A volta dos Três Cavaleiros

 

A VOLTA DOS TRÊS CAVALEIROS

Miguel Carqueija

 

— Por que temos afinal de ficar com essas barbas? — queixou-se o Pato Donald. — Já é esquisito um pato como eu usar barba. Agora, um pato, um galo e um papagaio...

— Schiu! — recomendou o Zé Carioca. — Você sabe muito bem porque estamos com essas barbaças. Sabe que a tal associação dos meus colegas anda atrás de mim...

Referia-se à Associação dos Credores do Zé Carioca, à qual ele até então não havia pago um centavo sequer das suas dividas.

Estavam os três no museu, fingindo que se interessavam em olhar os quadros. Panchito, por sua vez, andava mais calado que o normal; aliás seu normal era a tagarelice. Desde os últimos tiroteios em que se envolvera, não parecia querer voltar ao México. E diziam as más línguas que até o Chapolin Colorado andava em seu encalço.

Donald não tinha razões tão dramáticas para se ocultar, mas qualquer um que fosse reconhecido e todos os Três Cavaleiros se-lo-iam.

Passavam distraidamente por uma das salas quando, de subito, Panchito puxou sutilmente os outros dois:

— Caramba! Vejam, muchachos: dêem uma olhada nesta pintura!

Donald e Zé Carioca olharam, a princípio sem grande interesse. Não era uma tela muito grande e suas cores eram muito escuta; mas a cena que mostrava tinha aspectos deveras interessante.

Mostrava uma terrível tempestade no mar e um escaler onde um papagaio em roupa de pirata remava desesperadamente, afastando-se de um grande navio; a embarcação fazia água entre as ondas enormes e dentro dela achava-se uma típica arca do tesouro.

— Puxa, ele parece muito com você — observou Donald, dirigindo-se ao Zé.

— Isso é verdade, e me lembra alguma coisa.

Zé Carioca coçou a cabeça, procurando se lembrar. Então deu um tapinha na testa:

— Mamãe dizia que um dos nossos ancestrais tinha sido pirata! O Kid Louro...

— É claro que é este, José! — observou Panchito. — Veja aqui a placa!

E realmente a placa confirmava a informação dada por Zé Carioca:

“Fugindo com o tesouro”, tela a óleo de Leopato Da Vinci. Imagem expressionista mostrando o lendário pirata Kid Louro levando o seu famoso butim num barco salva-vidas, quando uma terrível tempestade das Caraíbas destruiu o seu navio Robalo, que aparece em segundo plano, já começando a afundar. Tela pintada provavelmente em 1769, dois anos após o misterioso desaparecimento do pirata. Não se sabe como o artista se inspirou para a concepção da cena, pois nenhum dado histórico confirma que Kid Louro tenha escapado ao naufrágio.”

Panchito deu uma risada, apontando a cena:

— Quá quá, José! Eu sempre soube que os seus antepassados não podiam ser bons! Quanto você terá herdado dos genes desse aí?

— O que está querendo insinuar? — protestou Zé Carioca, brandindo o guarda-chuva. — Está querendo dizer que eu não sou honesto?

— Que você não é honesto? Longe disso, magina...

— Vamos andando — observou o Pato Donald. — Já estamos chamando atenção...

Passaram para outra sala, mas a impressionante cena do quadro ficara na cabeça de Zé Carioca. Uma coisa parecia bem clara ao papagaio: um seu antepassado distante tivera nas mãos um tesouro de incalculável valor. Rubis, esmeraldas, diamantes, pérolas? Barras de ouro? Fosse o que fosse, ele, Zé Carioca, era o herdeiro legal. Se soubesse onde estava o tesouro, toda a sua vida estaria resolvida e para sempre. Estaria rico, riquíssimo! Poderia até mesmo pagar a todos os credores...

Donald sacudiu-o:

— Zé! O que há com você? Estamos diante da “Vênus de Milho”, preste atenção!

— Ah, é... observou o papagaio, tentando voltar à realidade.

Pararam numa lanchonete para forrar o estômago e Zé Carioca continuava aéreo.

— O que há com você? — indagou Donald.

— Aquele tesouro que estava com o meu antepassado... que fim levou? Será que ainda pode ser localizado? Onde Kid Louro o levou? Eu sou o herdeiro desse tesouro...

Donald pôs-se a rir, logo seguido por Panchito. O papagaio, porém, deu um soco na mesa, indignado:

— Admira-me vocês! Não somos os Três Cavaleiros? Não somos um por todos e todos por um? Se eu conseguir esse tesouro, reparto com vocês!

Panchito e Donald se entreolharam, incrédulos, perplexos. De repente a coisa aparecia a seus olhos debaixo de outro prisma. Zé Carioca, porém, guardou para si o complemento:

“É claro, depois de pagar as minhas dívidas, aquela associação dos meus credores... se sobrar alguma coisa...”

— Eu tive uma idéia! — disse Panchito, procurando falar em voz baixa, o que não era seu hábito, visto não ser conveniente que outros fregueses escutassem. — Donald, você não tem um tio rico?

— Estou fugindo dele — respondeu o ranzinza pato. — Gosta muito de explorar os parentes.

— Será que ele não podia financiar a busca do tesouro? Daríamos dez por cento a ele...

— Está doido, Panchito. Não conhece o velho muquirana. Ele não joga para perder e vai querer dar dez por cento a nós três...

— Nada disso! — e aqui foi o Zé Carioca, falando com firmeza. — O herdeiro sou eu, e não sou obrigado a me submeter às exigências do Patinhas! Quem decide a porcentagem sou eu!

Mas Donald não se deu por convencido.

— Pense bem, Zé Carioca: se meu tio vai financiar a procura, ele pode impor as condições, sim. Você não conhece o Tio Patinhas...

— Pode ser, mas... vale a pena tentar. Sem dinheiro não vamos sair da estaca zero!

— Então como vamos fazer?

— Por que não vamos para Patópolis falar com o avarento? — sugeriu Panchito. — Lá pelo menos não temos que usar barbas!

— E com que dinheiro? — objetou o papagaio.

— Ora, com que dinheiro! — respondeu Panchito. — Evidentemente, vocês vão... quer dizer... — e o galo olhou de um para outro, e tanto Donald como Zé Carioca estavam com as caras amarradíssimas.

— Se vocês não têm dinheiro, não esperam decerto que eu vá...

— Pagar as nossas passagens! — exclamaram o pato e o papagaio em uníssono. — Sabemos que você pode!

— Eu e meu grande bico... — lamuriou-se Panchito.

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Mesmo no avião não haviam chegado a um acordo. O Pato Donald, por exemplo, estava muito contrariado com a idéia de reencontrar o tio explorador e sovina. Panchito, que não era sobrinho de ninguém, já manifestava outra opinião:

— Tudo é preferível a continuar comendo nos pés-sujos onde o Zé nos leva. Naquele último, lembram do prato de azeitonas? Eu fui espetar uma com o garfo, só que ela saiu andando. Fui espetar a segunda e aconteceu a mesma coisa. A terceira eu consegui, porque não saiu andando. Essa eu acho que era mesmo azeitona.

— Isso é questão de treino — observou criticamente o papagaio. — Eu só espeto as que não se movem.

— Vamos mudar de assunto — pediu o Donald. — Esse papo já está me enojando.

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— Não podiam vocês dois ir falar com o meu tio? Eu fico esperando aqui do lado de fora...

— Você está viajando, Donald — Panchito já estava ficando irritado. — Nós nem conhecemos o seu tio e ele vai achar que somos loucos.

— Não, não! É só falar que tem um tesouro no meio...

Mas Zé Carioca reforçou o galo:

— Com você teremos mais chance. E depois, por que você não quer vê-lo? É um sujeito tão horrível assim?

— Horrível? O Tio Patinhas é usurário, muquirana, egoísta, maníaco, irascível, teimoso, unha-de-fome, explorador, cara-de-pau, mandão, mal-humorado, pão-duro, miserável, mesquinho...

— Já chega — cortou Zé Carioca.

— Eu ainda mal comecei!

— Donald, bolas! — gritou Panchito. — Isso já está passando dos limites. Em vez de ficar desfiando as virtudes do seu tio seja homem, isto é, seja pato, e vamos em frente! O máximo que pode acontecer é ele dizer não! Além do mais vocês dois já me fizeram gastar o dinheiro das passagens de avião! Não sei se vocês perceberam, mas eu estou longe de ser rico e acabo de gastar o dinheiro que ainda tinha comprando essas passagens!

Donald tirou o boné e coçou a cabeça.

— Se põe as coisas nesse pé...

— E já estamos chamando atenção, discutindo aqui na calçada — lembrou o papagaio. — Deveríamos ter permanecido com as nossas barbas...

— Não creio que a associação de credores chegue até aqui — opinou Donald.

Afinal entraram e o mordomo Jarbas foi ver se o arqui-milionário estava disponível. Donald não quisera telefonar previamente, temeroso de uma resposta negativa; preferira arriscar uma incerta.

Na sala de espera ficou evidente que os Três Cavaleiros não são pessoas que saibam permanecer quietas por muito tempo.

— Donald, pare de andar para lá e para cá! Está me deixando nervoso!

— E você, por que é que está andando em círculos?

— Calma, Donald e José — disse Panchito, indo pela décima vez na máquina de café. — Logo seremos atendidos.

— Você falou a mesma coisa duas horas atrás — rosnou o Donald.

A porta se abriu e apareceu Dona Cotinha, secretária de Patinhas. Os três olharam esperançosos para ela, que porém se limitou a dizer:

— Entre, Senhor Onírio.

Ergueu-se um sujeitinho que aguardava silencioso numa poltrona, cabeça baixa e encoberta por chapelão, sobretudo e luvas de pelica. Tinham esquecido a sua presença.

O senhor Onírio dirigiu-se à porta de acesso e Donald, indignado, abordou a secretária:

— Afinal, Dona Cotinha, o meu tio não vai me receber?

— Este senhor estava na sua frente. Aguarde — respondeu ela, friamente.

Mas como diz o ditado, quem espera sempre alcança. Antes que o Panchito apanhasse uma úlcera de tanto tomar café, Patinhas mandou que eles entrassem.

 

(FIM DA PRIMEIRA PARTE)

 

23/8/2013 A 26/6/2014

 

Nota: este texto é uma fanfic, ou ficção de fã, e se baseia no filme de Walt Disney "Os três cavaleiros", de 1944, onde pela primeira vez apareceu o trio reunido: o pato norte-americano Donald, o papagaio brasileiro Zé Carioca e o galo mexicano Panchito.