A CASA DAS DUAS LOUCAS

Aquela casa de alvenaria tinha uma aparência austera. Era escura e devia ter sido verde em algum momento. Com o passar dos anos, a fuligem acumulada encobriu a cor original. Os moradores mais antigos diziam ser aquela a casa que inaugurou o bairro. Acerca de seus ocupantes, quase não havia informações. Seu proprietário era um sujeito sisudo, de cinquenta e poucos anos, que usava terno e gravata e não conversava com ninguém. Chamavam-no Sanclé. Intrigado com aquele nome, um dia, quando o carteiro passou e deixou uma correspondência na soleira da janela da tal casa, eu o deixei sair da vista e peguei o envelope para satisfazer minha curiosidade. O homem tinha um prenome comum e o sobrenome Saint Clair. Agora estava tudo claro.

Mas Sanclé não vivia sozinho. Com ele, moravam duas mulheres, ambas a aparentar idades entre os 40 e 45 anos. Vestiam roupas pesadas e escuras, em geral verde ou marrom, ou em diversas tonalidades entre o cinza e o preto. Essas roupas as cobriam do pescoço aos tornozelos. As únicas partes visíveis de seus corpos eram o rosto e os pés. E, em ocasiões raras, quando realizavam uma atividade no quintal ou colhiam alguma fruta no pequeno pomar existente atrás da casa, as mãos e os punhos. Seus rostos eram tão brancos que pareciam maquiadas para o teatro. Seus cabelos eram longos e despenteados. Seus nomes ninguém sabia. Por isso, as duas loucas.

Mudamos para o bairro em 1969, para uma casa de madeira que meu pai construiu numa esquina. Atravessado no fundo do nosso lote havia um terreno baldio e, depois deste, em lote paralelo, a casa em questão. O silêncio e a ausência de movimento marcavam aquela construção e a faziam misteriosa ao nosso olhar de adolescentes e crianças.

Acerca daquilo de que não se tem conhecimento, surgem sempre boatos e, com o passar do tempo, criam-se lendas. Uns diziam que as mulheres eram irmãs de Sanclé, que as mantinha reclusas por excesso de cuidados; outros diziam que as mesmas eram amantes do homem; que o silêncio e a clausura escondiam uma espécie de bigamia. Havia, ainda, os que diziam que aquelas mulheres se mantinham enclausuradas por terem sido vítimas de um raio de cujo trauma nunca se recuperaram; que as roupas pesadas e escuras encobriam as queimaduras produzidas pelo fenômeno atmosférico. Por último, os que as chamavam de bruxas. Fosse qual fosse a verdade, o fato é que a casa e seus habitantes povoavam nossa imaginação de moleques e nos levavam aos mais diferentes expedientes para desvendar o mistério da casa das duas loucas.

Uma madrugada, quando eu tinha 17 anos, voltava de bicicleta de uma festa e, para atravessar um bosque de eucalipto que separava nosso bairro de um bairro vizinho, liguei o farol, que produzia luz potente. Mais ou menos na metade da trilha de mais de um quilômetro, eis que surge uma mulher completamente nua! Quando já ia ultrapassá-la, ela olhou para trás e a luz do farol mostrou-lhe o rosto. Era uma das mulheres da casa. Era bonita e muito branca. Nas suas costas e na face, não vi nenhum sinal de queimadura. Desliguei o farol, larguei a bicicleta na margem da trilha e segui a pé atrás dela. Nos últimos metros da trilha havia uma curva e, logo em seguida, uma cancela que dava acesso à rua. Apressei o passo, mas quando cheguei à cancela não a vi mais, apesar da lua clara. Na manhã seguinte, contei o episódio ao meu melhor amigo. Ele sugeriu percorrermos a trilha à noite, para ver se a situação se repetia. E assim o fizemos, por umas três semanas, todos os dias, inclusive no dia da semana e hora em que se deu o encontro. Mas o episódio não se repetiu. Aí ele me aconselhou a esquecer o assunto e jamais falar do mesmo para outra pessoa. E me disse, francamente, que eu tivera uma alucinação. Concordei que podia estar certo. Afinal, aquelas mulheres e seu comportamento ocupavam os nossos pensamentos e nos levavam a imaginar situações.

Certa noite, sonhei com a mulher da trilha e, no sonho, ao segui-la, encontrei uma argola no chão, a uns dois metros da cancela, dentro da mata, e meio camuflada na serrapilheira. Ao puxá-la, abriu-se uma espécie de claraboia que dava num túnel. Este atravessava sob a rua saía no quintal da casa das duas loucas, no meio do pomar. Acordei pela manhã a ouvir sirenes da polícia. Levantei-me e fui ver o que se passava. A rua estava repleta de viaturas e policiais cercavam a casa. Minutos depois, Sanclé saía algemado e era colocado numa das viaturas. As mulheres também saíram e entraram noutra viatura. Não estavam algemadas e embarcaram aparentemente como passageiras, não como prisioneiras.

Pela metade da manhã, a rádio local informou, em boletim especial, que um nazista havia sido descoberto e preso na cidade. Sob nome falso, esse homem chegou em meados dos anos 1950, estabeleceu morada no município e empregou-se como contador numa cidade vizinha. Duas vezes por semana, visitava as irmãs. Ao meio dia e no final da tarde, o noticiário radiofônico repetiu a notícia, mas não trouxe nada de novo em relação ao caso.

No dia seguinte, porém, o jornal impresso trazia matéria de duas páginas onde se lia que o homem permanecia preso e, provavelmente, seria extraditado para a Alemanha, de onde deveria seguir para Israel, para ser julgado por participação no holocausto. As duas mulheres estavam sob cuidados de psicólogos e as autoridades estudavam o que fazer com elas. Em depoimento, elas disseram que o irmão as obrigara a vir com ele para o Brasil e as trancafiara na casa, sob ameaças e chantagens. Temia que o contato delas com a comunidade pudesse denunciar sua verdadeira identidade, origem e passado.

Cerca de um mês depois do ocorrido, as irmãs retornaram à casa e, no dia seguinte, dois policiais uniformizados, e um civil de terno e gravata, foram recebidos por elas. Um dos policiais exibia divisas de oficial. Ouriçados, nós, moleques, ficamos atentos a todos os movimentos. Vimos quando uma delas acompanhou os policiais até o centro do pomar, onde destamparam um poço. Um deles entrou, aparentemente por uma escada, e desapareceu lá dentro. Em seguida, desceram os outros dois homens. O poço era, na verdade, a entrada disfarçada de uma espécie de bunker. No seu interior, uma sala de reuniões com cerca de 20 metros quadrados, contendo uma mesa e meia dúzia de cadeiras, um armário, um cofre, cartazes de 3º Reich, uma lousa e um retrato do Führer que tomava quase toda uma das paredes.

As mulheres disseram às autoridades que jamais lhes foi permitido entrar no local, sendo o irmão a única pessoa da casa com acesso àquele recinto subterrâneo. Antes de deixar o Brasil, Sanclé confessou que chefiava um a célula neonazista que ali se reunia esporadicamente. Os membros, quando convocados, entravam pela claraboia camuflada no bosque, atravessavam o túnel e vinham participar das reuniões. Às irmãs, ele sempre dizia que era melhor elas não saberem o que ocorria naquele lugar. Como vê, leitor, sobre a claraboia e o túnel, parece que temos um caso de sonho premonitório.

Quanto às duas loucas, decidiram permanecer no Brasil e passaram a interagir com a comunidade e a estabelecer contato com a colônia alemã no Sul do país. Eu e meus dois amigos mais próximos passamos a frequentar a casa, onde éramos tratados carinhosamente e nos deliciávamos com doces de compotas, tortilhas e biscoitos passados em finas geleias.

A intimidade com aquelas mulheres, que conversavam larga e francamente conosco, serviu-nos de parâmetros para entender nossas próprias mães, sempre cheias de reservas e segredos para conosco. Há sempre muito em comum entre as mulheres, por diferentes que sejam suas origens e culturas. Conversar com uma pode revelar muito das outras, ou de todas. E, assim, acabou-se o mistério da casa escura, de loucas e de bruxas.

Anos mais tarde, eu começaria a entender que aquelas mulheres só não perderam a sanidade graças aos livros. Havia muitos deles numa estante. Boa parte em alemão, alguns em francês e muitos em português, idioma que elas dominavam bem, apesar da pronúncia carregada de rr e da confusão com artigos e pronomes, trocando com frequência o gênero masculino pelo feminino e vice versa. Concluída a história, fica uma dúvida: eu vi mesmo aquela mulher nua na trilha? Ou foi uma alucinação, como sugeriu meu amigo?

José Luiz Barbosa de Oliveira
Enviado por José Luiz Barbosa de Oliveira em 05/09/2022
Reeditado em 28/12/2022
Código do texto: T7598846
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