EU E CLAUDE MONET
— 2022. Eu estava sentada na velha poltrona marrom de meu refúgio e devorava “Ninfeias negras” de Michel Bussi. Trezentas e quarenta e seis páginas de suspense e, misturadas à ficção, uma overdose de Claude Monet.
—A ficção era sobre ele então, o famoso pintor impressionista francês?
—Nem de longe. Mas o cenário tinha tudo a ver.
—Bem, na veneziana que ficava atrás de mim, o sol matinal entrava morno como é comum nos dias de inverno. Estávamos no final de junho. Fiquei pensando que, embora aqui fosse inverno, na França era verão e, talvez, por isso, as ninfeias do laguinho de Monet estivessem já floridas.
—De repente me vi descendo a Rue Claude Monet de Giverny, uma cidadezinha a 75 Km de Paris na Alta Normandia francesa. A emoção tomando conta de mim a cada passo, enquanto avistava o córrego Rú, o moinho de Chenneviéres, a igreja de Saintee- Radegonde... Aliás, Giverny possui apenas duas ruas maiores e algumas vielas cruzando por elas. A Casa Rosada de Claude Monet fica bem no meio delas. Eu a avistei também com suas janelas e portas pintadas de verde, as escadas de entrada também pintadas de verde e trepadeiras se entrelaçando ao longo de toda a frente. E avistei aqueles imensos jardins projetados por Monet para florir o ano todo. Quanto a Claude Monet, o reencontrei na ponte japonesa sobre o seu laguinho de ninfeias.
—Reencontrou? Mas...
— Não me olhe assim com esse ar de que estou doida. Não estou. Mas entendo seu espanto e sei que deve estar se perguntando quando o vi pela primeira vez.
—Se houve essa vez, quando foi?
—Na verdade é tudo muito simples. Até demais. Eu conheci Claude Monet por causa de “Impressão, nascer do sol” em 2009, ou 2010. Não me recordo bem.
— “Impressão, nascer do sol”?
—Sim. A tela que originou a corrente do Impressionismo. Foi quando eu estava cursando o sexto período de Pedagogia pelo sistema UAB (Universidade aberta do Brasil) através da Universidade de Juiz de Fora, a terceira melhor Universidade do País. Minha professora Juliana nos apresentou. A tela “Impressão, nascer do Sol” foi pintada em 1872 em Le Havre, porto francês e hoje está exposta no Museu Marmottan, em Paris.
—Mas o que tem de interessante nessa tela para originar assim um movimento tão importante como o Impressionismo?
—Bom... Tudo certamente. Além da cerrada névoa sobre o estaleiro, os barcos e as chaminés no fundo da composição, tem, principalmente, as pinceladas de tinta sobrepostas sem grandes misturas, criando figuras sem contornos nítidos e com sombras luminosas, um contraste entre cor e luz, baseado, ou melhor, determinado pela lei das cores complementares, cujos tons variam de acordo com a luz solar.
— Sabia que o impressionismo é uma técnica que consiste em justapor cores diferentes diretamente sobre a tela e não na paleta, sugerindo uma nova cor aos olhos de quem vê?
— Verdade?
—Sim. O interessante é que de perto a pintura é como se fosse apenas borrões, mas vista de longe a imagem se torna nítida.
— A tal impressão... Interessante.
—Muito. Ah! Eu me esquecia de dizer: esse tipo de pintura impressionista era criada principalmente ao ar livre e no local a ser pintado, justamente para enfatizar a luz e incorporar o movimento. Há quem diga que Monet desenvolveu cataratas de tanto pintar ao ar livre. Mas mesmo não enxergando quase nada nunca parou de pintar.
—É mesmo? Bem, então foi essa tela de Monet “Impressão, nascer do sol” que causou uma revolução na arte da pintura.
—Foi. Tanto que o termo Impressionismo surgiu depois da crítica feita ao quadro pelo pintor e escritor Louis Leroy. Aliás, o nome da tela "Impressão, nascer do Sol" foi criado por Louis Leroy.
—Foi? Juro que pensava ter sido o próprio Monet.
—Foi não. Louis Leroy ficou impressionado porque a tela retratava apenas impressões de alguma cena e não a realidade. Inclusive ele dissera “se estou impressionado é porque há lá uma impressão. E que liberdade, que suavidade de pincel!” Ele dissera também que “um papel de parede é mais elaborado que esta cena marinha.”
—Esse último comentário me pareceu uma crítica.
—E era. Certa crítica pejorativa. Mas o importante é que a impressão ficou e muitos artistas como Pierre-August Renoir, Gustave Caillebotte, Camille Pissaro, entre outros, se aproveitaram dessa técnica considerada a mais bela.
—E quanto a sua impressão?
— Da tela?
—Sim.
—Bem, confesso que foi bem forte. Mais do que pensei. Gosto dessas coisas de contornos imprecisos. A impressão da realidade. Não necessariamente a realidade. Gosto dessas coisas que só podem ser enxergadas nitidamente de longe. Há muito mais para refletir. Para ser desvendado. É tipo uma troca de expressões, sensações, sentimentos.
—E quanto a Monet?
— Monet... Então. Também fiquei impressionada com ele. Os cabelos quase raspados, a barba enorme que ia até o peito. Às vezes ele usava um chapéu com o topo arredondado.
—Mas não foi só isso que te impressionou, não é?
—Não. Claro que não, embora fosse uma imagem bem original. Fiquei impressionada com Monet por causa da tela “Impressão, nascer do sol”, quando minha professora Juliana nos apresentou e ficamos vários dias discutindo nos fóruns, as impressões e técnicas daquela tela com pinceladas azuladas e alaranjadas. Era algo meio que borrado. Mas se a gente se afastasse um pouco dava para ver com mais nitidez como já expliquei.
—Naquele tempo conheci também algumas das ninfeias de Monet. Todas pintadas nesse estilo impressionista. Ficou nisso nosso primeiro encontro.
—E depois de tanto tempo você o reencontrou sobre a ponte japonesa?
—Foi. Aah! Pare com essa mania de revirar os olhos como se não acreditasse. Bem, mas foi por causa de “Ninfeias negras” de Michel Bussi que eu soube que Claude Monet se mudara em abril de 1883 para o vilarejo de Giverny porque se encantara com os campos verdes, os vinhedos. Era tudo que ele precisava de inspiração para suas pinturas.
—Eu fiquei impressionada com sua determinação. Ser capaz de deixar tudo para ir morar em outro lugar e, sobretudo, desviar o curso de um córrego só para criar um lago em seu jardim para cultivar ninfeias.
—Não acredito. Ele fez isso? Bem já me disseram que artistas são todos malucos.
—Não são malucos, mas originais. Bem, ele desviou o tal córrego Rú, um braço do rio Epte. Com a autorização da Prefeitura. Claro, para desespero de seus vizinhos que temiam que o córrego fosse intoxicado pelas plantas exóticas.
—Monet tinha dois jardins pelo que sei.
— Tinha. O primeiro, o Clos Normand, que possuía um hectare de extensão e já existia quando comprou a casa Rosada. Mas ele recompôs tudo a seu modo, com flores de toda estação misturadas com plantas que ficam verdes o ano todo. Esse jardim se estendia até a estrada de ferro. O segundo jardim era menor e ficava além dos trilhos. Ele comprou o terreno depois e criou o d’Eau, um jardim inspirado no Japão. Foi nesse jardim que ele criou com a água do córrego Rú, o lago das ninfeias importadas do Japão e, sobre o lago, a ponte de inspiração japonesa.
— Uau. Muita criatividade.
— Sim. Ele praticamente criou o cenário para suas telas. Esse jardim, o d’Eau, Monet pintou centenas de vezes. Alguém um dia até levantou uma questão: “Monet cultivava o jardim que queria pintar, ou pintava o jardim que queria cultivar?” Não me lembro direito onde li isso, mas o fato é que arte e realidade se confundiam ali nos jardins de Monet.
—E então você o reencontrou agora em 2022, sobre a ponte japonesa do seu jardim?
—Sim. Reencontrei. Ele estava ali pintando, como era de se esperar, um cigarro ou charuto, não sei, no canto da boca. Ele se mexia o tempo todo, olhando para o lago, para o quadro e para a palheta. Os salgueiros balançando ao vento e roçando seus galhos na água. Sim, Monet pintava mais um quadro com as plácidas ninfeias, uma das duzentas e cinquenta telas a óleo que já havia pintado com essas flores.
— Duzentos e cinquenta?
—Sim. E cada uma com uma impressão diferente, pode crer.
— Mas será que ele não se cansava? Me pareceu muito repetitivo.
—Talvez. Eu mesma não gosto de repetir nada. Não tenho paciência. Mas Monet, a cada repetição tentava acrescentar um novo efeito, buscando perfeição entre perspectivas, luz e cores para suas protagonistas, as ninfeias. Sabia que de início ele não teve a intenção de transformar as ninfeias em tema para suas obras? Mas um dia ele disse: “Uma paisagem não te conquista em um dia. E aí, de repente, tive a revelação da magia da minha lagoa e peguei a paleta. Desde este tempo, não tive mais outro modelo”.
—Onde estão todas estas telas?
— Estão expostas em museus por todo o mundo e também fazem parte de coleções particulares. Você sabia que as famosas ninfeias de Monet, além de admiradas, são verdadeiros tesouros? Só para ter uma noção, em 2008, “O Lago das Ninfeias “, quadro desta famosa série, foi arrematado por 59 milhões de euros em um leilão da Sotheby’s de Londres.
—Uau. Que isso?
— Pois é. Pois, fique sabendo também que Monet, incentivado por Georges Clemenceau, iniciou em 1914 uma série de telas decorativas também com o tema Nenúfares ou ninfeias. São oito pinturas enormes expostas de forma permanente no Museu Orangerie em Paris. Elas cobrem as paredes de duas salas ovais banhadas por luz natural. O conjunto forma uma área de cerca de 200 m2. Monet levou doze anos para pintar essa série. Inclusive já quase não enxergava em razão as cataratas.
— Que projeto desafiador ei?
—Sim. E tudo isso simplesmente para ser doado ao governo francês.
—Doado? Doze anos fazendo pinturas de graça? Mas por que?
—Em agradecimento aos sacrifícios feitos pela pátria francesa durante a guerra.
—Nossa Monet foi incrível.
—E como foi.
—Mas então o que sentiu quando avistou Monet na ponte do lago?
—Não dá para explicar, confesso. Fiquei em silêncio na cabeceira da ponte de um verde vivo e coberta por glicínias brancas porque era verão. Não queria quebrar aquele encanto. Apenas fiquei olhando as ninfeias na superfície do algo com seus tons quase impossíveis de captar. O encanto furta cor no espelho da água. Claro. Monet sabia como captar tudo isso e o fez duzentos e cinquenta vezes como já falei. Quanto a mim, restava o silêncio. Mas um dia, em 2013 eu tentei fazer um poema falando das ninfeias ou nenúfares. Embora eu tenha me inspirado nos nenúfares de Monet, eu os dediquei aos nenúfares da fonte da praça Abel Ferreira em minha cidade. Hoje não existem mais.
—E seu poema?
— Meu poema sim. E faz parte do volume “Eu e minha poesia”
NENÚFARES
As águas do lago parecem ainda dormir
sob a perfeição lumínica dos nenúfares;
em seus róseos ou salmões esquiços a fulgir
na estática luz matinal a filtrar doces ares.
Que pensava Monet ao correr o pincel
pela vaga tela, anunciando as flores abertas
a transpirar ainda gotas transparentes, qual gel
na porcelana úmida das pétalas inquietas?
Pensava na paixão, talvez... Calma e pungente;
a estremecer aos remoinhos do vento sutil
depois da noite sobre os lençóis ardentes...
Oscila agora em ondas, leve e quase febril.
Sentimentos úmidos passeiam pelas cores,
pelos braços ternos, côncavos e quase bruscos;
pelos movimentos sem tempo... As tímidas flores...
resguardam no seio a magia, à hora do lusco-fusco.
—Nossa. Perfeito. Você tem talento poético.
—Tento ter. Mas deixemos meu poema de lado e voltemos a Monet na ponte do lago. Era por volta de seis da manhã quando o reencontrei. Ele sempre ia ao jardim a essa hora. Dizia que é nas primeiras horas que a vida é mais bonita, e que o azul da noite se transforma em rosa. De repente Monet me vê. Seu pincel fica no ar um instante. Depois calmamente termina o quadro. As pinceladas dando um efeito abstrato à luz do sol na superfície do lago. Os salgueiros em tons escuros verde azulados quase roçando o lago e seus reflexos na água com pinceladas verticais de cores claras. Pareceu-me ver também, pequenos e delicados nenúfares aqui e ali através de pinceladas curtas de tinta branca espessa com salpicos de rosa.
—Depois Monet se levanta carregando o cavalete e a tela ainda fresca. Calados, atravessamos a ponte e passeamos pelo jardim d’Eau. Vou te contar. Fiquei de queixo caído. O jardim reforçava o ar japonês com a ponte meia lua sobre o lago, embora pintada de verde e não vermelha como no Japão. As ninfeias brancas, amarelas e rosas, o bosque de bambus à margem do regato, os chorões, os salgueiros. Aliás, o jardim de Monet em si mesmo era o impressionismo puro.
—Verdade?
—Sim. Imagine o lago refletindo em suas águas, as plantas exuberantes ao seu redor, os raios do sol. Mas o mais bonito é que os reflexos mudavam conforme a luz de cada hora.
— Imagino que Monet ficava maluco querendo pintar todas essas nuances.
— Ficava. Ele transfigurava o mundo no lago, naquele elemento liquido. Não é sem razão que pintou a ponte seis vezes e as ninfeias duzentos e cinquenta veze em diferentes períodos do dia, sob diversas condições de iluminação.
— Monet foi um privilegiado.
—Foi. Talvez por isso ele tenha dito certa vez: “Meu único mérito está em ter pintado diretamente na frente da natureza, buscando tornar minhas impressões sobre os efeitos mais fugazes.” Sabe ? Fiquei tentada a ficar ali para sempre.
—Não me admira que Monet vivesse praticamente à volta desse lago e seus nenúfares.
—Pois então. Só depois de passear pelo D’Eu que atravessamos a estrada de ferro e através de uma passagem subterrânea, entramos no jardim Clos Normand. Fiquei encantada com as cerejeiras, damasqueiros e a variedade de flores. As tulipas amarelas, vermelhas, lilases... As margaridas. Os miosótis. Os narcisos. As peônias. Os crisântemos. E outras tantas.
— Era o Éden então.
—Se era... Bem, depois Monet me levou pelo caminho da entrada principal com seus arcos revestidos de rosas trepadeiras. E as alamedas revestidas de capuchinhas? Uma fileira alaranjada que me deixou impressionada. Só então entramos na casa pela escada principal pintada de verde. Ele me levou aos seus ateliês, entre eles, a Sala-Ateliê, onde trabalhou até a construção de um outro no jardim. Esse ateliê fazia às vezes de sala de estar e foi nela que tomei chá com Monet, sentada na poltrona floral que mais parecia um divã, enquanto observava a parede toda coberta de obras que representavam períodos importantes da sua vida. Depois entramos na Pequena Sala Azul, usada como sala de leitura. Na verdade, essa sala é pintada de branco e todos os contornos é quem são azuis. Portais, detalhes nas paredes, rodatetos. Exceto o piso que é de ladrilhos com motivos desenhados numa cor que me pareceu marrom conhaque. Em seguida Monet me levou também ao seu quarto e me encantei com a escrivaninha acaju, estilo Luís XV, do século XVIII e os quadros de artistas como Eugène Boudin, Renoir e Caillebotte, entre outros. Inclusive, foi Eugène Boudin que ensinou técnicas de pintura ao ar livre a Monet, iniciando-o no movimento impressionista. Mas o mais incrível desse quarto foi as duas grandes janelas que se abriam para o belíssimo jardim Clos Normand. Era de onde Monet comtemplava as flores de seu jardim que tanta inspiração lhe deram.
—Fico imaginando acordar todas as manhãs e ver esse paraíso diante da janela.
—Verdade. Um dia ele disse “Talvez eu deva às flores o fato de ter sido pintor “.
—E depois? Os outros cômodos da casa...
—Sim, passamos pelo quarto de Blanche, enteada de Monet, todo revestido com papel de parede floral nas cores creme e rosa; o quarto de Alice sua esposa, que tinha anexo uma sala de costura.
—Ela dormia separada de Monet?
—Não sei explicar essa questão. O que sei é que Monet instalou Alice e seus oito filhos em sua casa antes mesmo da sua primeira esposa Camille morrer. Alice, na verdade cuidava de Camille doente. Camille morreu em 1879. Alice ficou viúva em 1891 e se casou com Monet em 1892.
—Que história ei? Mas e sobre a casa...
—Ah! Tá. Descemos para a sala de jantar que tinha duas portas grandes que davam para uma varanda de onde se podia admirar o jardim. E você nem imagina como era radiante e reluzente essa parte da casa. Paredes, cortinas e móveis, incluindo os armários e a mesa com doze lugares... Tudo na cor amarela. Vários tons. Inclusive, a louça de faiança que Monet usava em ocasiões especiais. A diferença ficava por conta dos contornos azuis nas bordas.
—Louça de faiança?
— Sim. Nada mais é que louça de argila ou de pó de pedra, recoberta com um verniz impermeável e opaco e ricamente decorada. Ah! E tinha também um jogo de porcelana bordado com motivos japoneses que usavam no dia a dia. Mas esse era bordado só de azul. Todos os dois jogos foram desenhados por Monet. E falando em motivos japoneses, as paredes eram todas decoradas com gravuras de artistas japoneses.
—Pelo visto Monet nutria certa paixão pela cultura japonesa.
— Sim. Sabia que essa paixão fez com ele adquirisse uma coleção de duzentas gravuras dos séculos XVIII e XIX? Era obras de Utamaro, Hokusai e Hiroshige.
—E a cozinha dessa casa. Você viu?
—Vi. Diferente da sala de jantar, a cozinha ostentava a cor azul e branco nos detalhes dos armários e ladrilhos de cerâmica azuis de Rouen nas paredes e até na lareira. O destaque ficava por conta da coleção de utensílios de cobre pendurados nas paredes de um canto a outro ou em cima de bancadas e prateleiras. Tinha também uma grande pia de pedra e um imenso e imponente fogão à lenha ao lado da porta de acesso ao jardim. Sabia que quase tudo o que ia à mesa dos Monets era produzido ali mesmo, inclusive ovos, galinhas, patos e peixes pescados nos rios e riachos da redondeza?
—Gosto dessa ideia de a gente produzir o que come.
— Então. Eu que o diga, pois tenho inventado de plantar cenoura, beterraba, couve, alface, nabo, rúcula em um pequeno espaço em casa.
—Mas voltemos a Monet?
—Está gostando ei? E pensar que eu reencontrei Monet por culpa de Michel Bussi.
— O autor de “Ninfeias negras”? Só não entendi porque.
—Eu explico. A trama do livro se trata de um romance policial de ficção mais premiado da França. Foram cinco prêmios literários. Conta uma história bem enigmática e envolvente de assassinato e mistério às margens do córrego Rú, cujas protagonistas são três mulheres. Uma menina que sonha ser pintora, uma professora presa a um casamento sem amor e uma idosa que fica observando o mundo da janela de um moinho.
—Tá. Mas onde Claude Monet entra nessa história?
— Não adivinhou? É que a trama acontece em Giverny, a cidadezinha onde Monet viveu. Inclusive foi Monet que a imortalizou. E vou te contar: a trama inteira respira Monet. Respira arte. Respira impressionismo. Respira Giverny.
—Deixa-me entender então: a trama lubridiou o leitor, confundindo-o ou prendendo-o entre o imaginário e real.
—Talvez. Uma boa estratégia eu diria. O que sei é que Michel jogou tantas informações misturadas aos acontecimentos de uma forma tão intricada que era impossível sequer tentar imaginar o final. Garanto que “Ninfeias negras” custou a sair de minha mente durante semanas.
—Por isso não resistiu e foi passear por Giverny?
—Isso mesmo.
—Não por causa do crime no córrego Rú, imagino.
—Claro que não. Isso é coisa para o inspetor Laurenç Sérénac. Fui mesmo na esperança de encontrar Monet. Mas confesso que quando passei pelo regato quase pude ver a água clara se tingir de rosa em degradê, como se alguém ali tivesse lavado um pincel. Mas era o sangue do médico morto. O tal Jérome Morval. E claro, tive também a impressão de ver um cachorro pastor-alemão e uma velha se apoiando numa bengala caminhando entre os choupos.
—Ah! Não. Ai já é imaginação, ou impressão, demais para meu gosto.
— De qualquer forma, para minha alegria, mais adiante, em cima da ponte do lago, estava Monet pintando. Era seis da manhã. Até já contei isso antes. Quando me viu, o pincel ficou planando no ar como as ninfeias na superfície do lago. Assim que o pincel tocou a tela de novo, algumas pinceladas iluminaram “Os nenúfares - manhã clara com salgueiros”. Então ele se levantou segurando o cavalete e a tela ainda fresca e atravessou a ponte.
— E você?
— Eu? Bem... Depois de segui-lo por todo aquele paraíso como se fizesse parte de suas telas, fechei o “Ninfeias negras” na página trezentos e quarenta e seis. Claro, isso foi depois que os olhos de ninfeia de Stéphanie atravessaram o espelho. Bem vivos apesar de seus oitenta e quatro anos. Mas não explico mais nada. Sugiro que leia “Ninfeias negras”.
Mais um conto da série "Eu e eles". Gosto de escrever esses contos em que misturo realidade e fantasia. Todos os dados sobre Monet são verdadeiros, inclusive minha relação com ele. Só coloquei uma pitada de fantasia.