MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • 13

• Capítulo 13 — Solavanco •

— Senhores passageiros, preparem-se para o desembarque na vila de Solavanco. — Dizia uma afetada voz feminina robótica nos alto-falantes do interior da nave em forma de abóbora — Aguardem a completa parada do motor antes de por um pé, mão, dedos, tentáculo, pneu, pata, ou...hum... língua para fora da nave. Informamos que a temperatura está alta, 63 graus Celsius, 145.4 Fahrenheit, 328 kelvin; o céu está claro; a umidade do ar é de 3,6%; e são oito horas e trinta e um minutos da manhã.

— Recomendamos o uso do protetor solar Supernova fator 90 para peles sensíveis e a remoção de quaisquer peças de roupa que possam resultar num bronzeamento mais constrangedor que de costume. Temos satisfação em informar que não há pontos turísticos agradáveis onde você poderia tirar fotos de gosto duvidoso para se exibir na univernet, e que os restaurantes locais possuem uma culinária estritamente não recomendável.

— Aproveitamos para informar sobre a presença de um número considerável de arruaceiros potencialmente retardados, passíveis da criação de desconfortos potencialmente relevantes. Aliás, aproveitamos para garantir que seria melhor a escolha de outro destino agora mesmo. Isso. Já! Mas, caso deseje ficar neste fim de fim do mundo, esperamos que as regras da coerência sejam quebradas e você tenha um dia formidável.

— A Pró-vida Technoplus SE-IV agradece a sua consulta e eu, ao fato de não precisar acompanhá-lo nisso que você chama de passeio, afinal, sou apenas uma voz sem forma. Mas não se esqueça: estamos sempre do seu lado — desde que você escolha seus destinos com bom senso.

Luna se espreguiçou sob a mesa sobre a qual eu dormira. Bongo estava tomando seu café da manhã em outra mesa circular que certamente tinha saído do chão da nave, assim como a minha no dia anterior.

— Solavanco não é tão ruim assim, cara. — Falei — Esse seu computador deve estar com problemas.

— Bom dia para você também, Mectá — Respondeu a lesma verde do Bongo. Colocava para dentro uma torrada integral com geleia de folha de cenoura enquanto mexia em um tablet com seus dois braços inferiores. — Não há nenhuma informação sobre esse seu sábio na univernet, a propósito. Espero que não esteja tentando me enganar... pelo menos não muito.

— Não estou. Sou um herói, lembra? O Sábio existe e está me devendo uma conversa, sim... tá certo que já faz um ou uns dois meses, mas...

— Ok... então vamos à obra. — Ele limpou a boca de lesma com um guardanapo vermelho com algo escrito em branco e se levantou.

— Mas eu não consigo pensar de barriga vazia, e preciso de sandálias novas também. — Ergui um de meus pés descalços.

Bongo levou a palma da mão sobre o rosto e retirou-se da sala de comando da nave resmungando alguma coisa num idioma desconhecido por mim. Segundos depois apareceu o R2 com outra bandeja de comida.

— O que temos agora, rato de lata? — Perguntei.

— Torta de amoras das ilhas...

— Tá certo... Pode parar por aí, eu já entendi. Manda pra cá.

Ele destampou a bandeja e a jogou sobre a mesa. Depois, ficou olhando para mim com aquela cara de rato de metal.

— Oi? — Falei.

— Olá.

— Tá esperando o quê?

— Você comer.

Notei que ele não falava mais tremendo, provavelmente fora reparado, e desejei que eu pudesse em breve o avariar novamente.

— Para quê?

— Mectá mais burro... Para recolher a bandeja.

— Ah, você não precisa... aliás, será que você não poderia me arranjar um sapato qualquer não? Andar pelas ruas de Solavanco de pé liso é meio arriscado.

— Não é porque eu trouxe sua comida que eu virei seu empregado, Mectá. Não se empolgue. E vê se come logo que já vamos descer. Hihihi... — Depois disso ele se retirou, possibilitando que eu pusesse a segunda parte do meu plano em prática.

Embaixo do painel de controle da nave havia uma série de portinholas que lembravam um armário. Abri uma por uma e encontrei diversos objetos esquisitos — a maioria dos quais eu não fazia ideia para que servia. Acabei retirando de lá a coisa que mais me pareceu uma marmita. Isso mesmo, você não ouviu errado, caro amigo. Se ainda não percebeu, o plano do aprendiz de herói aqui era levar a torta de amoras não sei das quantas para o Sábio das Bolhas de Sabão. Pois, talvez você não se lembre, mas eu ainda me lembrava do pedido do Sábio no nosso encontro. “Da próxima vez, traga-me algo para comer”, ele dissera. Não sabia se ele ia gostar daquela torta ou não, mas era a única comida que eu tinha. Tinha que servir.

A marmita — ou o que quer que aquilo fosse — era prateada e completamente redonda com um pequeno 8 azulado na parte superior. Pus a torta, que era de tamanho razoável, e fechei. Ao fazer isso, o 8 começou a piscar com uma luz azulada mais forte. Rapidamente a escondi num dos bolsos do meu colete — não queria que Bongo visse que eu a tinha pego emprestado.

E, lá vinha ele, com cara de lesma emburrada, trazendo o que eu descobri ser meus sapatos novos.

— Botas laranjas? Mas por que... Isso vai manchar a minha reputação... nenhuma pessoa normal sai andando de botas laranjas por ai...

— Cala a boca, Mectá. Como se você fosse uma pessoa normal...

As botas eram confortáveis e estranhamente leves. Fizeram-me ter vontade de sair correndo em campos verdejantes, com o vento no rosto, a esperança no coração, e um urso assassino correndo na minha direção. Luna as farejou e abanou levemente a calda em forma de S.

— É melhor você ficar por aqui, amiguinha. Não quero arranjar confusão com os açougueiros da Rua dos Berros.

Ela fez uma cara não muito contente, mas pareceu compreender.

— Volto logo, você vai ver.

A nave começou a aterrissar e eu, Bongo e o R2 nos aproximamos da porta.

— Você fica. — Disse Bongo para o rato de lata. — Certifique-se de que essa criatura não vá aprontar.

A porta se abriu e desembarcamos sobre um pequeno morro. De lá de cima era possível ver a Feira do Vale Torto quase inteira. Não dava para saber exatamente o que era fumaça saindo das chaminés e o que era poeira subindo das ruas.

A vila onde passei a maior parte de minha vida era um punhado de casas e casebres de barro, de madeira, ou de pedras, distribuídos numa cadeia feia e irregular de colinas. No maior e mais torto vale entre as Colinas Quebradas, ficava a Feira do Vale Torto. Era o maior ponto de comércio em quilômetros e costumava-se dizer que só não se encontrava lá o que não existia.

— Então, onde encontramos esse seu amigo?

— Da última vez segui umas bolhas de sabão e tal, deu super certo... — dei de ombros.

— Ótimo, e onde podemos encontra-las?

— E eu sei? Acho que dei sorte no dia.

— Você é completamente inútil mesmo, Mectá.

Cada um dos cinco primeiros seres a quem perguntamos sobre o paradeiro do sábio deu uma resposta peculiar:

O primeiro, um senhor gordo, de camisa aberta e grandes óculos sem lentes na cabeça, deu de ombros e seguiu em frente assobiando uma antiga canção de ninar fora do ritmo. A segunda, uma mulher de meia idade, com um lenço encardido na cabeça e uma sacola enorme em cada mão, disse que o vira, há pouco, na rua das lojas de suvenires, comprando chaveiros para toda família que ele visitaria em Bona Bonança no próximo Dia da Independência — mas ele, claro, não estava lá. A terceira, uma velha que andava com duas bengalas, cheia de tatuagens de cores fortes pelo corpo, o qual estava em sua maior parte à mostra, pediu para repetirmos a pergunta seis vezes e meia, então disse que não queria “comprar nenhum gambá-xinim do dentão”. A quarta perguntou se estávamos interessados em ingressar num negócio altamente rentável de vendas de um produto novo no mercado, mas com ampla aceitação pelas classes delta, gama e beta, com infinitas perspectivas de crescimento financeiro. O quinto rosnou, latiu, tentou nos morder e nos perseguiu por quase toda a feira. Bongo evidentemente não sabia que os cães de Bolaranja não falam com estranhos.

Finalmente Bongo teve uma ideia que, a meu ver, tinha 113,5% de chances de dar errado.

— Se são as bolhas que levam até o maluco, é de bolhas que precisamos. Vamos comprar um fazedor de...

— Nossa, cara. GENIAL. Genial mesmo, Bongo.

Ele ignorou meu comentário sarcástico e dirigiu-se para uma loja de bugigangas.

— É. Um fazedor de bolhas, ou qualquer palavra ridícula que você usem aqui para se referir a essa porcaria. — Disse ao atendente.

— Calma, senhor. — Falou o homem, um idoso, baixo, que usava uma camisa polo e um barrete vermelho. — O senhor está muito nervoso, se me permite, gostaria de recomendar esta novidade que acaba de chagar da via láctea. — Ele apontou para uma pilha de livros num canto.

“Livro de Colorir Antiestresse. Uma cor a mais é uma mágoa a menos” dizia a capa cheia de arabescos coloridos.

Bongo suspendeu um deles, desinteressadamente, e perguntou: — E onde é que aperta para ficar tranquilo, até que estou precisando mesmo. — Começou a folhear o livro como se este estivesse sujo — Acredito que estou prestes a fracassar na missão mais importante de minha vida até hoje... e tudo por causa dessa cria de vocês aí. — Ele apontou para mim e jogou o livro de volta à pilha, derrubando-a completamente.

— Na verdade, na verdade, ainda não descobrimos como funciona, senhor... mas tentar descobrir já deve ser um pouco terapêutico, não acha? — Os olhos do vendedor brilhavam.

Bongo sacou sua pistola e disparou contra a pilha de livros derrubada. Pelos menos cinco deles viraram poeira instantaneamente.

— Agora sim. Isso foi muito relaxante. — Bongo sorriu satisfeito com as duas mãos inferiores apertando a barriga.

Os olhos do homem se arregalaram como duas luas cheias.

— Pela negra lua da Panatereia! — Exclamou ele. — Uma Remington Laser-Mortus 6003! Quanto você quer por ela, meu senhor? — Ele retirou um talão de cheques e começou a preencher uma folha.

— Não está à venda, essa aqui tem um valor sentimental além de qualquer ouro que você possa ter nesse lugar, além disso... — O homem mostrou o valor que tinha posto no cheque.

— Além disso, eu ainda preciso daquele fazedor de bolhas. Acrescente um deles ao cheque e a pistola é sua. — Concluiu Bongo.

O homem nos entregou dois sopradores de bolhas de sabão automáticos. Fiquei com um azul, em forma de um golfinho sorridente. Bongo ficou com um preto, em forma de orca.

— Fizeram um ótimo negócio, senhores. — despediu-se o vendedor, sorrindo quase rasgando a boca com seu sorriso.

Bongo também sorria, e não parava de olhar para o cheque, enquanto espalhávamos bolhas de sabão pela feira como duas crianças.

— Acho melhor você guardar isso aí, lesmão. — Falei — O que não falta por esses lados são ladrões. Sei porque fui um deles há bem pouco tempo. Costumamos chamar pessoas assim como você de prato cheio. Você é um banquete com sobremesa e tudo. Nem armado está mais...

— Sorte sua. — Disse ele.

Passamos o resto da manhã dando voltas na feira. E quando nos cansamos da feira, nos aventuramos pelas colinas residenciais. E quando nos cansamos destas, voltamos à feira.

— Eu não sei quem é mais burro, Bongo. — Exclamei quando, quase ao mesmo tempo, as baterias das nossas pistolas de bolha de sabão acabaram. — Não sei se é você ou se sou eu. Estamos só perdendo tempo aqui. O velho evidentemente não está... já pode até ter ido visitar sua família naquele lugar lá... e nós aqui, feito dois perfeitos idiotas.

— Minha idiotice maior foi aceitar você e aquele outro animal na minha nave... Ei, espere... De onde estão vindo essas bolhas, Mectá?

Tínhamos parado de soprar há algum tempo. Aquelas bolhas definitivamente não tinham vindo do golfinho nem da orca. As seguimos e, alguns metros adiante, após dobrar uma esquina, finalmente encontramos o sábio das bolhas de sabão. Estava em frente a uma loja de embutidos e defumados.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 13/11/2022
Código do texto: T7649210
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