MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • 17

• Capítulo 17 — Guarda-chuvas •

Bongo sorriu e disse:

— Você sabe que eu tenho o mapa e posso partir deixando você e todos os seus sonhos de heroísmo nesse buraco pelo resto da sua infeliz vida, não é? Você se quer tem uma nave, Mectá. Você só tem essa adaga velha porque eu o dei e aparentemente nem funciona mais. Acha que vai conseguir comprar o que com esse solaris? Não tem ideia, não é mesmo?

E nesse momento, meus amigos, a raiva me subiu até a ponta do último fio de cabelo vermelho na minha cabeça.

— Qual é, Bongo? Eu já não aguento mais essa sua canalhice, meu parceiro. Não é porque você tem o mapa que você sabe de tudo! Não é porque tem uma nave que vai conseguir chegar até a Bola de Gude Carambola. Eu tenho... informações que o sábio passou só para mim... e tem mais, pode parar com esse showzinho porque eu sei que você sabe muito bem que precisa da minha ajuda para conseguir o que quer. Eu vou mais uma vez até a feira de Solavanco e você vai me esperar aqui... se não quiser esperar, sinto muito. Vou dar um jeito.

— Bye bye, Mectá. — Ele disse já se virando e entrando novamente em sua nave em forma de abóbora.

— Adeus, sua lesma asquerosa. — Assoviei — Vamos Luna, deixa esse babaca para lá. Quero ver o que ele vai conseguir fazer sozinho com essa pança dele. — Me virei e caminhei sem olhar para trás.

Acredito que meus queridos leitores já devem ter percebido que eu estava blefando. O solaris que eu ganhara do Sábio daria para comprar pequenas coisas, mas precisaria pelo menos de mais uns dez daqueles para conseguir comprar um planador de superfície de segunda mão para conseguir chegar nas montanhas lá não sei das quantas em algo menos que um mês. Mesmo assim me virei e fui até a loja do Sr. Cornélio Manda-Chuva, o maior conhecedor da antiga arte de fabricação de guarda-chuvas.

A fábrica/loja ficava em um beco particularmente estreito, particularmente escuro, particularmente torto, particularmente sujo na área comercial de Solavanco. Tinha cheiro de ferrugem, fuligem e aço de solda e por algum motivo todas as vezes que eu fora ali, exceto hoje, estava chovendo. Havia muitos ferreiros por ali, e alguns bares de quinta onde você poderia pedir um hambúrguer ou um cachorro quente, mas jamais saberia da carne de qual, ou quais, animais tinha sido feito o lanche, havia também salas de jogos e outras diversões mais adultas e bizarras. Pus Luna em meus braços enquanto caminha por ali, pois nunca se sabia quando os bares poderiam estar em falta de matéria prima.

Desviei de alguns bêbados e viciados em geral, pulei algumas poças d’água e finalmente cheguei na portinha escura empoeirada da loja de Guarda-chuvas e Outros Dispositivos Igualmente Importantes. Toquei a campainha que ecoou alta pelo beco.

— Olá, Sr. Cornélio Manda-Chuva, como vai?

Ele abriu uma pequena brecha e eu vi seu trêmulo olho, branco como se fosse cego, mas eu sabia que ele me via muito bem.

— Ora, me veja, se não é o Svam Cabeça de Fogueira. Já faz um tempo que não o vejo arruaçando por aqui.

— É verdade, tô andando com um pessoal novo aí, sabe como é que é... mas não sabia que me chamava assim.

— Não pense que você é o único Svam a rondar por essas bandas... E veja o que tem aí, adotou um pulguento para lhe ajudar nas malandragens, não foi?

— A Luna é minha amiga — ela deu um grunhido — e como eu disse, as coisas mudaram um pouco desde a última vez que me viu. Não vim pedir e muito menos roubar nada, veja. — Mostrei o solaris — vim comprar um guarda-chuva e sei que o senhor é o melhor e com certeza o mais experiente do ramo.

— Sem dúvidas. Venha, entre, vamos conversar um pouco. Antes de vendê-lo um de meus guarda-chuvas é preciso que você saiba um pouco sobre o objeto que terá em mãos.

Eu nunca tinha visto o Sr. Cornélio abrir a porta de sua loja para ninguém, sempre usava uma portinhola para ver, outra para receber o dinheiro e outra para entregar a mercadoria, nenhuma dessas portinhas tinha se quer um centímetro a mais do que precisava ter para cumprir adequadamente suas funções.

A porta completa rangeu e soltou uma nuvem de poeira. Afastei-me um pouco para não inalar aquela sujeira que estava ali provavelmente desde o período cretáceo.

— Vamos, entre, entre Svam Cabelo de Fogo.

— Agora me chamo Mecstar, senhor.

Ele parou um instante me olhando com seus olhos heterocromáticos (o branco já mencionado e um que variava de verde para azul).

— Mecstar. É um bom nome, meu jovem. De fato, um nome muito bom. Será que você está mesmo à altura de carregá-lo? Bem, espero que sim, vamos, sente, sente.

O ambiente estava à meia luz e tinha velas que emanavam luzes azuis e verdes em locais espalhados. Havia uma grande escadaria para o andar de cima, e muitas e muitas portas de vários compartimentos, além de diversas ferramentas e objetos de formas que jamais tinha visto e não fazia ideia para que serviam. O local tinha cheiro de vidro sujo e metal velho.

— Pois bem, vamos lá, por onde eu começo... antes de ter um guarda-chuva fabricado por essas velhas mãos aqui você precisa saber um pouco a cerca deste curioso objeto.

— Sim, só estou com um pouco de pressa...

Ignorando a minha pressa ele começou uma longa e exaustiva narrativa a qual eu transcrevo um pequeno resumo abaixo com os momentos que considerei mais importantes para a nossa história, engraçados e curiosos.

Sobre guarda-chuvas

Muitos fatos intrigantes cercam este curioso objeto. O primeiro, e talvez o mais intrigante de todos, é o de ele não ter sido criado para o que a maioria das pessoas pensa que foi. Como as espécies mais desenvolvidas do universo bem sabem, a verdadeira função do guarda-chuva não é repelir a chuva, mas impedir que ela aconteça. Coisa que ele até faz razoavelmente bem — é por isso que é tão comum não chover quando você lembra-se de sair de casa com seu guarda-chuva, e é por isso que há uma probabilidade muito grande de chover se você por acaso o deixar em casa. Mas, como tudo na vida, nem sempre ele funciona bem, então, se você sempre sai de casa com ele (mesmo num dia de sol) é provável que um dia ele vai acabar falhando e você vai acabar o usando para se proteger da chuva. Isso se você for inocente o suficiente para não saber que essa não é uma das funções dele. Numa chuva com vento o máximo que ele fará é impedir que alguma água atinja sua cabeça, enquanto todo seu corpo vai guardar e carregar uma quantidade considerável de chuva. Isto antes de ele virar do avesso como uma laranja e te deixar no meio da chuva se sentindo muito ridículo por está carregando um objeto desses na chuva. Em momentos como esse você vai preferir tê-lo esquecido. O que nos lembra de sua segunda função: ser esquecido.

Não importa o quão boa a sua memória é, ou se você o amarrou com uma corrente de aço em seu braço, você em algum momento, em algum lugar, vai acabar esquecendo seu guarda-chuva. E quando isso acontecer espero que ele não esteja amarrado no seu braço, do contrário, pode ser que você se encontre perguntando-se onde diabos você deixou o seu braço direito que estava bem ali agorinha — você vai estar tão preocupado em ter que aprender a assinar com a mão esquerda que nem vai se lembrar de que tinha um guarda-chuva.

Sobre as funções e disfunções do guarda-chuva existe uma história interessante. A história do homem que entrou para o Gran Masterócio, o Livro dos Recordes Galácticos, o Sr. Prático Pessoa.

O Sr. Prático Pessoa, como seu nome já indica, era uma pessoa prática e gostava de suas coisas bem ordeiras. Tinha seus remédios organizados por ordem alfabética, nunca atravessava fora da faixa de pedestres, nunca dormia sem pijama, nunca se atrasava para uma reunião, era uma das pouquíssimas pessoas do mundo a fazer uso correto de uma agenda, e detestava o fato de nunca poder usar um guarda-chuva até o fim. Após contabilizar o esquecimento de 399 guarda-chuvas, nos locais mais diversos, Sr. Prático decidiu por um basta nesse incômodo que atinge pessoas de todo o universo que precisam ir trabalhar em dias de chuva. Ele resolveu dedicar sua vida a criação de um guarda-chuva que não pudesse jamais ser esquecido. Muitos anos ele levou aprofundando-se nos estudos do comportamento e da fabricação desses intrigantes artefatos. Descobriu segredos milenares e obscuros a respeito de sua invenção e produção também. Tornou-se rapidamente uma autoridade no assunto e uma pessoa com um percentual negativo de vida social e amorosa, é bem verdade. Finalmente ele concluiu o projeto de um protótipo do neo-guarda-chuva, um que realmente guardava a chuva (sim, havia um recipiente onde ele acumulava água para usos futuros) e que não podia nunca ser jamais esquecido, uma vez que ele era instalado por meio de uma tecnologia avançada nas costas da própria pessoa, e era ativado automaticamente ao menor sinal de água.

O Sr. Prático Pessoa verificou a previsão do tempo de todo o sistema solar onde vivia, a fim de descobrir onde cairia a maior tempestade o mais breve possível, para fazer a grande estreia da sua invenção. Televisões interplanetárias interromperam suas entediantes programações diárias para cobrir esse grande passo na Grande História. O Sr. Prático prometeu na frente de todas as 5.437 câmeras que sairia da tempestade completamente seco, e com água armazenada suficiente para lavar um pia e meia de pratos e talheres, além de duas frigideiras e uma panela. O que o Sr. Prático Pessoa não sabia era de que um pequeno (mas grave) erro em seu projeto transformou seu neo-guarda-chuva num poderosíssimo para-raios — e fez com que ele fosse atingido simultaneamente por 387 raios, naquele dia. Fato esse que resultou em sua, já mencionada, entrada no Gran Masterocio, como o homem atingido pelo maior número de descargas elétricas naturais já registradas em vídeo. Ele foi resgatado ainda com vida, apesar de ter ficado em coma por alguns anos, e foi constatado que ele cumpriu (pelo menos em parte) sua promessa. Pois, de fato, não havia nenhuma gota d’água em seu corpo quando foi resgatado.

Quando o Sr. Prático Pessoa finalmente saiu do coma — após seis anos e três meses assistido pelas melhores equipes médicas de seu sistema — ele estava fisicamente curado, mas mentalmente mudado. Desenvolveu a estranha habilidade de falar com os animais, e perdeu completamente o sua personalidade metódica. Não quis mais saber de sua invenção, nem de qualquer coisa relacionada à ciência, na verdade. Passou a viver em ambientes selvagens, em meio aos animais, sem nenhum sinal de civilidade, e a pregar complexas teorias filosóficas àqueles que (curiosos) buscavam falar com ele. É dito (embora não seja um fato comprovado) que ele se suicidou, lançando-se de um precipício, após uma discussão filosófica com um texugo-malhado-da-cara-pintada que durou quatro meses, sete dias, oito horas e trinta e três segundos.

Quando o Sr. Finalmente terminou Luna já dormia em meu colo e eu já tinha afundado uns belos cinco centímetros no estofado carcomido da poltrona antiga na qual sentara.

— Nossa, Sr. Cornélio... precisava mesmo disso tudo?

— Eu geralmente entrego essas informações impressas num pergaminho que acompanha meus guarda-chuvas, mas infelizmente não consigo encontrar os últimos que mandei imprimir... tem tanta coisa aqui, meu jovem. Quando se é velho e cheio de coisas fica difícil encontrar o que se precisa. Isso serve para sua casa assim como para sua mente...

— Eu ajudaria o senhor a encontrar, na casa ou na mente, mas estou mesmo com pressa. Quanto custa o guarda-chuva?

— Temos de vários preços, o Clássico, que você leva por apenas 60 bolaris...

— Vou ficar com esse.

Ele me olhou meio incrédulo.

— Você se tornou um rapaz realmente apressado, Mecstar! O que poderia tê-lo deixado tão apressado assim?

— O fim do mundo — disse me levantando, colocando delicadamente Luna no chão — vou precisar do troco. — acrescentei e bati com meu solaris no balcão.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 09/12/2022
Reeditado em 20/02/2023
Código do texto: T7668205
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.