MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • 12
• CAPÍTULO 12 — Luna•
Uma olhada mais atenta no meu novo amigo lupino mostrou-me o que eu já deveria ter visto: ele, na verdade, era ela.
— Vou te chamar de Luna. — Falei — O que acha?
Ela abanou a calda num lento movimento de S e mostrou-me uma língua úmida e azulada embaixo de seus olhos brilhantes.
Era bom estar ali, mas eu precisava me por em marcha ou Bongo partiria e eu ficaria lá para sempre. Comecei a subir de volta a montanha, descalço — um livro e um par de sandálias mais pobre, pra não mencionar o fato de que a Zitara talvez nunca mais voltasse a funcionar. Fazia um frio congelante e meu estômago parecia que não via comida há três eras glaciais. A subida parecia não ter fim, e o cansaço insistia em me dominar. Mais uma vez foi difícil saber precisamente a distancia percorrida, mas com certeza pareceu-me bem maior que a subida. Luna, por outro lado, era só energia. Acredito que, se não fosse pelo constante incentivo dela, teria me jogado em algum lugar durante a subida para descansar — talvez para sempre. Mas, sempre que eu parava um pouco, ela latia insistentemente, alguns metros à frente, então eu continuava.
Finalmente cheguei ao topo e, para minha grande surpresa, a nave de Bongo, o Gordo, ainda estava lá, exatamente como eu a deixara. A novela que aquela lesma galáctica assistia provavelmente possuía horas de duração. Mal me aproximei da abóbora, a portinhola foi aberta... e Bongo saiu apontando sua pistola colorida para minha nova amiga, com o R2 vindo logo atrás com um sorriso idiota na fuça de lata dele.
— Ei, calma aí, Bongo, ela é minha... é nossa amiga. — Gritei, pondo-me na frente dela.
— Ah, é? — Bongo levantou uma sobrancelha — E ela por acaso vai me trazer a Bola de Gude Carambola de volta? Por acaso ela vai me livrar da humilhação de ver minha missão ir por água abaixo?
— Qual é, cara, sua missão ainda não está perdida, sou eu quem vai salvá-la, aliás, já te disse...
— Hahaha. — Bongo riu ruidosamente, segurando a barriga com os dois braços inferiores — isso eu pago pra ver, Mectá. De qualquer forma, animais não são permitidos na minha nave...
— E esse rato enferrujado? E aquele pato maluco... ou melhor, e aquela preguiça cozinheira que você tem?
— O Z.0.Z. é um robô, um robô de alta capacidade e utilidade. O mesmo vale para o XR5.498.378RRO de banheiro. — Disse ele, sem nunca parar de apontar a pistola para Luna. — Quanto ao... ah, enfim, as normas são para não levar nenhuma vida animal de nenhum planeta, isso poderia interferir no ecossistema; não sabemos que tipo de doenças essa coisa pode ter. Isso para não falar na grande utilidade que esse bicho não teria a bordo.
— Ok. Tá bom. Muito bom, Bongo. Você venceu. — Fiz o máximo para soar convincente. — Mas eu não vou sem ela. — Fixei as pernas no chão e cruzei os braços.
— Adeus, Mectá. — Bongo respondeu, e virou-se de volta para a nave, enquanto o R2 soltava mais uma de suas risadinhas sarcásticas.
— Espera, espera, e quanto ao segredo das bolas de gude? Não vai querer saber, não? — Apelei.
Luna permanecia deitada, com o rabo balançando, olhando timidamente para quem falasse.
— Eu poderia encontrar esse seu maluco das bolhas de sabão, sem você — disse Bongo, presunçoso como só ele — se quisesse... e se estivesse disposto a acreditar em vagabundos...
— Eu não sou vagabundo! — Rebati, então apontei a Zitara. Ele percebeu.
— Abaixe isso Mectá. — Disse ele, sem se virar.
— Claro. E você, vai nos deixar embarcar?
Bongo bufou e se virou.
— Certo, vamos lá, mas você não deve encarar isso como se eu estivesse com medo de sua ameaça, mas eu sei apreciar uma gota de coragem quando vejo uma. Pois bem, digamos que eu deixe você embarcar com essa fábrica intergaláctica de carrapatos ambulante, você vai cuidar dela? Olhe pra você, você não cuida nem de si mesmo.
— É o quê? Vamos olhar pra você, então, sua lesma abissal. Você também não parece vencedor de nenhum miss multiverso não.
Vi uma coluna de poeira se erguer do chão bem na minha frente, então ouvi o tiro (o projétil chegou antes do ruído do tiro). Pulei e fiquei dançando de um lado para o outro, mas Bongo não atirou mais.
— O próximo vai ser na sua cara. — Bongo guardou a pistola.
Luna rosnava para ele.
— Calma, amiguinha... ele só está blefando. — Falei para ela, acariciando sua cabeça.
— Você acha? — perguntou Bongo, e o R2 soltou mais uma risadinha irritantemente aguda.
Ignorei os dois.
— Então vai ter um próximo tiro? — Perguntei — Isso quer dizer que iremos embarcar, não?
Bongo passou duas de suas quatro mãos sobre seu rosto verde de lesma, e falou para o R2 algum código esquisito que eu não entendi.
Em questão de segundos o rato robô estava em cima de Luna. Minúsculos bracinhos mecânicos saíram de dentro dele para examinar a lobinha. Um deles tinha uma lanterna e examinou os olhos e o focinho do animal, outro tinha uma pinça e recolheu um pelo dela, outro, com uma paleta de madeira, verificou a garganta, outro, que tinha um termômetro, levantou a única calda dela e...
— O que você pensa que está fazendo...
— Exames, Mectá — Falou Bongo. — Imagino que você em todo seu heroísmo, hahaha, não vai querer sair espalhando doenças por aí.
— Então quer dizer que... podemos ficar com ela? — Eu disse, mal conseguindo conter a empolgação.
— Pera lá, não decidimos nem se vamos ficar com você, ainda... — Bongo dizia. Então eu o abracei (aquela coisa molenga) e dei um beijo no seu rosto. Felizmente (para mim, principalmente) ele vestia um capacete de proteção.
O R2 recolheu os bracinhos mecânicos (ficando apenas com suas patas comuns novamente) e emitiu um holograma com uma série de dados que moviam-se sem parar num fundo esverdeado.
— Cinomose assintomática, leve grau de desidratação, parasitose gasosa intestinal... — Ia falando ele. Quatro bracinhos mecânicos retornaram; três deles com seringas, uma com líquido verde, outra laranja, outra magenta, todas fluorescentes e grossas, outro com um spray de frasco ridiculamente lilás.
A lobinha começou a correr em minha direção.
— Segure ela, Mectá — Disse o R2 — Mas eu já tinha entendido, e foi o que eu fiz.
— Calma, é pro seu bem. — Eu disse, quando a tive em meus braços.
O R2 aplicou as três injeções de uma só vez, fazendo minha amiga grunhir, então aplicou o spray e ela se acalmou.
— Você devia usar o spray primeiro, Z.0.Z., tsc, tsc, tsc, você nunca aprende. — Disse Bongo, então entrou na nave abóbora.
— Hihihihihi — Riu o R2, seguindo-o.
Eu e Luna finalmente embarcamos.
Bongo sentou-se na grande poltrona de comando lilás.
— E então, Mectá, qual é a rota?
— O quê? Ah, sim... é fácil encontrar o Sábio da Bolhas de Sabão, só precisamos seguir as bolhas. — Falei.
— Você só pode tá delirando.
— Bem... a última vez que o vi, estava perto de Solavanco. Mas pode ser que eu esteja delirando mesmo, deve fazer uma semana que eu não como nada.
— Z.0.Z., providencie um jantar para o nosso... — Dizia Bongo. Eu olhei para ele e apontei para Luna — nossos — corrigiu ele — amigos temporários.
O R2 saiu da sala de comando correndo, um tanto a contragosto.
— Então, Solavanco?
— É... mas seria melhor seguimos as bolhas de sabão. Seria mais confiável, sabe?
— Sei. Você por acaso está vendo alguma bolha de sabão por aqui?
— Bem... ééé...não...
Bongo virou-se para os controles da nave. Não para fazer nada importante, julgo eu, apenas para encerrar, por hora, a conversa. Eu aproveitei para fazer a pergunta que andava martelando na minha cabeça.
— Para que serve essas malditas bolas de gude, afinal, Bongo?
Ele continuou olhando para o painel com indiferença. Notei que não fazia nada em específico.
— Por que você acha que eu compartilharia este segredo arcano com você? — Perguntou ele, abrindo e fechando sistematicamente uma janela de comando na tela.
— Ah, sei lá. — respondi, girando o banco giratório onde estava sentado, o banco produziu um chiado que ecoou em toda sala de controle. Luna perambulava por lá farejando tudo o que encontrava. — O que você acha que um vagabundo como eu seria capaz de fazer com este segredo, hein? Por favor, o Gordo, olha pra mim...
Ele pareceu se divertir com essa declaração. Mesmo que não tenha rido, eu pude perceber um pouco de diversão naqueles dois olhos verdes suspensos por duas finas trompas cor de sorvete de limão.
— As Bolas de Gude carambola são chaves, Mectá. — Disse ele — Chaves.
— Hum. Chaves? Legal.
...
...
...
— E elas abrem o quê?
— Chaves abrem portas e portais, seu estúpido!
— Hum. Portais? Legal.
...
...
...
— E o que tem atrás desse portal que ela abre?
Notei que ele hesitou um pouco em responder. Até que falou:
— Os Outros.
— Hein?
— Os outros universos, Mectá. Outros universos — Disse ele. E eu pude perceber no seu tom de voz como a ideia o excitava. Pude sentir um pouco daquela excitação também; senti os pelos dos meus antebraços arrepiarem.
Essa não era uma ideia inteiramente nova para mim, embora eu fosse (diferentemente de Bongo) indiferente a ela (que diferença faz se existem um ou mais universos para alguém que nunca saiu nem de sua cidade natal, eu pergunto). Mas pode ser que eu deva alguma explicação aqui para você que, talvez, viva numa época, o num lugar, onde a ideia de haver mais de um universo por aí possa parecer um tanto absurda, ou assustadora. O que é perfeitamente normal, claro (embora não muito inteligente da sua parte, se me permite dizer). Muitos povos duvidavam (ou ainda duvidam) da existência até de um único universo (não sabendo nada sobre a existência de outros planetas).
E isto me lembra da conhecida história de Ilhacabum. A história é, mais ou menos, assim:
Ilhacabum é (ou era, dependendo dá época em que você esteja lendo isso) um planeta cujo a superfície era composta de um imenso arquipélago. Cada ilha e ilhota considerava-se o único país existente em tal planeta — uma vez que havia muitas léguas seguras de oceano entre eles... e eles eram muito estúpidos (ou muito covardes) para construir navios e vasculhar outras terras.
Aconteceu, porém, que um grupo de vendedores espaciais (daqueles que vendem tudo o que um planeta possa precisar, coisas como assinaturas de revistas de moda interplanetária, panquecas em conserva milenar, passagens só de ida para a beirada do universo, em fim, qualquer coisa eles acabam convencendo os habitantes de que eles precisam daquilo, através de elevadíssimas estratégias de marketing) passar por ali e oferecer embarcações a preços acessíveis a todas as classes sociais. Pode parecer estranho (provavelmente porque é mesmo), mas apesar deles duvidarem da existência de outras pessoas vivendo em Ilhacabum, receberam muito bem os vendedores espaciais, demonstraram muita simpatia por eles, e uma forte confiança cega.
O resultado disso foi que todos os 1.322 países, dispostos nas 573 ilhas e 749 ilhotas espalhadas ao longo do planeta, compraram frotas e mais frotas de todo tipo de embarcação. O valor total da venda foi dividido em suaves, simpáticas e muito amigáveis prestações. Menos de um ano depois a população de Ilhacabum foi extinta numa guerra que começou porque todos os países, após a descoberta da existência um do outro, teriam infligido uma ou outra lei planetária de algum deles. Um dos países, a título de curiosidade, tinha 1.334 feriados nacionais no ano, fora os domingos, (os anos em Ilhacabum possuíam 3.628 dias), 639 dias santos, e uma lei rigorosíssima que proibia comer laranjas com a boca (?) nas terças-feiras. A única lei que foi infligida por todos os 1.322 países era a que dizia ser terminantemente proibido existir vida em outra ilha que não fosse aquela que emitira o decreto, porque, coincidentemente, todos os 1.322 países possuíam uma lei como essa.
As últimas parcelas das vendas das embarcações nunca chegaram a ser devidamente pagas, evidentemente. Mas os vendedores espaciais, espertos como só eles, não ficaram no prejuízo, uma vez que venderam (à vista, em espécie) todos os armamentos utilizados na guerra que destruiu o planeta.
— Hum. Outros universos? Legal. — Falei.
...
...
...
— E a comida, vai demorar?
Como se respondesse a minha pergunta, o R2 apareceu trazendo duas bandejas de vidro. Os olhos deles piscaram com uma luz amarela e imediatamente abriu-se uma portinhola no chão da nave bem à minha frente, de onde surgiu uma mesinha. O R2 jogou nela uma bandeja com uma comida esquisita. Antes que eu pudesse perguntar o que era (o que, na realidade, eu não iria fazer, faminto com estava) ele falou:
— Aprecie, Mectá, pois isso é muito mais do que merece seu pobre paladar. São repolhos defumados com aroma das ilhas tropicais de Panatibéia com cogumelos gigantes, desfiados, cheios de encanto e prazer descomedido e feijões laranjas grelhados com o rico tempero da extinta cozinha de Quem-Deixou-o-Gás-Vazar?. Você terá bananas ocas, fritas e polvilhadas com caramelo sabor verão e muita, mas muita, curtição, como sobremesa.
Eu já tinha colocado metade do prato principal para dentro e dado a outra metade a Luna. Não sei se o jantar estava realmente saboroso ou foi apenas minha fome colossal. Só sei que depois de comer não conseguia pensar em nada muito concreto. Adormeci sobre a mesa e sonhei sendo perseguido por cogumelos gigantes armados com bananas ocas carameladas ao longo das praias tropicais de Panatibéia.
Quando acordei, com Bongo gritando meu nome, estávamos em Solavanco.