O AMULETO

Não havia um legista em Antonina, e nem haverá. Caso houvesse, atestaria o falecimento do Doutor Melo por intoxicação ao errar a dose de extrato de beladona. Josemar, o coveiro, faleceu por conta de um aneurisma cerebral. Nada de jogar a culpa da morte dos dois em Lizzy. A garota não era bruxa. Tinha um “pé na cozinha”, sim, mas bruxa? Era um pouco de exagero. Conhecia de ervas, como a mãe e a avó e as outras gerações de mulheres da família antes delas.

As ervas estavam curando sua mãe. Ela sabia disso, a avó sabia disso e a mãe também sabia — apesar de delirar dia e noite, enquanto expelia todo o veneno que um animal desconhecido injetou em seu corpo. O tratamento era longo e doloroso. Os vizinhos a ouviam berrando e chorando quando o efeito das ervas acabava. Lizzy passava o tempo todo macerando e extraindo o óleo de uma combinação delas. Isso produzia um odor forte, almiscarado, no início do processo; e inebriante após a diluição em água morna.

Antonina era uma cidadezinha cristã, aferrada aos princípios da Igreja. Salém era café pequeno, perto dos puristas dali. Começaram por condenar as práticas de Lizzy nas rodas de conversa após a missa. A coisa se espalhou pelo comércio e acabaram por convencer o Doutor Melo a intervir. Exigiam que a garota entregasse a mãe aos cuidados da Santa Casa de Misericórdia, comandada por ele. Lizzy, menor de idade e sem ter como se sustentar, foi enviada a chamada Casa Comum, um abrigo para desterrados e menores. A mãe faleceu pouco tempo depois. Era certo, ela sabia, sem a poção de ervas extirpadoras. O médico prometeu levá-la para as despedidas, mas Josemar apressou o enterro, para dar o descanso final ao corpo e livrar-se da pressão dos beatos.

A garota ficou furiosa e, diante de todos, amaldiçoou o médico e o funcionário público. Os óbitos ocorreram em sequência, pouco menos de trinta horas após os impropérios da garota. Sua casa se consumiu em cinzas, num incêndio criminoso, mas justificado pela fé dos mais exaltados. Com uma pequena trouxa de roupas, Lizzy foi expulsa da cidade. Correu então para a floresta, sozinha e excomungada. Só lhe restava atravessar a mata e buscar a avó, outra proscrita.

Solitária em sua jornada, só tinha medo de ser picada pelo mesmo animal estranho e venenoso que vitimara sua mãe. No mais, seu caminho era pontuado por explosões de raiva, impropérios e destruição da vegetação que aparecia à sua frente. Acabou se cansando e, quando o sol surgiu entre os troncos das árvores, decidiu-se a parar de caminhar e arranjar-se para dormir.

A perfeição não é sinônimo do bem absoluto, nem tampouco do mal absoluto. Bem e Mal absolutos, não existem. A perfeição se encontra no equilíbrio entre os dois. Assim cita a sabedoria popular. Quando há predominância de um deles, é de se esperar alguma manifestação do outro, para a preservação do equilíbrio.

Lizzy estava sem sono, apreciando a dança das labaredas, pensando ainda a respeito de seu desterro. Não queria mais chorar por conta da morte da mãe. Não queria mais saber de Antonina ou de seus habitantes cristãos e preconceituosos! Apesar de entender-se vítima de enorme injustiça, preferia vê-los consumidos em sua fé e suas convicções. Estava feliz por viver para ir ao encontro da avó.

— E pensando bem, aquele bando de beatos hipócritas de meia-pataca poderiam levar uma lição. Uma doença, um vendaval, uma tempestade destruidora, um flagelo, sei lá! — disse em voz alta.

As labaredas diminuíram de repente, para em seguida se erguerem firmes e azuis esverdeadas.

— Cuidado com os seus desejos mocinha!

A voz veio do meio das chamas à sua frente. Lizzy arrastou-se para trás, assustada.

— Quem está aí? — perguntou com um leve tremor na voz.

— Não tema! Eu sou, bem... sou o Espírito da Floresta. Vim lhe avisar sobre os cristãos de Antonina. Estão em seu encalço.

Lizzy desconfiou daquilo. Não tinha dúvidas que viriam atrás dela. Mas, um espírito da floresta? Prescrutou a escuridão atrás de ver algo ou alguém, sem sucesso. O medo a encorajava a manter a guarda.

— Vejo muito rancor em seu coração — observou o Espírito. Posso lhe ajudar na escolha, se me permitir.

Aquilo a surpreendeu. Aproximou-se da fogueira.

— Escolha?

— Diante das perspectivas, ou você foge, ou luta. Se fugir, irão caçá-la por toda a sua vida. Se lutar...

— Mas, devem ser muitos! Não poderia vencê-los, mesmo se fosse forte como um urso.

Um riso sombrio encheu o ar.

— Se decidir-se por lutar — disse o Espírito — posso lhe ajudar a vencê-los.

— Mas estou sozinha! Como isso seria possível?

— Magia, mocinha. Magia!

— Minha avó não aprovaria. Magia é algo muito perigoso.

— Bem, então apague essa fogueira e suma daqui. Vá para oeste, naquela direção.

As chamas se dobraram para indicar. Lizzy não se moveu. A curiosidade era maior.

— O que eu teria de fazer para vencê-los.

— Uma mão lava a outra, mocinha. Te dou um amuleto.

Por um instante, ela prejulgou o tal espírito, o taxando de brincalhão. Sua avó já lhe contara sobre espíritos brincalhões da floresta. Escondem as coisas dos viajantes, os fazem andar em círculos pela mata, coisas assim.

— E um amuleto poderá me ajudar? — duvidou ela.

— Com ele, os lobos saberão que você os lidera.

Lá no céu, o vento empurrou as nuvens e os raios de luar vazaram a copa das árvores. Lizzy viu a silhueta de três enormes animais à espreita. Ela prendeu a respiração e se paralisou, por instinto. O riso tornou a preencher o ar.

— Não tema, já disse! Estão aguardando sua escolha. Se escolher fugir, a deixarão em paz. Mas, se escolher lutar...

As chamas aumentaram de intensidade e um facho de luz pareceu brotar no tronco de uma árvore próxima. Fez uma ranhura e se transformou em um oco luminoso.

— Decida-se! — ordenou o Espírito da Floresta — Resta pouco tempo para manter-se a salvo em sua fuga.

Lizzy sentiu a adrenalina preencher suas veias e ferver seu sangue.

— Poderei ainda ver minha avó?

— Claro! Basta não usar o amuleto quando for ter com ela. Usando, os lobos estarão sob seu comando e sempre por perto. Caso contrário, seguirão sua vida e você, a sua. Escolha!

— O amuleto está na árvore?

— Sim. Se quer ser o Alfa da matilha, pegue-o. Ou vá-se embora para oeste, agora!

Lizzy levantou-se e foi até o oco na árvore. De lá, retirou uma capa com capuz, em um tecido brilhante e vermelho.

Vladimir Ferrari
Enviado por Vladimir Ferrari em 31/01/2023
Reeditado em 11/02/2023
Código do texto: T7708385
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