Assombrações da minha infância
Hoje, quando me lembro da minha infância, sou envolvido por doces recordações. Nossa família não era muito grande, éramos apenas dois irmãos, ambos acreditávamos nas histórias da mamãe, que as usava para nos corrigir.
Meu irmão Antônio, por ser o mais velho, era mais sapeca e parecia não ter muito medo das figuras inventadas pelo imaginário popular, para conter as estripulias dos filhos. E olha que eram muitas personagens; dentre elas, destacava-se o “bicho das mãos de tesoura”, que cortava os dedos de quem mijava na cama.
Uma outra igualmente terrificante era o homem do cachimbo, que pegava as crianças malcriadas e as colocava no cachimbo para fumar.
Quando ouvíamos estas histórias, ficávamos com a respiração suspensa; os pequeninos olhos brilhavam, as nossas mãozinhas se entrelaçavam, esperando o tão angustioso final, mas gostávamos. Naquele tempo, nem luz elétrica tínhamos em casa, morávamos no campo, longe de tudo.
Em dias de festas, o que era raro, conversávamos com outras crianças que ouviam as mesmas histórias. Porém, ninguém queria falar ou ouvir a mais medonha de todas aquelas lendas, das quais ninguém sabia a origem, era uma que falava de uma mulher devoradora de meninos.
Os mais grandinhos dentre nós apontavam uma pequenina casa, cercada de fortes mourões, no final de uma estrada cascalhada. Lá, garantiam, vivera durante muitos anos certa mulher, juntamente com o seu marido, que um dia saíra pra cidade grande, em busca de melhores condições para a incipiente família.
Quando partiu, a mulher ficara com uma gravidez de poucos meses. Como não tivesse nada para fazer, e querendo muito assinar o próprio nome, começou a escrever, no chão de pedra da casa, as letras que copiava de jornais velhos; usava, para este fim, o carvão produzido pela queima da lenha. Passavam-se os dias numa modorrenta monotonia, pois a dona da casa não ia a lugar algum, senão buscar lenha num matagal próximo.
Quando o rebento veio ao mundo, sua mãe o chamou de Almeidinha, era este o nome do ausente pai. Aconteceu que, por dois anos seguidos, houve uma estiagem muito forte por aquelas paragens. No primeiro ano, a pequena família se valera da pequena horta, que ficava contígua à pequenina e asseada casa. Já no segundo ano, o pouco alimento era racionado, vindo a faltar poucos meses depois. A fome era extrema, o pequeno Almeidinha estava anêmico e raquítico.
Um dia de forte sol, ele brincava desanimado no quintal, quando surge sua mãe com propósitos nada louváveis. A pobre mulher perdera completamente o juízo, devido à angustiante fome que lhe devorava as entranhas. Os seus olhos viam o filho como o alimento que faltava para reconfortar seu estômago faminto. Seus longos e descarnados braços se estendem em busca do que para ela, naquele momento, seria um farto banquete.
Inocentemente, Almeidinha ri do olhar cadavérico de sua mãe, quando sente a torturante dor da mordida que tomara no braço.
No exato momento, como se fossem os três Reis Magos, passavam pela estradinha tropeiros, que traziam mantimentos para socorrer os moradores do pequeno povoado. Vendo aquela inusitada cena, um deles grita para a mulher, perguntando-lhe por que morde o menino; salivando, a demente grita que vai comer o menino. Ato contínuo, segue-se uma terrível luta entre mãe e tropeiro, por causa da criança. Por fim, os braços do tropeiro levantam o garoto ao alto, ao mesmo tempo em que vê a pobre indigente cair no chão, balbuciando suas últimas palavras: “Como o Almeidinha, como o Almeidinha...”
Até hoje me impressiono com esta história, que meu velho pai jura por todos os santos ser verdadeira e quando, sorrindo, pergunto-lhe o nome da mulher, me responde zangado:
_O nome dela não sei, mas seu Joaquim ouviu do avô dele que se chamava “Maria, a devoradora de meninos”.
Em uma destas ocasiões, não percebíamos que o meu filho caçula ouvira a história; à noite, o pobre do menino não dormia e delirava de febre, falando palavras desconexas, sendo que só entendíamos uma frase: “A devorada de meninos”.
Minha esposa e eu passamos a noite ao lado do nosso Lucas, e fomos obrigados a ralhar com meu pai, para que não contasse mais estas histórias de bicho papão.