A velha, o inverno, a montanha.

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1 – A Velha

Aja Han já vira muitas pessoas estranhas subindo a trilha da Montanha Kaya, mas nunca uma velha tão suspeita.

Não era raro homens desafiarem o árduo caminho que passava por de trás de sua casa, a última da vila - e suspeitava ela, talvez a última à norte de todo o Império.

Subiam por ali todo tipo de peregrinos. Pessoas como os Monges do Caminho Celestial, seus cabelos raspados e testas laranjas, ou então sacerdotes da estrangeira religião do Único Deus, com suas batas surradas e chinelos de madeira. Testavam seus espíritos e pereciam em seus corpos. Aja notara curiosamente que os visitantes eram sempre homens, e sempre vinham no verão, pois, mesmo aqueles forasteiros julgados como loucos pelos locais, mesmo eles, respeitavam a Montanha.

E assim, como não era sempre que uma novidade acontecia por aqueles lados, Aja não pode deixar de seguir a velha.

Dentro de sua cabeça a macia voz de sua mãe alertava, “não seja mal-educada”, e em sílabas ásperas de um sotaque forte, seu pai a lembrava, “não esqueça de colher as Ervas Azuis para a ceia”. Por sobre essas vozes, a própria garota conversava consigo. A data que marcava o fim do amarelado outono e início do inverno era um momento de reunião e acolhimento. Claro que não se poderia deixar uma velha perambulando sozinha em um local tão perigoso! Seus pais entenderiam, sua curiosidade se transformaria em bondade - ou pelo menos assim seu lado malicioso tentava enganar seu bom senso.

Não foi bem isso que aconteceu. Ao se aproximar sorrateiramente da mulher, Aja percebeu que talvez aquela não fosse mesmo uma boa ideia. A mulher, que estava mais no que poderia ser categorizado como "antiguidade", possuía certas características... estranhas. Cabelos brancos que brilhavam como se contivesse um luar dentro. Roupas finas - aquilo era uma camisola? – que não protegiam nada daquele frio. Uma estranha e ágil habilidade para uma senhora que parecia encurvada.

O pior, no entanto, era um sentimento de que as coisas ao longo da trilha não estavam como deveriam, e Aja conhecia bem aquele lugar para notar isso. As árvores balançavam em uma direção, e o vento soprava em outra. Luzes pálidas e esporádicas iluminavam o caminho, apesar do Sol estar escondido atrás do grosso manto de nuvens escuras.

Melhor eu voltar, logo escurecerá, a menina se convenceu após ganhar muita distância casa. Sobre a estranha mulher, bom, concluiu que deveria contar para seu pai sobre ela - talvez omitindo algumas impressões que seriam tidas como exageradas - e quem sabe antes das primeiras neves caírem os homens da vila poderiam achar o corpo da mulher e descobrir mais sobre ela.

Já em casa, Aja percebeu que mesmo tentando, algo a impedia que ela falasse da mulher, seja para seu pai, seja para qualquer outra pessoa. Tentou falar aos ventos, mas sua voz falhou. Como logo a ceia foi servida e o cheiro de assado de cordeiro pairou no ar, a menina esqueceu do ocorrido. As lembranças aos poucos esvaíram como fumaça.

Era momento de celebrar a vinda do Inverno, e enquanto se fartavam de comida e vinho quente, a família Han não imaginava o quão severo ele seria.

...

2 – O Inverno

O inverno avançou e fechou seu punho sobre o Norte do Império. O mundo lá fora não mais existia, era uma suspensão da realidade, um vazio preenchido por frio e neve. Tudo que existia no Universo era a casa de Aja, orbitando isolada no vazio branco, com a família Han amontados em torno de um colossal forno e seu acolhedor calor.

Por isso foi quase impossível acreditar que alguém batia à porta. Não parecia possível haver vida lá fora.

— Pode ser um Urso? — sugeriu o irmão menor de Aja, enquanto lutava com um nariz escorrendo.

Aja fez uma careta para ele, e cheia de segurança, explicou que Ursos não batem à porta das pessoas de forma ritmada e tão educada.

O menino respirou fundo, pronto para argumentar, mas foi silenciado com o rápido levantar-se de seu pai, que ergueu o braço e fechou o punho. Seus dois filhos nunca foram treinados na linguagem de sinais dos caçadores – eram jovens de mais, mas a mensagem era clara para qualquer um: calem a boca.

O pai caminhou até a porta. Aja pensou que ele deveria ter apanhado o arco e flecha, mesmo que ele não servisse para nada em tão curta distância. Droga, um bastão já seria melhor do que nada.

A porta foi aberta e duas enormes formas humanas foram reveladas. Aja pensou que eram visitantes do Reino Celestial ou de qualquer outro Plano Astral. A aparência daqueles visitantes não era nada que Ajativesse visto.

Era impressionante o contraste das duas silhuetas negras com o branco da paisagem. Não só as pesadas roupas e o estranho chapéu eram tingidos de uma cor profundamente escura, como se absorvesse qualquer luz, mas a própria tez das duas pessoas também o eram. Apenas um enorme brasão do Imperador Urso em Amarelo Real, estampado em cada peito, se destacava.

De certo modo, Aja pensou que seu irmão havia acertado. Mas, aqueles Ursos eram mais perigosos. Sabia que aquele brasão poderia ser portado só por oficiais do Império. Haviam soldados na região que se diziam representantes do Império. Não passavam de adolescentes locais, com alguma sede de poder, mas que logo descobriam que não tinham nenhum, muito menos reforços. A região era muito pobre e longe para ter atração da Capital. Os habitantes resolviam tudo por si só, como sempre o foi.

Aja sabia então que aqueles forasteiros eram especiais. Havia aprendido que no Império existiam pessoas com peles e cabelos de várias cores, sabiam de pessoas negras no extremo sul, na Província do Falcão, mas nunca havia visto alguém assim.

E com o peculiar sotaque do Sul, com as vogais parecendo serem engolidas, um dos visitantes falou calmamente:

— Senhor Cian Han? Que tal se nos deixar entrar. Não quer que sua casa esfrie, não é mesmo?

O pai de Aja abriu espaço da porta e só a fechou quando viu que as duas figuras se sentaram em frente ao grande forno. Então sentou-se do outro lado, as encarando.

Após um longo e constrangedor silêncio, a senhora Han, mãe de Aja, até então imersa em pensamentos próprios, lembrou dos bons tratos sociais e abriu um forçado sorriso.

— Desculpem, vocês devem estar cansados. Aceitam algum chá? Logo nosso pão estará assado, estávamos preparando para jantar... Oh, que falha a minha, qual o nome dos senhores.... Ou senhoras, me desculpe, com essa roupa de inverno, fica difícil de saber.

— Não se preocupe. Somos os dois, e somos algo a mais. Use o pronome que quiser. E não será necessária a janta, esperamos ser breves aqui. — Uma delas respondeu, ainda com uma voz aveludada.

— Senhor Han, soubemos que você mora há trinta anos aqui. — Declarou imediatamente a outra, com a mesma voz. Na verdade, Aja percebeu que ambas eram parecidas em tudo.

Queria saber se elas eram gêmeas, ou se todos na Província do Sul eram parecidos. Se todos lá eram tão grandes, ou era uma característica só delas. Queria saber mais sobre como elas chegaram ali. Queria saber por que as roupas delas, tão escuras, não refletiam nada do brilho fogo. O tecido parecia pele, mas de que animal? Por que não tiraram as botas e secaram os pés, como qualquer um faria? E como andaram na neve fofa, sem uma raquete de neve? Segurou sua curiosidade. Se até o seu irmão menor estava comportado, não seria ela a parecer uma menininha curiosa.

— Parece que souberam certo. — A voz de seu pai tirou Aja do devaneio.

— Trinta anos. O mesmo tempo em que nosso senhor Imperador Urso unificou o Império. E o seu sotaque é da... Província do Jacaré. Uma bonita região de Pântanos, não sente falta do calor?

O senhor Han não respondeu. Apenas franziu a testa, encarando as duas. Aja nunca vira seu pai tão áspero assim com viajantes. Muitas vezes a família Han alimentava e fornecia uma cama quente aos peregrinos, um último conforto da civilização para aqueles que provavelmente nunca mais voltariam. Nessas ocasiões, não era raro os visitantes pedirem algum rito mortuário específico, “apenas por precaução e se não for incômodo,” diziam. Alguns preferiam serem enterrados, outros cremado, alguns apenas largados para as Aves carniceiros. Não importava, o senhor Han providenciava.

— Era pescador? — a segunda visitante continuou, como se aquela fosse uma conversa amigável.

— Nem todos lá eram pescadores. Eu construía sampanas e canoas.

— Eram? Não são mais? — perguntou uma delas, com um sorriso malicioso.

— Acho que ele está falando antes das inundações. — Quem respondeu foi a outra visitante.

Aja sabia que seu pai era da Província do Jacaré, por isso sempre se interessou pela região. Nunca soube o porquê do seu pai ter se mudado, porém sabia que nunca poderia voltar. Quase toda a Província e seus principais vilarejos foram inundados pela criação de grandes diques e barragens, há quinze anos. Foi um grande projeto do Imperador Urso para controlar as cheias do Rio Serpente de Mil Cabeças, o rio que nascia li, nas montanhas, e seguia até o fim do império.

A garota era um bebê quando isso aconteceu, então não se lembra das propagandas planfetárias do “Urso Que Engoliu a Serpente”. As regiões a jusante das barragens, agora com o rio controlado, se tornaram agricultáveis de uma forma nunca vista. Os enormes campos alagados de arroz garantiram ampla produção de comida, disponibilizada para os exércitos imperiais, que facilmente controlaram qualquer exército de províncias rebeldes, geralmente pobres e famintos.

Foi por isso que seu pai, com o comentário, se exaltou.

— Tenho certeza de que não vieram aqui para falar sobre meu passado. Digam logo o querem.

Uma das visitantes respondeu.

— Trinta anos nessa Província, trinta anos ao pé dessa montanha. Você deve a conhecer muito bem.

— Bem o bastante para saber se algo de estranho está acontecendo. Você viu algo estranho na montanha? — a outra completou.

O senhor Han enrugou a testa. Parece que ele não estava preparado para aquele rumo da conversa.

— Não, nada. — Ele respondeu. Após refletir um pouco, complementou. — Esse inverno está muito severo, claro, mas iremos sobreviver.

— Desculpe-me, senhor Han. Deveríamos ter sido mais diretas. O queremos saber é se alguém diferente passou por aqui. Talvez você tenha visto? Ou alguém da sua família viu? — Pela primeira vez as visitantes pareceram notar as outras pessoas na casa e Aja sentiu um arrepiou ao ser encarada, como se uma corrente gelada sussurrasse ao seu ouvido. Desviou o olhar por instinto.

— Não. Ninguém aqui viu e....

Aja mal ouviu a voz do seu pai, sendo transportada para memórias esquecidas. Uma velha, no caminho da montanha. Será? Quando? Era um dia de festa, lembrou do cheiro de cordeiro. Será que ela sonhou com isso? As imagens vinham atrás de uma cortina de seda frágil e fina, balançando ao esquecimento. A menina, num ímpeto, antes que o resto da imagem voltasse a esmaecer, disse:

— Acho que vi uma mulher, talvez antes da ceia da Noite Mais Longa. Não tenho certeza. — Tenho?

— Aqui, pobre garota. Olhe nos meus olhos. E lembre-se.

A voz da visitante ecoou mente de Aja. Era tudo o que parecia real. E então a menina viu uma velha corcunda andando com pressa pela estrada, com um cabelo como a luz. As lembranças vieram brutas, como se pulasse em um rio gelado e a água a envolvesse por completo, entrando pelo nariz e pela boca. Se engasgou.

E então, contou tudo.

Seu pai olhava-a como se nunca tivesse conhecido a própria filha. As duas visitantes pareciam realmente satisfeitas.

— Como é seu nome, menina? — uma delas perguntou.

— Aja Han.

— Muito bem, senhorita Han. Você irá subir a montanha conosco. Prepare-se.

3 - A Montanha.

Ali estava o céu, brilhando e pulsando como algo vivo, enfeitado com pontos de luz azuis e brancos – luzes que reverberavam, piscavam em muitas dimensões e moviam-se pelo firmamento, definido pela escuridão em sua borda, onde atingia no horizonte às montanhas. Parecia alcançável, de tão alto que estavam, acima do mundo. A montanha parecia existir como um caminho até ele.

Não era esperado um céu limpo, mas Aja não esperava várias coisas que estavam acontecendo naquelas noites. Seguia em silêncio por quase dois dias duros as duas imperiais, enormes e majestosas, que andavam sob a neve fofa sem deixar pegadas.

Às vezes, a menina parava e olhava para trás, em uma confusão de sentimentos. Queria continuar, sentia que poderia fazer aquilo, mas queria voltar para o calor de sua família. Queria que o seu pai a seguisse, a protegesse, mas sabia que ele deveria ter ficado com sua mãe e irmão menor.

Pararam sob um enorme rochedo, que faria um bom abrigo contra o vento gelado. A menina se recontou na áspera rocha. O ritmo da caminhada era quieto, mas harmonioso. Sabia quando elas parariam para caçar – e sempre voltavam com algo -, quando derreteriam neve para beber, e quando fariam uma fogueira e acampariam.

— Senhorita Han, quanto acha que falta até o topo? — uma delas perguntou. Frequentemente elas pediam instruções para a menina, direções que ela achava melhor seguir. Aja sempre respondia, seguindo sua experiência, mas também intuição.

A menina ponderou. Não tinha certeza de onde estavam, havia várias formas possíveis de subir montanha, caminhos diferentes, mas imaginava ainda estarem menos do que a metade.

— Nesse ritmo, e se nossa sorte de estar sob céu limpo continuar, talvez uma semana. O dobro, se nevar.

Elas pareciam confiar na menina. Ela resolveu e fazer uma pergunta. A primeira em dias.

— Vocês parecem bem conhecer uma montanha. Sabem onde pisar, sabem onde achar comida. – O que ela queria perguntar, era como? Mesmo pessoas muito experientes não andavam sem deixar pegadas.

— Senhorita Han, sabemos que não é isso que você quer perguntar. Nos conte, o que você vê?

— Como assim?

— O que você vê, de diferente. O que lhe parece estranho, fora de lugar?

Para início de conversa, vocês duas.

— A velha é um mistério, e vocês tem certeza de que ela está viva e aqui. Ninguém sobreviria tanto tempo nessa montanha. — A menina percebeu que talvez nem ela mais acreditasse nessa segunda afirmação.

As duas ficarem em silêncio olhando para a Aja, aguardando mais.

— E há outras coisas. Esse céu limpo; o fogo dessa fogueira, não parece... natural. Há árvores com folhas secas, como se fosse outono ainda. E eu vi orquídeas-do-rio perto de um riacho. O riacho deveria estar congelado, e as orquídeas aparecer apenas no final da primavera. E eu tenho seguido um caminho, como se algo me ditasse as direções, sem eu saber por quê.

— A maioria das pessoas não perceberia tudo isso. Na verdade, nem nós mesmas, apesar do treinamento. Esse é o seu dom. — Uma das oficiais do império respondeu.

A outra complementou.

— Há pessoas como nós, com certos dons. Chame de magia, se quiser. Muito deles nunca perceberam, outros usavam para proveito próprio, outros entravam como mercenários ou voluntários em exércitos rebeldes.

Aja sabia disso, mas sempre pensava eram histórias exageradas. Que essas pessoas “mágicas” eram apenas pessoas boas no que faziam. Sabia que o imperador Urso, justamente por esses motivos, caçou, prendeu ou exterminou essas pessoas que poderiam ser perigosas.

Como se percebesse o pensamento da menina, uma delas respondeu.

— Talvez devêssemos nos apresentar. Meu nome é Kiar, meu dom, é perceber sentimentos das pessoas. Um lapso, uma centelha de se perceber o que passa na mente dos outros. A minha irmã, Niar – Então são irmãs! Aja acertou — possui habilidades mais práticas. Ela é muito boa em combate. Além de qualquer treinamento.

A menina percebeu então que a velha devia ter seus próprios dons, e que estava sendo caçada.

Kiar continuou.

— E a velha, sim, possui dons. Não pense que o Imperador Urso é maligno por proibir xamãs, magos, feiticeiros, ou como queira chamar essas pessoas. Muitos são recrutados, treinados pelo próprio império, e mantidos se fiéis. A mulher que queremos encontrar é perigosa. Ela nasceu no Deserto de Ghaak, o que hoje é parte da Província do Lagarto. Quando criança, ela percebeu que podia conjurar chuva sob as areias escaldantes. Usou seus dons para manter oásis e definir paradas para as rotas da seda e de mercadorias do leste. Logo, se tornou rica e poderosa, unificou os povos do deserto. Quando o Imperador ascendeu, ela foi uma voraz comandante de tropas inimigas, aliada de governos estrangeiros.

A menina não respondeu, absorvendo a notícia. Ela então tinha um dom e, sem perceber, já estava sendo usada pelo Império.

...

O tempo aberto permitia que se visse os outros picos da montanha, um mar de agulhas brancas apontadas para os Deuses, num espetáculo de cintilar alaranjado com o toque do Sol nascente. Aja calculou que já estavam muitos metros acima dos menores, e agora havia apenas dois rumos a se tomar até o cume principal.

— Está sentindo algo? — Kiar perguntou, parando ao lado da menina, olhando para a mesma direção que ela encarava. Não viu nada.

Aja pensou em falar que era estranho o céu estar limpo, mas não queria parecer alguém que duvida da própria boa sorte. Um céu limpo não parecia um feitiço ameaçador.

— Podemos aproveitar que não está ventando, e seguir pela rota sul, mais curta. O problema é que lá tem um paredão que precisa ser escalado. Ou ir por sudoeste, um caminho fácil, apesar de longo.

O paredão de vinte metros não era tão difícil de ser vencido, seu próprio pai havia instalado grampos que serviam de apoio, e as irmãs não eram seres normais. Naquela altitude, naquele ar rarefeito, qualquer pessoa não nascida nas montanhas sentiria no mínimo um forte cansaço. As duas forasteiras eram implacáveis, seja por magia ou força de vontade.

— Quanto tempo em cada rota? — Niar perguntou.

— Pela crista sul, mais algumas horas. Chegaremos na beira do paredão ao anoitecer e só ele nos separa do cume. Pela rota Sudoeste, mais quatro ou cinco dias até o cume, dependendo da neve acumulada no caminho.

— Vamos aproveitar o céu limpo. — Niar decidiu.

O caminho, como previsto, foi rápido. Aja ainda achava estranha a facilidade, mas pensou que talvez a velha estivesse dormindo, cansada ou, mais provável, morta.

Encarou o paredão com disfarçado prazer. Havia vencido a montanha, estava no passo final. Ela já subia aquele paredão desde criança, a montanha era o seu quintal. Estarem no inverno era só um detalhe.

Não se importava com o motivo que a levou até ali, sendo usada ou não pelo Império, importava que cada grampo vencido, cada metro escalado, sinalizaria a concretude de seu ímpeto.

— Vou na frente. — Aja sinalizou. — Apesar dos grampos, ela retirou precavida da mochila seus piolets, pequenas picaretas para gelo que aprendera usar assim que aprendera a andar. E grampo a grampo, começou a escalar.

A menina estava na metade do paredão, quando uma forte brisa passou por sua nuca. O vento sussurrava magia e ameaça.

— Depressa! – Ela gritou. — Um forte sentimento de urgência surgiu em seu íntimo, antes mesmo de entender o porquê.

Aja começou a escalar com mais velocidade, envolvida cada vez mais por um vento crescente. Se a noite não estivesse avançada, ela perceberia o céu encoberto dor densas nuvens. Um floco de neve, e outro após outro atingiu sua testa. Logo estava em uma nevasca, uma tempestade furiosa de vento e gelo.

O vento atingia velocidades balísticas, como uma flecha enviada pelos Deuses, mirando no trio que estava exposto no paredão. A velha sabia, a velha esperou, Aja pensou.

Tentou olhar para baixo, e conseguiu ver Niar, cuja cabeça quase encostava em seu pé, e um pouco abaixo, uma visão apagada da silhueta de Kiar, que parecia balançar com o vento, agarrada na rocha apenas com uma mão.

Aja percebeu que os grampos que segurava estavam se soltando, não cravados o bastante para aguentar o peso dela lutando contra o vento. Com surpresa, ela percebeu que talvez os grampos tivessem sido afrouxados de propósito. Uma perfeita cilada. A velha esperou o momento certo.

Aja fincou os piolets na montanha. Já havia escalado daquela forma, e faltava pouco até o topo. Não podia ficar parada, era morte certa, precisava chegar no chão firme.

Niar parecia conseguir seguir ela. Mesmo sem os grampos e ferramentas, a habilidade dela era surpreendente, ela segurava cada pedra, encaixava o pé em cada fissura, como um felino-das-montanhas. Aja não conseguia ver Kiar, talvez ela estivesse muito abaixo, com a neve e neblina a encobrindo. Tentou gritar algo, mas o vento dissipou suas palavras assim que saíram da boca.

Lágrimas brotaram em seus olhos, de choque, de culpa. Ela os fechou por um instante. Como não percebeu que era uma cilada. Aguente. Não solte. Não caia.

Aja estava tremendo, um misto de frio, raiva e medo. Conhecia cada pedaço do paredão, conseguia cravar a lâmina na pedra como uma mão habilidosa de uma musicista tocando um piano, de um cozinheiro temperando um banquete.

Subiu até o topo. Sempre percebia Niar, que a seguia como uma sombra.

Chegaram as duas no platô do cume. Aja percebeu que se passaram minutos, e Kiar não subira. Parou por um momento, esperançosa, respirando fundo o pouco ar disponível, seu pulmão se enchia de ar gelado, mas seu coração se aquecia de fogo.

Quando percebeu que Kiar não subiria, ela caiu de joelho. Segurando as lágrimas, encarou Niar, que parecia uma estátua marmorizada de frente à velha. A velha.

Aja notou a antiga feiticeira que encarava a dupla com um olhar de prazer dissimulado. Estava muito magra, havia sobrado apenas tufos de cabelo em sua cabeça. Em sua mão faltavam vários dedos, um pé parecia estar pela metade. A montanha havia cobrado seu preço.

— Três subiram a montanha, só duas chegaram. — A voz da feiticeira era áspera e bem-humorada. – Eu deveria ter usado um feitiço de esquecimento mais forte em você garota, mas fiquei com medo de fritar sua cabecinha.

Niar, com uma voz mais fria que a montanha, anunciou

— Kátira Altoz, por ordem do Imperador, vim lhe matar.

— Ah, claro que veio. E depois de mim, mataria o pai da menina? Dois pássaros em uma flecha, como dizem no sul.

Aja encarou Niar. Será que aquilo era verdade? Sim, era.

A menina percebeu que seu pai sabia que a velha estava na montanha, é por isso que ela conhecia o paredão, por isso ela montou a cilada. É possível que isso fosse ideia do seu próprio pai.

Niar ignorou a menina. Estava ali para apenas uma coisa. Ela desembainhou uma faca do cinto, a mesma que usara várias vezes para cortar as pequenas caças durante as noites acampadas.

A nevasca que havia enfraquecido, voltou a ficar forte, rondando as três figuras, ali, no topo do mundo.

— Não adianta, essa sua magia enlouquecida não irá me deter. Sua magia enloqueceu, como você. Está fora de controle, foi fácil seguir seus rastros. Pensou mesmo que poderia se esconder?

Aja sentia a magia da velha. Não era algo enlouquecido, não era de alguém que se escondia. Havia propósito, havia vontade.

A nevasca cessou. A menina nem se quer viu a faca ser lançada. O peso da lâmina afiada, a velocidade em que cortou o ar, a inclinação de seu lançamento, venceram a tempestade de neve. A velha estava com o metal cravado no coração, mas com um sorriso na boca.

Aja então compreendeu. Percebeu por que seu pai ajudara a velha, e por que ela havia escolhido aquela montanha. Toda aquela neve, acumulada, esperando a primavera, esperando derreter e ir para o grande rio Serpente, forçando, colapsando, destruindo os diques. A inundação traria fome, pessoas inofensivas morreriam, milhares perderiam as casas. Mas, haveria desertores, guerras civis, revoltas, o império não se sustentaria. Ela saber disso ajudaria? Assim como a velha e seu pai escolheu, sacrificariam inocentes?

Niar se virou para a menina.

— Você pode vir comigo e ser treinada pelo Império. Ou pode ficar, não me importa.

— Vou ficar. A montanha é meu lugar. — Ela respondeu, sem hesitar.

Thomas J S
Enviado por Thomas J S em 09/09/2022
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