MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • 11

• CAPÍTULO 11 — A DESCIDA •

Foi uma longa decida até lá embaixo. Bongo não quis saber de usar sua preciosa nave abóbora para pegar meu querido Como Ser Um Grande Herói.

— Se não fosse a porcaria desse seu livro, — disse ele — eu estaria com a bola de gude carambola a essas horas... e bem longe desse maldito planeta.

— Ah, qual é, cara, nem tudo está perdido, deve haver outras iguais aquela por aí. Eu te ajudo a procurar.

— Você? — Ele engasgou — Você tem o senso de humor mais estranho que eu já vi. E olhe que eu sou um viajante...

— É sério, Gordo. Talvez eu não saiba muita coisa sobre nada além de heroísmo, mas conheço alguém... tenho um amigo, pra dizer a verdade, que sabe tudo sobre as Bolas de Gude Carambola. O Sábio das Bolhas de Sabão. Dizem que ele já viajou por todo Bolaranja, e até em outros planetas, e conhece os mistérios da vida, do tempo, do espaço e, veja só, das Bolas de Gude Carambolas. — Guardei pra mim mesmo o fato de que sobre as bolas de gude ele não falava com ninguém. Isso, poderíamos resolver mais tarde. Além do que, também não sabia se conseguiria o encontrar, nem tampouco se aquele convite para uma nova conversa (ao qual eu faltara) ainda estava de pé.

— Certo, Mectá, depois vemos isso, agora tá na hora minha novela — Disse ele, embarcando na nave, quase correndo.

— Hihihihi, eu sabia que seria uma péssima ideia trazer o Mectá conosco. — Disse o R2, o rato robô, sorrindo na porta da nave. Mas parou de rir e entrou quando eu apontei a Zitara para ele.

— Tá bom, Bongo, eu vou descer... só peço...bem, peço por favor, que me espere. Não vai me deixar morrer sozinho nesse deserto, não é? — Mas ele já não estava ouvindo. Só me restou torcer para que tudo que tínhamos passado juntos significasse alguma coisa para aquela lesma. Embora eu pouco soubesse sobre a natureza lesmosa das lesmas, esperava pelo menos que ele não decolasse enquanto estivesse entretido com a novela. Mas só tinha certeza de que não poderia me separar assim tão fácil do meu livro.

Já era noite completa e eu não estava nem na metade do caminho. O vento soprava frio como se o céu fosse a porta aberta de uma grande geladeira cósmica. Uma que, felizmente, tinha lâmpada que estava bem acesa — uma lua crescente amarelada começava a nascer no horizonte distante. Isso me consolou um pouco (e compensou a burrice de não ter trazido uma lanterna da nave do Bongo).

Não sei quantos metros ou quilômetros tive que andar pela única decida que parecia segura, nem quanto tempo exatamente isso levou. Só sei que quando cheguei finalmente próximo ao local onde julgava ter caído meu livro a lua já estava a meio caminho do centro do céu noturno. E por um bom tempo não havia som além do ruído que os meus pés faziam ao pisar nos cascalhos. Confesso que já não fazia ideia de onde o livro tinha caído de fato. A borda do abismo lá em cima era uma grotesca coisa gigante. Investiguei cada pedaço seco de chão, em busca do meu manual heroico, e não encontrei nada. A tarefa parecia simplesmente titânica para uma pessoa só. E o tempo todo o pensamento de ser deixado sozinho naquele deserto, vendo a abóbora do Bongo decolando em direção ao céu aberto, quem sabe para o próprio espaço sideral, parecia me puxar de volta montanha acima.

Já tinha decidido voltar enquanto talvez ainda houvesse tempo, quando ouvi um ruído que não era nem do vento nas rochas nem dos meus passos. Era uma espécie de grunhido. Talvez não fosse seguro segui-lo, mas o que era segurança para quem vivera aquelas últimas horas como eu? Em todo caso, tinha a Zitara comigo.

O ruído foi tornando-se mais e mais alto até eu chegar à borda de uma caverna no sopé da montanha. Vinha lá de dentro o eco de um rugido como o de um cão. Lembrei que ouvira um uivo quando estava lá em cima, pouco antes de tudo acontecer. Será que ela, a criatura que estava emitindo aquele ruído, tinha encontrado meu livro? — “Ah, você vai se vê comigo, seu...” — Não consegui pensar em mais nada, apontando a Zitara para a boca da caverna, gritei:

— Saia daí, seu covarde... seja o que for! Venha para luz e lute!

Os grunhidos subitamente pararam. Agora havia passos. Passos rápidos, ágeis, resolutos... DROGA! O que eu tinha acabo de fazer?

Naquelas poucas frações de segundos meu coração deve ter batido mais que em toda minha vida. Afastei-me da caverna, andando de costas, com a Zitara à frente, o mais rápido que pude — pensando o quão irônico seria morrer daquele jeito depois de tudo que tinha passado. A criatura bufava e se aproximava cada vez mais. Tive certeza de que estava realmente sem saída quando minha sandália enganchou numa pedra no chão, partindo uma das tiras de couro de porco. Foi aí que perdi o equilíbrio e caí de costas no chão seco do deserto, vendo a lua e uma miríade de estrelas num céu sem nuvens. Seria uma bela visão não houvesse a leve impressão de que aquela seria a minha última. Pois a criatura já saíra de dentro da caverna, um vulto peludo correndo veloz direto para mim.

Porém, em vez de sentir presas afiadas dilacerando minha carne, enquanto lutava para me pôr de pé, senti cócegas na sola do meu pé descalço, e uma coisa úmida nojenta que só podia ser o focinho da criatura. Ele estava me LAMBENDO. Tempos depois, cheguei à conclusão que esse deveria ser um momento de alívio, onde eu já deveria ter percebido que não ia morrer, mais uma vez. Mas tudo que consegui pensar naquela hora foi que fosse-aquilo-o-que-aquilo-fosse estava apenas me provando, antes de passar para as mordidas e os finalmentes. Arrastei-me no chão, pus-me de pé aos tropeços, apontei a Zitara na direção que acreditava estar a coisa, fechei os olhos, e apertei.

Nada.

Comecei a correr, ciente de que a criatura me perseguia, apontando a Zitara para trás, apertando freneticamente o botão.

E nada de novo.

O último tiro fora tão forte que talvez ela jamais disparasse novamente.

Fosse-aquilo-o-que-aquilo-fosse aproximou-se mais uma vez e finalmente notei o que era. Era um growlf, uma espécie de lobo de três caldas do deserto. Graças a Deus, era apenas um filhote. Uma bolinha peluda azulada sob a luz da lua que não parava de abanar a calda e me olhar com olhos brilhantes refletindo a luz das estrelas. Isso me fez perceber que tinha algo muito errado com ele, tinha apenas uma calda. Talvez por isso tivesse sido abandonado pela alcateia. O que, embora fosse um triste fato para ele, muito me aliviava. Não sei o que faria se me deparasse com um grupo daqueles bichos adultos. Daria um bom jantar romântico para dois.

Finalmente ele parou de me cheirar e lamber. Começou a voltar na direção da caverna de onde saíra, parando de vez em quando para olhar para trás com dois grandes olhos amarelados, suplicantes. Entendi que ele queria que eu o seguisse e resolvi confiar. Tanta coisa já tinha dado errado, uma a mais não faria muita diferença. Mas não entrei na caverna, sensatamente, esperei do lado de fora. A última vez que eu entrara numa tinha desmaiado e acordado no interior de uma nave cebola.

Mas o pequeno lobo de um rabo só não demorou em voltar trazendo algo em sua boca. Quando vi do que se tratava, não me contive:

— Ah, não!!!! NÃO! NÃO! NÃO!!!! INFINITOS NÃOS!!!! Ahhhhhh, seu demônio do deserto! O que você fez com ele?

O que aquela coisa maldita trazia na boca era meu amado livro vermelho. Todo estraçalhado. Aparentemente tinha se divertido bastante com ele. E o exibia como se fosse sua mais nova e original obra de arte.

Não sei bem o que fiz. Acho que perdi o controle. Arranquei o livro da boca daquele monstro e comecei a chorar. Ele não parecia entender muito bem o que estava acontecendo. Acho que jamais tinha visto uma pessoa chorar naquele lugar deserto e maldito. De qualquer forma, como ele não parecia entender muito bem o que estava acontecendo, continuou olhando para mim com os olhos suplicantes, como se pedisse para eu não ficar tão chateado.

Não sei como explicar o que estava sentindo. Era uma mistura de tristeza, angústia, raiva e dor. Era como se meu coração tivesse sido arrancado e chutado para longe. Era como se a única coisa que me mantinha são nos últimos dias tivesse sido destruída.

Tentei me acalmar. Tentei me convencer de que aquilo não era tão importante assim. Mas não consegui. A dor era muito grande.

— Eu. Vou. Te. MATAR. Desgraçado. — Eu disse.

Tentei mais uma vez atirar com a Zitara, mas nada. Então resolvi usar aquela estranha adaga da maneira tradicional mesmo. Gritei com ela erguida e sai perseguindo aquele lobinho destruidor de sonhos. Devo ter dado umas vinte voltas atrás dele, mas ele, sempre correndo em círculos, parecia estar se divertindo, andando saltitando, sem se cansar, enquanto criava mais uma obra de arte. Até imagino que título ele daria para esta: O Grande Mecstar Sem Ar, Cansado Até Pra Falar.

— Vo... cê... me... paga... se... seu... mon... monstr... a... aind... ainda... te... pego... — Forcei-me a falar antes de me jogar no chão, chorando, derrotado por aquela coisa azul felpuda.

Eu estava cansada de tudo aquilo. Cansado de correr em círculos atrás de um lobinho.

Cansado de miltopéias e de naves leguminosas.

Cansado de desertos e abismos.

Cansado de toda a maldita galáxia.

Depois de chorar por um tempo — me orgulho em dizer — não muito longo. Fiquei respirando fundo, olhando para o céu e as infinitas estrelas. Mas tudo que eu conseguia pensar era em como seria bom um bom copo d’água gelada. Então fechei os olhos e pensei no que seria daquilo que eu me atrevia a chamar de “minha vida” agora. Aquela coisa que até algum tempo não tinha sentido algum. Mas aquele livro, agora destruído, mudara tudo. Dera-me um propósito, um sonho. O que seria de mim agora sem aquela sabedoria heroica? Seria capaz de seguir em frente?

Senti uma coisa gosmenta e pegajosa deslizar por minha bochecha até a boca. Foi a gota d’água. Depois do que tinha feito, o bicho ainda tinha coragem de vim me lamber com aquela língua sabe-se-lá-onde-ele-passava-aquilo.

Levantei-me em chamas, decidido a faze-lo pagar, nem que gastasse minhas últimas energias e ficasse incapacitado de subir a montanha novamente. Mas quando olhei para o growlf ele não fugiu. Estava apenas sentado me olhando. Aquelas duas bolas amarelas, muito parecidas com bolas de gude, me encarando enquanto balançando a única calda que tinha — o motivo pelo qual provavelmente fizera dele tão solitário quanto eu.

Ele não tinha medo de mim. Aliás, não parecia se quer saber o que era raiva, ou nenhum sentimento parecido...

Droga.

De súbito cheguei a uma clara conclusão. Ele era só um filhote perdido e era mais herói do que eu jamais seria um dia — mesmo com todas as ideias e ensinamentos do Sr. Marmelo Sabequesabe. Lá estava eu, cheio de autopiedade e desejo de vingança por o quê mesmo?

Se o leitor aprecia a companhia de animais, provavelmente já entendeu o que estou tentando falar. O fato é que eu não poderia machuca-lo.

Sentei e fiquei olhando para ele. Olhando sua grande calda felpuda balançando em forma de S. Ele então se aproximou e sentou-se ao meu lado. Parecia estar interessado em tudo que eu fazia, atento até nas menores expressões do meu rosto. Fiquei ali (olhando o céu noturno e a imensidão do deserto com o growlfizinho com a cabeça encostada na minha perna) pensando que finalmente, depois de muitos anos, eu tinha alguém que talvez pudesse chamar realmente de amigo. E então, eu já não estava preocupado em fazer nenhum ato heroico, nem se amanhã seria famoso e desejado por todas as garotas ou não. Eu não tinha nada, e não era ninguém aos olhos de ninguém — nada além de uma alma vagabunda qualquer num planeta qualquer numa parte qualquer de uma galáxia ainda mais qualquer.

Mas tinha companhia, oras. Isso bastava.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 28/09/2022
Reeditado em 28/10/2022
Código do texto: T7616529
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