MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • 10

• CAPÍTULO 10 — ESTILHAÇOS •

— Ah, quase esqueço. — Falou Bongo, prosaicamente, entregando-me a Zitara — Faça um favor a si mesmo e não a perca novamente. — Ele parecia ter a absoluta certeza de que eu a perderia tão logo surgisse uma oportunidade. Mas eu fiquei tão contente em rever minha amiga que nem consegui dar a resposta que ele merecia.

A nave parou finalmente e desembarcamos para dar de cara com o tatu humanóide mais estranho que eu já tinha visto em toda minha vida. Era corcunda, velho (embora fosse ainda muito ágil), de olhos astutos, e uma catinga de cebola que parecia que nunca o deixaria — mesmo se ele passasse uma semana inteira no banheiro de Bongo fazendo uso de todos os sabores dos seus sabonetes, xampus e essências aromáticas.

— Ponha tudo no chão e levante as mãos. — Disse Bongo, o Gordo, apontando com os dois braços superiores sua pistola ridiculamente colorida para o seu arqui-inimigo.

Estávamos na beira de outro abismo. Isso mesmo, meu amigo, outro maldito abismo. Enorme, embora não tão grande quanto o da Morte Que Grita, aliás. Tudo indicava que ainda estávamos no deserto. E o último Sol de Bolaranja estava se pondo, pintando de vermelho tudo que ainda podia ser alcançado pela luz.

Cabe aqui falarmos um pouco desse aspecto peculiar do meu querido planeta natal, se não se importa. Cada um dos três sóis de Bolaranja se punha em um horário diferente — assim como nasciam, evidentemente. O que quer dizer que tínhamos três alvoradas e três ocasos diferentes em cada dia quente. O nome de cada um deles era correspondente à cor que eles nasciam (e morriam). O primeiro era rosa, se chamava Rosassol. O segundo, Soldouro, obviamente dourado como ouro, e o terceiro, que agora nos cobria, era o Mar Vermelho. Possa ser que você ache um tanto absurdo, um planeta com uma quantidade tão grande de sóis — em especial no caso do seu planeta possua apenas um. Pode ser que esteja se perguntando o que a Ciência diria sobre isso, ou até jurando que é algo fisicamente impossível. Então me cabe o papel de tentar esclarecer um pouco suas dúvidas. Aqui vamos nós:

Acerca do fato de ser um tanto absurdo um único planeta ter mais de um sol:

Bem, se o estimado leitor pensa assim, provavelmente não conhece o minúsculo planeta chamado Infanto Primeiro Meretéio Arranhares, situado na longínqua, estranha e complexa galáxia de Lud, doravante chamado apenas de Infanto Primeiro. Esse planeta possui, desde a sua criação, exatos 365 sóis. Cada dia sendo governado por um sol diferente. É curioso notar que apesar de ter sóis para dar, vender e emprestar, Infanto Primeiro não possui nenhuma lua. Nem saberia muito o que fazer com uma, pois, não há noites em Infanto Primeiro, o dia termina com o pôr de um sol e o nascer do outro. Por alguns breves minutos, um dos 365 sóis do planeta passa o bastão para o seu sucessor, e isso demarca o fim de um dia e o começo de outro. O fato de não haver noites em Infanto Primeiro fez com que seus habitantes desenvolvessem a excêntrica habilidade de não dormir. O que os deixa muito mais produtivos... e estonteantemente mais estressados. De modo que a economia de Infanto Primeiro cresce freneticamente numa progressão geométrica diretamente proporcional ao número de suicídios. A maioria dos infanto primerianos é composta de capacitados programadores e outros profissionais da área de informática — e não se tem registro de que qualquer um destes profissionais deles já tenha visto qualquer um de seus 365 sóis alguma vez na vida.

Cara um dos 365 sóis de Infanto Primeiro possui um nome próprio, e sete deles são reverenciados como os mais velhos de todos e, portanto, são pais e mães das demais estrelas e sóis. São eles: Coelho, Touro, Galo, Garça, Tartaruga, Serpente e o incompreendido Morcego. Todos eles, exceto o Morcego, são festejados em seus dias que ocorrem, mais ou menos, a cada cinquenta e dois dias, cada um com seu tema específico e todos os habitantes do planeta são obrigados a se vestir de acordo com o tema.

Sim, eu sei que muitos, e você, caro leitor, provavelmente ainda estão alegando que toda essa história sobre Infanto Primeiro é fisicamente impossível. Esta questão, e acredito que o estimado leitor concordará, é bem mais fácil de esclarecer. Afinal, é um fato conhecido por muitos que coisas fisicamente impossíveis — às vezes chamadas de “milagres”, ás vezes de “muito-mas-MUITO-azar”, outras vezes de “internet” — acontecem diariamente, com certa frequência, em quase todos os pontos do Universo. Uma corrente da Ciência pós-moderna denominada WTF (que são iniciais do respeitado pesquisador pioneiro nesta área, o Sr. Wilson Tomás Ferradoh) já por muitos anos têm estudado esses estranhos acontecimentos. As pesquisas da WTF, embora já tenham há anos explicado coisas como a real possibilidade física da existência de planetas com até 365 sóis ou mais, nunca avançaram muito no que diz respeito a explicar a quantidade impossível de pessoas que cabem num transporte coletivo de uma cidade subdesenvolvida, nem como elas fazem para pagar as contas com o injusto salário que recebem no fim do mês.

O vilão que eu chamava de Reclamão tinha em seu rosto de tatu bola uma expressão enigmática. Ainda vestia o que sobrara de seu manto, mas desta vez o capuz estava repuxado atrás da cabeça. Ele me encarou.

— Ora, ora, vejam só... não é que você sobreviveu, no fim das contas. — Seu olhar, se pudesse, teria me esfolado vivo. Foi aí que tive certeza que fora ele quem me empurrara abismo da Morte Que Grita abaixo. E neste mesmo instante, compreendi outra coisa também:

— Agora entendo porque você se esconde, grande Reclamão. Se houvesse concursos de feiura entre todas as galáxias, você podia deixar a vida do crime e se dedicar apenas a vencê-los. Garanto que seria famoso, e não ia precisar nunca mais ver a cara de lesma Bongo.

— Cala a boca, Mectá! — Rugiu Bongo, o Gordo — Você também não tem cara que conseguiu chegar a tempo na fila da beleza não. Hauhahahahahaha! Eu FIZ uma piada. — Esbravejou, batendo na barriga gelatinosa com as duas mãos que não estavam segurando a pistola colorida.

— Não calo nada! Quero saber onde está meu livro! — Exclamei, como uma criancinha fazendo birra.

— Ahhhhhh — Rugiu o tatu encurralado entre o abismo e a pistola — Então esse desperdício de papel é seu? E por que eu estou surpreso? Apenas um idiota de elevado grau leria um lixo como esse! Aliás, tenho certeza que a criatura desprezível, que teve o desprazer de redigir tão pavorosas linhas, tenha feito isso pensando em seres como você. Vagabundos inúteis que rastejam em alguma parte esquecida do cosmos... Mas pode ficar com ele, se quer tanto, estaria o fazendo um bem muito grande para o meu gosto, caso ficasse com ele... e um bem ainda maior ao Universo caso o destruísse. Sabe como é... fazer o bem nunca foi minha praia...

Eu começava a sentir um grande alívio até que ele concluiu:

— Mas você terá de busca-lo.

Re-Claw Mão retirou meu manual heroico de algum bolso interno de seu manto e o jogou prosaicamente para o abismo.

— Não! — Gritei.

— Pois bem, chega de palhaçada, Re-Claw — Disse Bongo. — Vai logo passando a Bola de Gude Carambola que eu quero assistir AINDA HOJE o último capítulo de Desesperos da Paixão.

Apesar de suas palavras, Bongo parecia calmo, mostrando que não dava a mínima para o livro que mudara minha vida. Eu, por outro lado, estava inflamado. Além do que tinha feito, havia aquela expressão nos olhos amarelos do vilão, como se estivesse escrito nas infinitas estrelas que ele levaria a melhor. Sim, meus amigos, ele TINHA que pagar.

Eu sentia o clímax da aventura correndo em minhas veias em raiva pulsante. O céu vermelho pintava meu rosto e a coisa verde lesmosa do Bongo. A nave abóbora agora parecia mais um caqui. Uma comprida sombra em forma do vilão esticava-se partindo dos pés dele até os nossos.

Re-Claw deu um minúsculo passo para trás. Pensei que apenas eu tinha percebido, mas...

— Não pense que eu estou brincando — Disse Bongo — Aliás, não seria a primeira vez.

O vilão pôs a mão esquerda dentro do manto. Ao fazê-lo, algo que podia ser um coiote do deserto uivou de dor. Tive a impressão de que o uivo vinha do abismo onde meu querido manual heroico tinha sido jogado. Senti meu sangue ferver, borbulhar. E foi aí que decidi definitivamente usar a Zitara. Se ele ia puxar uma arma e nos atingir, não o deixaria sair ileso. Faria estrago. Sabia do que aquela arma era capaz. Mas, para nossa total surpresa, o que ele puxou da parte interior de seu manto sujo de poeira vermelha foi a Bola de Gude Carambola.

Tudo o que aconteceu a seguir provavelmente ocorreu em frações de segundos, mas, para mim, pareceu horas.

Re-Claw Mão sorria.

— Agora! — Gritou ele sobre seu ombro coberto pelo tecido do manto — certamente havia um comunicador por baixo da manga.

Então a nave cebola surgiu atrás dele, lançando sombras, embaçando a nossa visão. A porta da nave se abriu e uma ponte de embarque foi lançada até a terra. A nave cebola estava muito suja e amassada, mas parecia funcionar perfeitamente. Re-Claw Mão sorria, sorria e sorria. Bongo não parecia que iria fazer nada além de ficar fazendo aquela cara de idiota, com medo de atingir e danificar a Bola de Gude Carambola. Mas um herói não perde uma oportunidade quando ela surge, e eu não ia deixar aquela escapar.

Atirei.

Toda minha raiva ali, sendo despejada pelo raio da Zitara (fosse do que fosse feito ele). A fúria vermelha não vinha só do próprio Reclamão, nem do que ele fizera ao meu livro, mas de tudo o que eu tinha passado nas últimas horas até ali. A destruição da minha casa. A luta contra as miltopéias, a queda na.... hum, no esterco de búfalo tricórnio, a condenação à morte. Tudo girava em minha mente gerando fogo. E o fogo era lançado pela Zitara.

Re-Claw Mão defendeu-se com a única coisa que tinha em mãos... isso mesmo, a Bola de Gude Carambola. Ele a lançou três metros a frente, antes do raio o tocar. Numa fração de segundos a bola de gude carambola sugou toda energia e caiu sobre o chão, vibrando violentamente, a espiral colorida no seu interior parecia girar, emitindo inúmeras cores, arco-íris alienígenas jamais imaginados. Então explodiu. Inúmeros minúsculos cristais de todas as cores espalharam-se em todas as direções. A explosão foi tão grande que nós fomos lançados para trás. Alguns estilhaços nos atingiram e feriram — nada que não pudesse ser remediado. Do núcleo da explosão vinha uma luz tão clara que, por instantes, nos cegou.

Apenas escutei o Reclamão berrar:

— Eu venci de novo, Bongo, o Intolerantemente Gordo! — Ou isso ou algo parecido. Então ouvi a nave se fechar.

Quando finalmente voltei a enxergar bem, avistei a nave cebola subindo e desaparecendo por trás de um monte de nuvens escuras.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 16/09/2022
Código do texto: T7607247
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