ERA UMA VEZ

Era uma vez. E digo isso, pois foi assim que conheci a vida. Eu a conheci através da história de alguém. Uma história contada por alguém, que naquele momento talvez estivesse tomado por uma angústia dilacerante, ou quem sabe já passada a angústia, estivesse levando para outras pessoas conhecerem, o caminho trilhado por ela, para se livrar desta sensação paralisante.

Enfim, esta é minha vida. Eu acredito que eu seja um daqueles livros que as pessoas encontram nas livrarias e bibliotecas, que as pessoas usam para resolver seus dramas internos. Isso me veio à cabeça certo dia, quando pela primeira vez me deparei com mãos humanas. É claro que, a primeira vez mesmo, foi quando fui colocado agora prontinho, na estante de uma banca, acredito que seja em alguma feira, pois o movimento era muito grande e eu podia ver dali onde eu estava, muitas pessoas passando e trocando de estantes. Eu via também uma espécie de mesa, onde também havia vários iguais a mim, de tudo o que era tipo. Uns mais finos, outros mais grossos. Uns mais coloridos e com imagens e outros pura leitura. Eram muitos desses lugares, um do ladinho do outro. Ah, também me recordo de enxergar um pouco mais distante, numa das pontas, um lugar onde as pessoas se sentavam para comer um lanche e na outra ponta, um local específico, onde a pessoa que escreveu livros sentada em uma cadeira em evidência, com uma caneta na mão, escrevendo em um exemplar, igualzinho ao que estava numa pilha ao seu lado. Na frente desta pessoa, uma fila de outras, que ao pegar o seu, expressava tamanha emoção. Depois eu aprendi sobre tudo isso e, inclusive soube, que este era o grande momento do autor, onde ele vê sua obra reconhecida e leva para seu público uma linda dedicatória.

Mas enfim, eu saí dali um dia, pelas mãos de uma moça. Recordo com detalhes como ela era. Lindos olhos negros, onde não se podia ver a “menina dos olhos”, de tão escuros que eram. Seus cabelos lisos e também escuros, por cima dos ombros, tinham um brilho que eu nunca havia visto igual. Sempre que ela me pegava, estava com os cabelos presos de algum jeito e, quando não estava, dava jeito de me largar por breves instantes, me pegando de volta com eles já presos.

Ela realmente era alguém que gostava muito de livros, pois eu ficava num lugar cheio deles. Nesse lugar, havia luzinhas brilhando e era muito divertido de se ver. Era mais divertido ainda, porque eu ficava em frente a uma porta, que geralmente estava aberta. Eu via a rua. O movimento de pessoas passando, crianças andando de bicicleta, atletas correndo e carros. Uma floresta incrível logo mais adiante, onde se podia escutar o barulho dos pássaros e de outros bichos. Era um lugar lindo, mas não posso dizer que foi o melhor deles, pois cada lugar onde eu estive foi bonito a sua medida.

Depois de estar intensamente comigo por mais de quinze dias, eu voltei para a estante, com alguns amigos que acabei fazendo e dali fiquei um bom tempo a apreciar a linda paisagem que eu presenciava a partir daquela porta.

Em alguns momentos eu passava para outra estante, onde eu podia ver a moça trabalhar. Ela trabalhava em uma mesa ao lado de seu esposo e ambos se divertiam muito com aquela composição. Eles tomavam muito, mas realmente muito café, nos períodos em que ali estavam e riam muito, mas tinham períodos de concentração grande também. Este foi um período anterior àquele em que eu estive de frente para a porta. A porta foi o último deles neste local em que vivi por alguns anos.

Um longo período se passou, entre uma mudança e outra de lugar. Certa manhã, quando esperava para ver o momento em que a porta se abriria e os gatos sairiam, porque neste local havia três lindos gatinhos, um de cada cor, acho que ainda não havia falado sobre isso, eu fui tirado da estante e colocado delicadamente em uma caixa, com muitos outros livros, que estavam na mesma estante que eu.

Fui levado para uma estante, num lugar distante, onde eu podia também ver muito verde, mas desta vez havia muitas crianças. Eu fui colocado numa sessão específica dentro desse lugar e volta e meia me levavam para alguma casa. Lá eu ficava em torno de dez dias e voltava para a mesma estante. Mais tarde eu fui saber, através de um amigo que fiz naquele local, que aquilo era uma biblioteca, onde iam livros doados por algumas pessoas e dali nós éramos alugados. Ser alugado é como ser emprestado, mas teríamos que voltar sempre para aquele lugar. Foi uma época também bem divertida, onde conheci muitas casas e muitas rotinas. Nenhuma tão legal como a casa onde vivi por cinco anos, mas enfim, como eu disse, cada lugar foi belo em suas particularidades. Este em específico, tinha um cavalo que volta e meia passava correndo e esta cena valia por todas.

Quando já muito velhinho e cansado destas andanças, pois além de já ter vivido muito e estar agora com páginas amarelas, cada um que me levava para casa, estragava um pedaço de mim. Tenho certeza que não intencionalmente, mas por puro descuido.

Certo é, que eu já não queria mais passar de mão em mão e, para a minha surpresa, a moça que me comprou era mãe de uma daquelas crianças que estavam naquela escola e resolveu pedir seu livro de volta. Não sei bem a manobra feita por ela, mas ela conseguiu me levar para casa.

De volta à estante daquela moça, mas desta vez em uma casa diferente. Era muito maior e a estante ficava em outro andar da casa. Desta vez, fiquei em frente a um aquário de peixinhos e podia apreciar os bichinhos todos os dias da minha vida.

Sabe. Como é bom ser um livro. Como é bom divertir as pessoas e fazê-las chorar de emoção. Se eu pudesse viver de novo, gostaria de ser exatamente o que fui.

Manuela Pimentel e Roberta Pimentel

Roberta Pimentel e Manuela Pimentel
Enviado por Roberta Pimentel em 23/01/2023
Código do texto: T7701941
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