsculo.
— Ela está enorme — observou Betina.
— Ela não vai ficar assim por muito tempo. Logo ela estará no ponto mais alto e a cor e tamanho mudará. — informou Maria.
— Já estamos saindo do Vilarejo. Logo estaremos em espaço aberto. — Amélia seguia firme com o novo vaso nas mãos.
A lua inundara o céu com o seu forte brilho. As mulheres agora caminhavam sobre a relva baixa, passando pelo conhecido cercado que dividia do limite do Vilarejo ao caminho do rio. O vento rugia sobre os braços expostos aguçando os cabelos soltos. As saias chacoalhavam ao sopro, as testas franzidas emolduravam os rostos apreensivos. As dúvidas, o receio, o medo era companhia, de igual modo uma pitada de esperança.
Chegaram ao morro, depois dele o destino as aguardavam. A lua se movia de forma assustadora pelo céu. O breu ao redor camuflado na mata já emitia seu canto, fazendo-se ouvir seus moradores em uma sinfonia macabra.
— Vamos. — Maria tomou a frente, fazendo o convite de coragem. As pernas cansadas há tempos viveram aquele momento, diferente de antes, o morro estava menor e aquilo fora um surpresa.
Elas subiram. Rita, Lúcia, Betina, Maria e Amélia juntas forçavam as pernas, ficando os pés na areia fria, enquanto subiam com pressa. Chegando no pico todas pararam. A visão as assustaram: o rio corria rápido, na mata as altas árvores tremulavam como roupas no varal fazendo um barulho intenso de palhas se chocando contra as outras. Parecia um protesto da natureza. Uma magia estranha descera naquele lugar. Uma sensação ruim se apoderou das mulheres que, assustadas, olhavam uma para a outra buscando entender o que acontecia.
— O que está acontecendo? — Lúcia indagou assombrada.
— Mãe? — Rita segurou o braço de Amélia.
— E-Eu não sei. — disse Amélia trêmula.
— É a fenda. — revelou Maria, fitando o estranho evento — Está tudo uma bagunça. O tempo, A VERDADE, as consequência. A magia dos lenços e do vaso então agindo, tentando reverter a situação, mas se a gente não se apressar algo pior pode acontecer.
— Pior do que isso?
— Sim, Betina. Bem pior.
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PROMESSA
A cada segundo a hora estava cada vez mais próxima. A cidade estava entrando em um caos e cabiam àquelas mulheres pôr um fim. O protesto da magia continuava se espalhando por todos os lados ao redor do rio. As pedras que eram usadas pelas lavadeiras estavam sendo engolidas pelas águas que subiram de nível, fazendo o pequeno rio transbordar. O Vento rugia. Maria seguiu na frente, uma nuvem de areia desciam sobre elas a cada rugido que o vendo dava. Chegaram à margem do rio, amedrontadas pelo o viam. Corajosamente, Maria falou:
— A lua já está quase no seu auge. Essa é a nossa única chance de consertar as coisas. — disse, fitando as três aprendizes à frente. — Amélia, me ajude com os preparativos.
Rapidamente, Amélia se postou na areia branca onde as roupas quaravam, posicionando o vaso avaliando estado do objeto.
— Aqui vocês terão que fazer conforme ensinado, certo? — O olhar intenso e severo de D. Menina varreu os rostos das lavadeiras apreensivas.
— A gente consegue. — Lúcia Valeria se atreveu a dizer em nome de todas.
— Peguem seus tecidos. — Amélia alertou. — Está quase na hora.
As três assim fizeram.
O brilho dos retalhos se misturaram a cada movimento singelo que as meninas faziam desenrolando, desembrulhando, os tecidos. Um espetáculo de cores neons era apreciado pela natureza e por duas lavadeiras que há tempos estiveram ali, naquele mesmo lugar, o mesmo momento.
— D. Menina. — A voz de Betina se fez ouvir. — E minha mãe?
Por um segundo o rosto de Maria foi frisado pelos olhos curiosos. Amélia descansou o sorriso fino, deixando uma preocupação surgir. As três moças aguardavam a resposta tão esperada da amiga esperançosa.
— Nós a traremos de volta. — confirmou Maria decidida.
— Mas como vai ser? — Rita indagou.
— Na hora tudo dará certo.
— Promete? — Betina encurralou.
O coração acelerou. D. Menina devia isso a ela, sabia do que precisaria fazer pra o fim desejado. Com pesar, fitou a filha, Lúcia Valéria, e respondeu:
— Prometo.
A última fala, a última promessa foi ouvida pelo lugar encantado. De repente um raio forte de luz desceu no centro do rio fazendo as águas agitadas, por alguns minutos, se acalmar.
— A lua está no seu auge. Rápido!
Depressa Rita, Lúcia e Betina sentido a tensão sobre os ombros desceram para as águas tranquilas. Elas conheciam aquelas águas, aquela relva, areias. No entanto o diferente estava ali e o desconhecido naquele momento era perigoso. O círculo foi formado. Lúcia ergueu o tecido roxo. Ao toque do vento ele dançava de forma elegante se misturando ao tom amarelo de Betina que destacava o azul de Rita. Aurora e Amélia entregaram o vaso. Betina pegou o objeto e, com cuidado colocou no meio do rio.
— O que a gente faz agora? — indagou Rita, segurando sobre o pescoço o pano azul.
— A lua vai descer pro rio...
— O quê? — Rita interrompeu.
— Meu Deus, Rita! Agora não é hora para detalhes. — Maria resmungou — Quando o reflexo da lua estiver apenas no rio o portal vai abrir e A VERDADE vai tentar escapar.
A voz de D. Menina se perdia em meio as rajadas de ventos aleatórias.
— Quando A VERDADE começar a forçar passagem, ela vai tentar de todas as formas quebrar o encanto. É preciso que vocês sejam rápidas e estejam bem firmes! — alertou Amélia, aos berros.
— Vocês vão ficar por perto? — Betina fitou as duas à margem.
— Não podemos ficar neste lugar, mas estaremos bem próximas.
— E se? — Rita começou, mas foi logo calou.
— Confiamos em vocês. — Amélia respondeu, olhando o rosto assustado da filha.
Amélia e Maria se ausentaram por uma distância segura e aguardaram. Não demorou muito e então a lua desceu no rio.
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O FIM?
Acima das luzes da cidade, por sobre as nuvens escuras varridas pelo o vento, mais acima da atmosfera, abrigado pelo extenso espaço, o fenômeno se iniciava. Uma coreografia planetária estava acontecendo.
Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, os cincos planetas se alinhavam em uma dança mágica. O brilho de cada um se espalhava se derramando pelo vasto universo. Uma mistura homogênea, um arco-íris celeste. A Terra estava em seu ponto final de alinhamento. A convergência foi instantânea. O satélite natural emitiu seu brilho focando em um lugar específico e então aconteceu.
O pequeno rio voltou a se agitar. Vendo o espetáculo, as três moças sentiram o arrepio do medo percorrer seus corpos. Rita atônita olhava para Betina, que por mais que demostrasse a coragem, também sentia um pontada de desespero aflorar. Lúcia Valéria tremia. Nas mãos os lenços tremulavam ao toque letal do ventos que rugia no meios delas, na face do rio, no espaço aberto.
De repente, uma luz azul piscou. O facho parecia pólvora em contato com as chamas. A atenção das três foram retidas para a coisa. Dentro da mata, raios aleatórios serpeavam o lugar, como em uma luta de espadas soltando faíscas mortais.
— O portal! — Betina gritou, apontando para a luz.
Elas mal se moviam. Travaram diante da magia que acontecia no recinto. Ouvir falar é uma coisa, agora ver a realidade, o fato, a certeza à frente é muito diferente. Lúcia Valéria estava petrificada.
A bola de luz se intensificou, aumentou, se expandiu. A luz ofuscante por um segundo feriu os olhos das três que estavam aprovadoras. No meio da luz, uma pequena rachadura vertical se formou. A fenda a cada segundo se alargava com dificuldade, como se um intruso quisesse atravessar sua prisão apertada. No meio de tudo ouviu-se um grito:
— O que estão esperando?! — A voz cansada e arrastada desbravou a tormenta de ventos, alcançando as ouvintes hipnotizadas. Maria ao longe gritava a plenos pulmões se indagando o porquê delas estarem paradas. — Comecem. Agora!
A razão bateu à porta da consciência. Rita fitou o tecido azul, o brilho estonteante do tecido em suas mãos e ponderando sussurrou:
— E-Eu não consigo. — Lágrimas brotaram escorrendo pela face. Gotas salgadas tocavam as águas do rio, levadas para um destino desconhecido.
— Rita, não podemos desistir agora. — Betina alertou. — Chegamos até aqui. Estamos juntas. Eu sei que até esse momento tivemos problemas, você, eu e como não falar da Lu. — um sorriso doloroso estampou. — Mas sua mãe e D. Menina não podem fazer nada, somos nós.
— Eu não sou corajosa o suficiente. — A voz trêmula em meio as lágrimas saíram forçadas.
— Lembra do que aconteceu? — Lúcia Valéria interrompeu: — Depois de você e o Carlos? Você decidiu contar a verdade, mesmo sabendo que algo ruim pudesse acontecer. Sua coragem foi provada ali. Isso é o que importa. E eu lhe disse que nunca desistira de você.
— É. Somos lavadeiras, herdamos de nossas ancestrais esse ofício cansativo, digno e mágico. Somos fortes, capazes. Podemos fazer isso, mas só se for juntas. — Betina olhava para a amiga, transmitindo uma confiança única. — Tome, pegue. — Tina entregava-lhe o jarro.
— Você pode ficar com isso. — disse Rita hesitante.
— Não. A história contada fala de sua mãe levando o vaso. Quem sabe assim você não precise temer. — Um sorriso de coragem estampou o rosto de Betina.
— E-Está bem. — Rita ergueu o olhar, fitando a força à frente que tentava escapar e destemida pegou o vaso em mãos. Confiante falou: — Vamos acabar com isso.
As três em formação, com seus lenços em punho aguardavam o movimento de Rita. Em passo acelerado o vaso foi posto no meio do círculo, ao toque o rio recuou. Uma área seca se formou no meio delas, as águas se postaram de forma mágica ao derredor das três. O vaso estava no centro. A substância liquida se movia ao sopro do vento em sua superfície. O urro gutural da força explodiu nos ouvidos das três, onde tiveram a certeza de que não poderiam perder mais tempo.
— Os retalhos. Vamos! — Lúcia advertiu, empunhando sua peça roxa.
De igual modo, Betina com sua amarela e Rita com azul. As três ergueram os tecidos acima da cabeça e com uma agilidade partiram-no ao meio. Foi incrível. Uma linha vertical perfeita separou uma peça em duas. Agora cada uma delas tinha dois retalhos do mesmo tecido. Ao corte, fibras mágicas salpicaram a areia do rio, caindo dentro do vaso. Fibras coloridas e brilhantes. A VERDADE reagiu. A mata escura protestou com um corrente de vento, trazendo folhas, gravetos e galhos contra as mulheres. Diante disso, Lúcia alertou:
— Lembrem-se. A VERDADE vai fazer de tudo para interromper o encanto. Quando começarmos a dançar, temos que nos manter fiormes e rígidas, certo?
A voz de Lúcia Valéria era de uma líder. As duas confirmaram com a cabeça.
— Prontas?
— Prontas. — duas responderam.
A dança iniciou. Uma volta perfeita começou a ser feita. Rita tremulava seus dois tecidos, enquanto Lúcia Valéria formava o círculo no ar com dois. Betina deslizava o amarelo pelo chão, tocando a areia úmida sob os pés. Ao redor, ao longe, a floresta bramia. Um facho de luz era disparado contra as três que dançavam em sincronia perfeita.
Deram três voltas e na última Betina alertou:
— O Vaso!
Essa era a pior parte. Lembrou-se Lúcia enquanto mergulhava seus retalhos no vaso. A VERDADE sabia que esse momento era o ápice para o fim. Sabia que enquanto os tecidos, unidos, se entrelaçam o portal seria fechado. Mesmo assim, elas continuaram.
— Agora, o três-nós!
Coreografadas, juntas uniram as pontas dos tecidos molhados pelo líquido do vaso em um nó bem firme. Cada uma a partir disso ficaram com duas tiras unidas ao Nó-Triplo. Começaram a tranças de duas. O que aconteceu há 30 anos estava se repetindo de novo e dessa vez não poderia sair errado. Elas conheceram o caos que A VERDADE pode causar antes do seu próprio tempo e elas estavam decididas a cuidarem disso.
A cada enrolada, dobra, aperto, o líquido se fundia ao rio, que era absorvido pela areia. O portal a cada segundo diminuía, se apagava. Estava dando certo. Estavam conseguindo. Aquilo estava sendo fácil demais. Mas ao longe, enquanto as três exerciam a missão, Maria e Amélia sabiam que algo estava errado.
— Isso está estranho, Maria. — observou Amélia, espantada. — A VERDADE deixar se prender assim, não é bem o que eu esperava.
— ELA vai fazer alguma coisa. Temos que nos aproximar. — disse Maria dando seus passos.
— Não! É perigoso. — Amélia segurou o braço da amiga, na intenção de mudar a decisão.
— Eu prometi, Amélia. Mirna está do outro lado e A VERDADE não vai deixar barato.
— Você está louca!
— Chega! — Maria se livrou das mãos da amiga. Em seu rosto a dor estampada era a pior de todas. — Você sabe o motivo para eu ter que tomar essa decisão. E se caso o final seja como eu penso, sabes que há um jeito.
— Eu...
— Você é meiga e além disso é inteligente. Vai saber orientar quando for preciso. — disse Maria fitando o rosto da amiga, banhado pela luz do portal.
— Está certo. Se é pra ser assim...
— Tem que ser assim — enfatizou Maria dando as costas, encerrando o assunto.
As duas caminharam entre os arbustos em direção à floresta. Passaram de largo pela moças que de forma rígida executavam o encanto. Entraram na mata, a luz se espalhara por todos os lados. As criaturas fugiram, o magia forte exalavam nos arredores expulsando os habitantes. As duas amigas, ficaram escondidas, atrás da árvores velha esperando o golpe final, e quando menos esperaram ele veio.
Um último traço, um último aperto e o poderoso nó. Era o final daquilo; do caos. Rita, Betina e Lúcia Valéria estavam imóveis, pés fincado nas areias para manter o equilíbrio enquanto concluíam o encanto. Estavam confiantes, felizes, enfim tudo estava para se acabar. De repente um raio de luz cortante foi desferido. A força foi letal. Em um minuto Betina segurava os retalhos amarelo e no outro estava deslizando de suas mãos. O tecido pendeu. Como em câmera lenta, a trança se desfazia enquanto caía. Os olhos apavorados das três demostravam o terror. Betina sentiu a esperança se perder nas águas do rio quando viu o tecido, pendurado pelo Nó-Triplo se desenrolar.
— Betina! — Rita segurava o azul, pronto pra fechar o nó quando o grito ecoou.
— Depressa, pegue-o! — Lúcia ordenou em uma autoridade chefe, aguardando a ação da amiga.
A luz aumentou. A fenda se abriu com uma força bruta, como se o animal preso estivesse perdido a paciência. As três olharam para fenômeno.
— Tina! — Lúcia gritou. — Depressa!
Apavorada, Betina pegou o lenço que estava desfeito pela metade e com o desespero à flor da pele começou a refazer a trança. Duas aguardavam a conclusão, enquanto A VERDADE reagia. A luz da lua começou a sumir. Até àquela altura as três ainda lutavam para deter a força. No meio da tormenta uma corpo se apresentou de frente para a luz.
Lúcia fitou aquela silhueta conhecida, emoldurada pela claridade. Era a sua mãe. Lúcia não poderia sair dali, não poderia largar a trança, não poderia fazer nada.
— Mããee, saia daí! — gritou em desespero, enquanto via a mulher se postar em frente ao portal.
Betina concluía sua trança quando gritou:
— Pronta para o último nó!
As Três se entreolharam, mas viram no rosto de Lúcia a dor.
— Mããe! — gritou a filha mais uma vez, não entendendo nada do que estava acontecendo.
Elas viram então algo surgindo de dentro do portal. Um assombra escura e embaçada tomava forma a cada passo que dava. Maria desenrolou o tecido da cintura, um pedaço do retalho que guardara antes da criação do novo vaso na mata, e lançou para dentro da fenda. Era a ponte. Do outro lado algo o segurou. Maria puxou com força o peso preso ao tecido. Lúcia estava decidida a pôr um fim nisso.
— Vamos fechar agora! — ordenou, posicionando as pontas do tecidos nos dedos.
Por detrás uma voz se fez ouvir:
— Não! Esperem. — Amélia pediu.
— Como assim, não? O que ela está fazendo? — A amargura emergiu na voz.
— Está trazendo Mirna de volta. — revelou Amélia.
Lúcia fitou o rosto da amiga Betina. Uma alegria que nunca tinha visto nela se revelou. Ela enfim reencontraria a mãe.
— Mas... — indagou ela a si mesma, confusa: — E quanto a minha?
Lúcia fitou Amélia, no rosto uma tristeza conformada.
— Ela pediu para você fazer isso, tomar essa decisão. Depois que Mirna voltar vocês devem dar o nó final. Senão será tarde demais.
— Não! Deve haver outro jeito. — a voz, afogada nas lágrimas, saiu espremida.
— Não há outro jeito. A lua está sumindo, os planetas estão de desalinhando. Se você fechar o nó agora Mirna não voltará.
— Mas eu vou perder! — gritou Lúcia.
Não houve resposta.
Lúcia Valéria estava arrasada. Mirna voltaria, mas sua mãe iria. E agora? Pensativa fitou o rosto das duas amigas rígidas com os tecidos em mãos. Teria que escolher.
Uma luz branca surgiu, revelando uma mulher. Agarrada ao lenço, Mirna voltava para o outro mundo, para casa. Mas não era o fim. Lúcia observou de longe, a mãe sendo tragada junto com o tecido que há tempos lhe pertencia para dentro do portal. Ao receber o corpo, a força brilhou intensamente, como em uma permuta perfeita. Com lágrimas nos olhos, Lúcia fitou a trança.
— Lúcia! — gritaram as mulheres.
Lucia não poderia retroceder. Com uma dor deu o último nó. O espetáculo de luz, emitido pelos lenços, foi dirigido ao portal, que recuou. Então uma onda de luz se propagou, se espalhando pelo breu. A lua sumiu do rio, voltando ao estado normal no céu e após isso o portal se fechou.
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UM NOVO AMANHÃ
A luz do dia entrava pela fresta da janela, varrendo o piso da cozinha, se fragmentando ao cheiro perfeito do café fresquinho. A água transparente e borbulhante caía dentro do pano cheio de borra, saindo pelo filtro em cor preta. O café estava pronto. O líquido deslizava para dentro da xícara de porcelana sobre a mesa, enquanto Lúcia Valéria se servia de bolacha salgada.
À pequena mesa, fitando o nada, as recordações inundaram sua mente. Da noite estranha em que a história fora contada, das emoções alteradas, do medo no olhares e das borboletas em pânico no estômago. Um suspiro longo emitido, revelava a dor impregnada em seu ser. Com passos curtos e vagarosos, Lúcia caminhou em direção à janela que obstruía a luz matinal. O vento sereno da manhã banhou sua pele, agitou seus negros cabelos trazendo o calor que lhe aqueceu o corpo.
A casa estava vazia. Um vazio triste e ao mesmo tempo duvidoso. Lúcia ainda não compreendia o que fizera há uma semana. Depois daquela noite fatídica, seu mundo mudara. Havia felicidade de um lado e tristeza do outro. Rita e Betina até tentaram lhe oferecer um “abrigo” particular, mas Lúcia precisava daquele momento a só. Preferiu saber que Betina estava com a mãe, que voltara, do que compartilhar a tristeza que a dominava. Lúcia sabia que o relacionamento com a mãe era um tanto ríspido, Maria sempre fora severa, um pouco rígida, mas era sua essência, sua particularidade. Tinha motivos para ser assim e apesar de ter tentado livrar a filha de um destino irreversível, preferiu o sacrifício legitimo do que o prazer fingido.
Lúcia estava exausta. Exausta da verdade, das consequências, do mundo. Se pudesse escolher o final teria sido diferente, mas o orgulho da sua escolha desencadearia algo pior, disso ela tinha certeza. O que me resta agora? Fitando o horizonte alaranjado, com uma xícara fumegante, ela se indagou, não sabendo responder as próprias perguntas. Tomou um pequeno gole e ao som da batida na porta baixou a xícara no parapeito da janela. Quis ignorar, por ela já teria ido embora dali, mas o lugar, as lembranças, ainda a prendia ali. Sabendo que o insistente toque na madeira duraria longos minutos, ela enfim cedeu atendendo ao visitante.
Amélia estava à porta. No rosto uma expressão indecifrável. Lúcia ficou curiosa com a repentina visita. A última vez que a viu foi na noite triste. Trajando seu habitual vestido, Amélia trazia consigo um depósito escuro. Vendo aquilo, Lúcia lembrou-se do dia em que Rita também lhe trouxera algo. Tal mãe, tal filha.
— Amélia? — A voz baixo saiu em deslize.
— Lúcia, minha menina. Posso entrar? — O olhar da senhora estava focado no rosto da que, ponderando por alguns segundo, respondeu:
— É claro, entre.
Ambas seguiram para a sala. Agora a luz do dia se espalhara por todo o recinto clareando os pontos mais escuros do cômodo. Amélia sentou-se na poltrona conhecida, enquanto Lúcia lhe servia um café.
— Como você tem passado, menina? — A pergunta fora feita entre pausa para o gole. Sentada à sua frente, Lúcia hesitou. Não sabia o que responder, porque sinceramente, nem ela sabia dizer como se sentia.
— Vivendo. — foi o que conseguiu dizer.
— Vocês faz falta. Rita e Betina me pediu para dizer isso a você.
— Ainda dói — disse Lúcia, suspirando. — A realidade e dura. A dor é pior ainda.
Colocando a xícara na mesinha que separava ambas, Amélia frisou:
— Doer, dói sempre. Só não depois de morto. — Deixando uma onda de ar escapar, ela concluiu: — Porque a vida toda é um doer.
— E como se cura essa dor em vida? — os olhos revelavam a tristeza.
— O tempo, minha menina. Ele é o tipo de sujeito que adora mudar tudo. Você só precisa ser forte. Mais do que já foi e é.
— Força no momento é coisa que me falta. A que eu tinha me sucumbiram a esse estado — disse Lúcia fitando as mãos.
— Então é desistir? — Amélia agora deixou transparecer algo que Lúcia até então não notara. Seria “esperança”?
— Lutar pelo o quê, por quem?
— Olha Lúcia, sua mãe foi uma excelente lavadeira. Passamos por muitas coisas juntas. Seu jeito duro, às vezes, era o que nos mantinha unidas. O que aconteceu há uma semana, nós vivemos aquilo mais de uma vez desde a nossa escolha. Vocês, as dessa geração, são melhores, mais fortes. O tempo faz isso; mudas as coisas, as pessoas. As experiências, as histórias ajudam a nos fortalecer. O futuro é incerto, as dificuldades também. As mesmas dores de ontem, disso eu me refiro ao passado, não serão as mesmas do futuro. Você ainda será moldada pelas experiência e assim, você passará essa coragem para seus filhos e netos. Por isso que eu digo que desistir é um atraso, sendo que vocês já chegaram até aqui. Conheceram o que tem que equilibrar; o ofício de vocês. Mas não posso lhe obrigar. — frisou ela, encarando Lúcia. — Essa escolha é ímpar.
— E-eu não sei. Nada mais faz sentido.
— Tem certeza? — O olhar de Amélia varreu seu rosto. — E se houvesse outro motivo por quem lutar?
Um silêncio pesado se instaurou no recinto. O coração de Lúcia batia mais rápido que o normal. Estava sem fala, quando Amélia cuidadosamente retirou de dentro do depósito algo diferente do que Lúcia esperava. Não era tapioca, era um pedaço de papel enrolado. Amélia a entregou.
— O que é isso? — disse segurando a folha. A tinta azul se notava através do papel. Era recente.
— Um recado para você. Se estiver disposta podemos mudar o final. — foi o que disse, antes de deixar Lúcia a sós com suas dúvidas.
Por um longo tempo, Lúcia evitou aquele papel. Tudo poderia ter um desfecho diferente do que aconteceu. Mas a pergunta era: estaria ela preparada? Andando impaciente pela casa, fitando o papel sobre a mesa, Lúcia enfim tomara a decisão. Meticulosamente, pegou o papel e desdobrou. Ela não sabia de quem era nem porquê. Amélia não lhe dera nenhuma informação, no entanto vendo a caligrafia desordenada, teve a certeza de sua especulação. Era uma carta de sua mãe. Sentada na poltrona que pertencia a ela, Lúcia Valéria pôs-se a ler.
"Minha filha, antes de tudo preciso me desculpar pelo o tempo. O tempo me formara uma mulher de rígido punho quanto às minhas escolhas e com isso desencadeou a mãe que você tivera. Tudo não passava de um medo. Medo esse que, apesar de todos empecilhos, não foi capaz de ser maior que o destino. Tive que aprender a aceitar o destino da pior forma possível. Desde que fui escolhida como lavadeira e herdara o ofício, eu achei tudo muito mágico, mas depois descobri que a missão era mais difícil que eu imaginava. E além disso descobri que o perigo me rondava constantemente.
Ser lavadeira é uma benção e uma maldição. Depois que Mirna foi levada pelo portal, senti um medo irreparável dentro de mim. Depois de tempos, você nasceu. Tentei mudar o destino que cabeira a você, mas sou humana e não fui capaz. Você cresceu e pôs-se a fazer o que as nossas ancestrais fizeram. Sua coragem muito me impressionou. Você é uma filha decidida, corajosa, como sua mãe era antes de tudo. Mas agora estás em outro patamar. Uma lavadeira destinada a preservar o equilíbrio do universo juntamente com outras duas. Isso é mágico, lindo e perigoso.
Sei que o dia se aproxima, o dia em que serei posta à prova. Preciso lhe dizer que uma culpa me consome. E vou revelar isso a você. Naquela noite Mirna foi levada, porque uma verdade foi revelada a mim. Erroneamente fizemos o encanto, enquanto eu despertava um rancor por ela. Nunca deveria ter feito aquilo. Por isso, Mirna foi levada. Ela havia confessado sua mentira, a consequência foi desferida sobre nós, mas o meu erro foi não perdoa-la e com isso A VERDADE estava mais destemida ainda. Quando você descobriu o artefato que eu mesma escondi, soube na mesma hora que algo viria acontecer e que vocês, as novas lavadeira, teriam um dever pela frente. Seria nada fácil, um preço deveria ser pago, e eu soube na mesma hora em que vocês chegaram em casa com aquele vaso. Eu estava disposta a arcar com o meu erro. Eu prometi que Mirna voltaria, e estava disposta a honrar minha promessa. Amélia chorou por essa minha decisão. O motivo: só se poderia trazer Mirna, se outra pessoa fosse em seu lugar. Mas porquê? você talvez se pergunte enquanto lê essa parte. A resposta: é porque eu fui a errada. E A VERDADE, o intuito dela, é concertar o errado. É uma troca justa. Não disse nada a você por que saberia que relutaria e atrasaria mais ainda o que deveria ser feito com pressa. Por isso peço desculpas pelo o meu erro no início e minha decisão no final. Mas, se caso deseje mudar esse curso, há um jeito. Perigoso, mas há. Não cabe a mim lhe falar essa parte, Amélia saberá lhe orientar.
Com amor, sua mãe."
Lúcia estava estarrecida. Então ela entendeu o porquê do sacrifício, a decisão. Só que agora, depois de tudo, ela poderia reverter o final. Um final decidido pela VERDADE. Ela tinha certeza de duas coisas: primeiro, não poderia derrotar a verdade, e segundo poderia trazer a mãe de volta. Mas quais perigos enfrentaria? Ela não sabia. Mas a esperança a inundou. Uma injeção de ânimo e coragem corria por entre suas veias. Não era o fim, não estava acabado. Maria poderia voltar, sua mãe. Ela poderia escolher em viver ao lado da mãe e esperar que o universo se encarregasse de leva-la na forma normal, na morte humana. Mas, se caso deseje mudar esse curso, há um jeito. Perigoso, mas há. Ela leu de novo. Há um jeito.
As palavras martelaram com força e então foi o ápice.
Em disparada, Lúcia correu agarrada à esperança de um final diferente, um final que ela poderia escrever. Ela correu mais. Depressa. Seus pulmões queimavam com a energia, com a adrenalina, enquanto descia o morro, espalhando nuvens de areias finas, em busca de Amélia, a única que poderia ajudar; a única que tinha repostas para suas novas perguntas. Naquele momento, Lúcia Valéria teve uma certeza avassaladora lhe dominar, uma convicção da qual nunca antes tivera em toda a sua vida. Depois de tudo, aquilo ainda não tinha acabado. Não mesmo. Ela sabia que ali, enquanto corria confiante e corajosa, o despertar do dia anunciava a lavadeira mais uma chance, mais uma oportunidade; o início de um novo amanhã.
FIM
Por: Breno Brasilleiro