MECSTAR — O APRENDIZ DE HERÓI • 8
• Capítulo 8 — Lírio Campestra •
Fui revistado, tive meu heroico livro vermelho e a Bola de Gude Carambola apreendidos, com promessas de possível devolução, caso fosse julgado inocente (coisa que era tão provável quanto um incêndio no fundo do mar). Fui escoltado para uma pequena sela de pedra, onde aguardei o julgamento, torcendo para que Bongo, o Gordo, resolvesse aparecer antes dele — e que aqueles gafanhotos idiotas desconhecessem a importância dos meus pertences confiscados.
— Ei, você. Macaco pelado. Vamos, chegou a hora — disse o guarda da sela, não muito tempo depois.
Ele abriu a sela, vendou meus olhos com um pedaço de pano sujo e fedendo a mofo, e me guiou até uma carroça. O animal, que desconfio que fosse um bicho-preguiça anêmico, caminhou pelo que me pareceu horas e horas. Eu já estava pensando que jamais chegaria a lugar algum, imaginando que a minha sentença já tinha sido dada e seria perambular pelo deserto em cima daquele animal até que a morte viesse me buscar, quando, por fim, paramos.
A venda foi arrancada dos meus e quando eles finalmente se acostumaram novamente com a luz eu me vi num planalto no topo de uma montanha de onde avistei a inteira Raiz Pedrada por cima — uma coisa horrível de se ver, nem tentem imaginar tal arquitetura de péssimo gosto. O sol se despedia daquele dia com um róseo alienígena alucinante. Os ventos sopravam como se estivessem apertados para ir ao banheiro, afastando meus bagunçados cabelos ruivos, exibindo minha enorme testa heroica.
— Béquitá, do Oeste, — Começou, Tusdëd, o gafanhoto gordo juiz — mais um para a lista de babacas que não sabiam pronunciar meu nome. Ao seu lado, um dos guardas segurava uma cesta de palha com os meus pertences: meu livro e a Bola de Gude Carambola — Tenho diante de mim, Rök — continuou o juiz — nosso honrado xerife, uma testemunha que afirma ter presenciado sua grave infração perante a lei! — Baixou a voz e sussurrou para mim: — E você tem diante de si a morte. Hohoho...
Isso mesmo, leais amigos, Mecstar, seu herói favorito, estava na beira de um abismo. Uma extensão de terra vermelha lá em baixo misturava-se ao rosa do pôr do sol e me causava náuseas. Rök estava lá, esbanjando toda sua indiferença fumando de um cachimbo de pedra velha. Também estava presente uma multidão de caras gafanhotais estranhas que tinham vindo apenas para ver o macaco careca do oeste voar para a morte. Uma voz rouca e velha gritava no meio da multidão:
Graças a Deus que eu não sou você,
Mas, se por um infeliz acaso eu fosse,
Deixaria de ser besta e compraria esse algodão doce!
Outra, mais jovem e menos ritmada, dizia,
É dia de juízo, (queiramos) dia de morte!
Se não é você quem vai voar (e gritar), você é um cara de sorte!
Para comemorar sua fortuna, cante, pule, dance, bata o pé!
E depois, esbaforido, compre este picolé!
O mais intrigante, entretanto, foi a frase num cartaz erguido orgulhosamente por um dos gafanhotos, que dizia:
Coma azeitonas sem caroço.
— Em sua defesa, — Continuou o gafanhoto — há apenas a sua afirmação que meio, isto é, a metade de qualquer todo que haja em qualquer dimensão dos universos, e nada — hoho — é a mesma coisa. — Houve uma onda de vaias com cerca de vinte minutos de duração, ao fim ouviu-se apenas a voz do vendedor mais jovem:
E depois, esbaforido, compre este picolé!
— Pois bem, pois bem, pois bem. — continuou Tusdëd — Tal afirmação, além de ferir a matemática fundamental cósmica, desonrar a memória de todos aqueles respeitáveis estudiosos que entregaram suas vidas aos números, transformando-as assim numa chatice panorâmica, impossível de ser vivida com gosto, é também uma mentira descarada proferida diante de um juiz empossado da Lei da Rocha em Raiz Pedrada. Como alguém extremamente razoável e imbuído de misericórdia que sou, — pelo barulho que ele fazia com a boca, ao falar, acredito que ele ainda comia aquelas malditas larvas.
— Estou apto a o concedê-lo a chance de provar a fidedignidade de suas palavras de defesa. — Continuou ele — Béquita do Oeste terá a chance de provar diante desta multidão de testemunhas que não passou dos limites e, portanto, nada tem a dever à lei. — Houve uma salva de palmas e assovios que durou até um dos guardas dá um tiro para cima. Quando o silêncio voltou, ele prosseguiu— Eu, Tusdëd Öh—Öh, o Comedor de Jaquitanas, Aquele Que Nunca Arriscou, estrela máxima da Lei da Rocha em Raiz Pedrada, o condeno a meio passo adiante na beira do Abismo da Morte Que Grita. Esperamos afetuosamente que você grite.
Houve um silêncio total, e então, ainda mais silêncio. Pude jurar que ouvi um ruído estranho, e um leve tremor no chão. Mas antes que eu pudesse pensar no que isso significava — se é que podia significar alguma coisa — dei por mim assistindo em minha mente o inteiro filme da minha vida, com a certeza de que iria morrer. Como você bem sabe, honrado amigo, a maior parte da vida do herói que vos fala não era muito heroica, de modo que a repetição de todos aqueles fatos desonrosos me pegou de surpresa. Não estava preparado para tamanha tortura. Estava eu mesmo disposto a dar por conta própria um passo inteirinho e me jogar naquele duro mar vermelho lá embaixo e pôr um fim naquilo tudo de uma vez, quando ouvi mais uma vez a voz de Tusdëd.
— Quais são as suas prováveis, hohoho, últimas palavras, Béquitá?
— Bongo, O Gordo? — Murmurei, franzindo o cenho, olhando para o céu.
— O que... — Começou dizendo o juiz. Aconteceu mais uma vez um leve tremor, e então um barulho estranho seguido de um grito de espanto da multidão. Eu não era capaz de ver nada do que acontecia atrás de mim, só tenho certeza de que fui empurrado abismo abaixo porque quando ouvi o grito da multidão eu já estava a meio caminho do chão. Agora eu podia ver claramente o formato de abóbora daquela estranha nave lançando uma sobra aboboral no chão para o qual eu mergulhava.
Que fique bem registrado — e nesse momento eu afundo a ponta da caneta para que nada no universo possa apagar o que agora assento por escrito — que o herói não gritou. Não conheço a história daquele abismo para poder afirmar com certeza, mas é provável que meu nome tenha entrado para ela, por ser o primeiro a cair do precipício da Morte Que Grita, sem gritar. Afinal, como diz o capítulo final do meu querido manual heroico, intitulado “Final Feliz, Quando Ele Chega (Se É Que Realmente É Capaz De Existir Num Universo Racional Tal Coisa Intrinsecamente Contraditória)?”, um herói aceita seu destino resignadamente. Ele não é tolo de lutar contra a infinitamente mais poderosa Roda do Tempo, que gira e o leva a todos para onde bem quer. Então o mais sábio dos heróis deixa-se levar. Foi o que fiz, institivamente, naquele momento. Não tive tempo para pensar no que fazer ou como reagir ao meu iminente fim, apenas abracei minha sorte, caindo de encontro à morte. Uma morte que seria tão serena como um gorigard não era. Eu estava quase me convencendo que sim, havia mesmo finais felizes, e aquele seria o meu.
É claro que não foi o meu fim, do contrário meus amigos não estariam tendo o enorme prazer de ler este livro heroico.
Meio metro antes de tocar o chão, com a sombra pálida da nave abóbora de Bongo o tempo todo embaixo de mim, comecei a ser puxado para cima. Na verdade estava sendo sugado, como a sujeira é sugada por um aspirador de pó. E foi aí que eu finalmente gritei e me desesperei, lembrando em seguida da famosa teoria do Não-Era-Para-Ser-Assim! — sempre acompanhada de um sinal exclamativo no final. Esta teoria, desenvolvida pelo lendário psiquipanárca, Dr. Soceik Tunussab, afirma que não são os infortúnios da vida que nos assustam, nos tiram do sério, ou nos fazem ficar por horas batendo com a cabeça na parede perguntando indefinida e repetidamente “Por Quê? Por Quê?”. São as coisas inesperadas, aquelas que acontecem sem o nosso consentimento prévio, são essas as coisas que nos assustam de verdade, independemente de serem boas ou más. Ele endossa a teoria dizendo que pessoas negativas não chegam a se incomodar tanto quando coisas ruins acontecem (pelo menos não tanto o quanto elas querem que você acredite que elas se incomodam quando alugam o seu ouvido para reclamar), mas sim quando acontecem coisas que estão fora das possibilidades e probabilidades de suas próprias espectativas. Uma felicidade ocasional na vida de alguém assim pode fazer com que ele entre num quadro importante de colapso nervoso. O Dr. Soceik Tunussab finalmente teve sua teoria publicada, reconhecida, e estudada nas mais importantes multiversidades quando contou a história verídica de Lírio Campestra num congresso psiquipanártico transmitido ao vivo para mais de 5.356 universos.
A história é, resumidamente, assim.
Havia, num planeta chamado Luzamor, um Planeta de Luz e Amor, um dos mais belos que se tem registro, um homem chamado Lírio Campestra. Lírio Campestra, como todo habitante de Luzamor, era belo como uma cachoeira ao amanhecer. Em contrapartida, era uma pessoa que criava sempre situações desagradáveis em sua própria mente. Acredita que todos estavam sempre planejando algo maligno contra a pessoa dele, pois, secretamente o desprezavam e zombavam dele pelas costas. Uma saudação ele respondia com um xingamento, um aperto de mão, com um soco, um favor com um exemplar do jornal do dia. Certa vez, Linda Lunar, uma donzela de lábios rosados e longos cabelos ondulados, marcou um encontro com ele num dos mais belos jardins celestes que há nas vastas e numerosas paisagens celestiais de Luzamor. Sob a sombra de uma árvore de luz, com esquilos e coelhos passeando em volta enquanto pássaros cantavam melodias de causar inveja aos mais refinados compositores da galáxia, e um rio de águas cristalinas próximo dedilhava delicadas notas como uma harpa, Linda declarou com sua voz pura e doce, numa canção que ela mesma havia composto, todo o seu profundo amor por Lírio Campestra. Ao terminar a canção, que todo o jardim tinha parado para ouvir (até mesmo o rio) sentando-se numa toalha branca com bordados de borboletas azuis forrada sobre a relva, Linda, com uma rosa branca presa na orelha, um diadema de diamantes azuis e um colar de madrepérola verde caindo sobre seu decote ricamente refinado, o pediu, gentil e solenemente, por uma resposta. E tudo o que ela recebeu de Lírio Campestra foi um terrível murro no meio da testa.
Havia uma corrente de Nutricionistas que se opunha a todos os argumentos da teoria do Dr. Soceik Tunussab. O líder desta corrente, o Dr. Comak Ah-bo, afirmava que a culpa de tal horrível ato deplorável era na verdade dois pais de Lírio, pelo fato deles não terem forçado Lírio Campestra a comer vegetais suficiente na infância.
Os habitantes de Luzamor, enfurecidos pelo terrível ato que ele havia cometido, amarraram-no numa árvore e começaram a atirar pedras nele.
Aquilo em nada surpreendeu Lírio Campestra, que concluiu que finalmente os seus vizinhos estavam revelando o que verdadeiramente achavam dele. Apesar de ser um maníaco, era muito inteligente. Ele sabia que não tinha como escapar daquela situação, tinha certeza de que, devido a todo ódio que as pessoas tinham alimentado para com ele durante tanto tempo, não deixariam ele escapar com vida. Então, decidiu fazer algo que ninguém esperava. Usando toda a sua força, ele arrancou a própria perna e atirou-a para longe, na direção de uma pedra que estava numa colina cujo topo erguia-se um pouco acima da árvore. A pedra rolou para baixo e atingiu-o na cabeça matando Lírio Campestra instantaneamente.
Os habitantes de Luzamor, horrorizados com o que tinham feito, enterraram Lírio Campestra em um jardim celeste e colocaram uma lápide sobre sua sepultura. Nessa lápide, eles puseram uma frase:
"Aqui jaz Lírio Campestra, o pior homem que já existiu. Soube morrer com estilo."
Um exame genético pós-morte mostrou que Lírio não tinha nenhuma predisposição para ser impaciente, nem para reagir de forma violenta e agressiva à gentilezas livrando assim seus pais das acusações do Dr. Comak Ah-bo.
Foi com a mesma surpresa que vocês, meus queridos amigos, provavelmente estão sentindo agora, que eu caí para cima, após ter caído para baixo quase até o chão. E quando dei por mim estava novamente no interior da nave de Bongo, o Gordo.
— Mas você é um baita de um inútil mesmo, Mectá! Hihihihihihihi — Falou o R2 na minha frente. Já não gaguejava, imagino que ele tenha se consertado enquanto eu passava minha agradável temporada em Raiz Pedrada. Bongo nem sequer se virou em sua cadeira ridiculamente lilás. Não era, nem de longe, um momento propício para eu aturar o desaforo daquele rato de lata. O puxei pela orelha (lamentando mais uma vez o fato de ter perdido minha Zitara), o joguei dentro do banheiro (“Não entre sem precisar...”), fechei a porta, abafando seus gritos de protesto, e a escorei bem com uma cadeira para que ele pudesse conversar com o Simpatinho em paz.
— Bongo-Bongo-Bongo! O mais que ordinariamente gordo! — Falei para as costas da enorme cadeira onde Bongo pilotava sua abóbora. Em sua frente, a maior das telas do painel de controle mostrava em tons de verde o planalto no topo do abismo da Morte Que Grita, onde a multidão olhava abismada para nós, apontando, se esgoelando, e correndo desesperadamente.
— É, acho que eles não esperavam por isso. — Comentei. — Não esperavam uma nave tão feia como a sua, Bongo.
— Cala a boca, Mectá! Re-Claw Mão Antagonis acaba de roubar a bola de gude carambola e é tudo culpa sua! — Gritou Bongo, com muita raiva.
Surpreso, e sendo contagiado pela raiva até os ossos, exclamei convicto:
— Mas o Reclamão morreu! Afundou na areia movediça, ou o que quer que seja aquilo... Eu vi! Eu estava lá, caramba! — então lembrei que não tinha o visto morrer, em seguida, lembrei-me que meu livro também estava lá e uma coragem que até então não tinha visto em mim nasceu, consumindo-me como chama em mato seco.
— Vamos pegar o Reclamão.— Falei, cerrando os punhos. — Vamos pegar esse cara.